1.º Domingo da Quaresma – ano B
Marcos 1,12-15
Referências bíblicas:
1ª leitura: A aliança de Deus com Noé, após ter escapado do dilúvio (Gênesis 9,8-15)
Salmo: 24 (25) – R/ Verdade e amor são os caminhos do Senhor.
2ª leitura: O batismo é hoje a vossa salvação (1 Pedro 3,18-22)
Evangelho: «Jesus foi tentado por Satanás (…) e os anjos o serviam» (Marcos 1,12-15)
«Naquele tempo, o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto. Jesus esteve no deserto quarenta dias e era tentado por Satanás. Vivia com os animais selvagens e os anjos serviam-no. Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia e começou a pregar o Evangelho, dizendo: “Cumpriu-se o tempo e está próximo o Reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho”» (Evangelho do 1.º Domingo da Quaresma, Marcos 1, 12-15)
Voltai-vos para a luz, porque a luz já está aqui!
Ermes Ronchi
1. Não devemos começar a Quaresma com o rosto sombrio, mas com um sorriso, com aquele sorriso que intuo no Evangelho deste primeiro domingo. Com efeito, Jesus começa com um anúncio gozoso, que da Galileia chega a todos os caminhos do mundo; parte de uma boa notícia, que está encerrada nas primeiras palavras, aquelas com que inaugura a sua primeira missão, e que são: «Está próximo o Reino de Deus.»
Como é possível levar uma boa notícia, que é para todos, a não ser com um olhar exultante de alegria e um sorriso aberto? Muitos vieram antes dele e depois dele como profetas, e começaram por denunciar o mal, por lamentar a queda dos valores, a maldade dos tempos… como se esse fosse o caminho para fazer triunfar o bem.
Jesus escolhe outro caminho: em vez de denunciar, anuncia. Não vem como um reformador religioso ou como um contestador moralista, mas como o mensageiro de uma boa notícia extraordinariamente prometedora. O seu anúncio é um “sim”, e não um “não”.
É como se dissesse: queres vencer o mal, dentro e fora de ti? O mal é aquilo que faz mal ao homem, e é evocado hoje pelo relato dos quarenta dias passados por Jesus no deserto, sendo tentado por Satanás.
Queres vencer o mal? Não basta o teu esforço, primeiro tens de conhecer a beleza aquilo que está a acontecer, de um dom de Deus. E esse dom, eu to anuncio: o Reino de Deus está aqui.
2. O que entende Jesus por Reino de Deus? Deus olhou e disse “basta”; Ele vem, está aqui, luta contigo, e o coração e o mundo mudam. Deus vem e cura a vida, dá-te o seu alento, o seu sorriso, a sua vida. A todos e sem medida. E já não te deixa, se tu não o deixares.
Deus vem para que o mundo seja completamente diferente, outro mundo onde seja possível viver bem, encontrar a plenitude da vida, a felicidade.
As primeiras palavras que Jesus pronuncia também são o seu primeiro presente: vós estais imersos num mar de amor e nem sequer vos dais conta! Por isso viveis mal. E acrescenta imediatamente: convertei-vos! O que significa: mudai de olhar, virai-vos para esse mar de amor, para essa luz.
Imagino a conversão como o movimento do girassol, como esse obstinado voltar-se para o sol. Porque o rosto de Deus é luminoso, e cada homem pode ser um amigo.
Interrogo-me por vezes como é possível que pessoas que tenham tido uma educação cristã se afastem para sempre da fé. Creio que não é difícil encontrar a resposta, pelo menos em muitos casos, que é a seguinte: não conheceram a boa notícia. Conheceram as normas morais, os preceitos da Igreja, as práticas religiosas, mas não tiveram o encontro, não viveram o sol, o encontro com a beleza de Deus.
Que fé é essa sem assombro e sem amor? Então, estes não deixaram a fé, mas apenas uma casca vazia, feita de comportamentos e de práticas que já não os conseguiam motivar profundamente.
3. Amanhã, prestemos atenção à primeira leitura: falar-nos-á de um Deus que inventa o arco-íris, esse abraço resplandecente entre o céu e a terra, um Deus inventor de comunhão com tudo aquilo que vive debaixo do sol e para lá do sol. Tu até podes deixar Deus, mas Ele nunca te deixará.
Volta, então, a primeira pergunta: queres vencer o mal que está dentro e fora de ti? Jesus indica o caminho: não contes com o teu esforço, mas com a força do Reino que está dentro de ti, mansa e poderosa energia, como semente no ventre da mulher.
Vencer o mal contando com o bem, como faz Jesus. Escreve o padre David Turoldo: «Nós morremos porque adoramos coisas de nada, porque escolhemos amores de nada.» A tentação é sempre uma escolha entre dois amores, e eu venço quando escolho o amor maior. Que está aqui.
Voltai-vos para a luz, porque a luz já está aqui. Acreditai nesta boa notícia que é o amor, neste bem maior que está dentro e fora de vós, e que tem a beleza de um arco-íris.
«Nómada de amor, deixei a riqueza do palácio por um arco-íris. Tu escancaraste a minha vida, és vento que sopra e enfuna as velas, seguir-te é coisa de gente corajosa. Deixei-me agarrar por ti e, capturando-me, libertaste-me: agora caminho com passo de rainha.
Como ao mergulhar em águas profundas, primeiro tive medo, mas agora recebi como dom de ti um novo alento.
Centelha de eternidade, sinto-me perto de ti, ereta e real.
De olhos fixos no sol, a cada aurora eu sei que renunciar por ti equivale a florescer.»
(Marina Marcolini)
Ermes Ronchi,
In “A esperança que nasce da Palavra – Ano B”, ed. Paulinas
http://www.snpcultura.org
Quarenta dias da Quaresma
Marcel Domergue
Quarenta dias
O número quarenta é simbólico. Representa a duração de uma existência humana e a duração também da história da humanidade. Deste modo, Noé enfrentou por quarenta dias as águas mortais do abismo primitivo. Foi um novo nascimento, uma nova criação. A primeira leitura nos diz que estamos indo em direção a um universo em perfeita aliança com Deus. As nuvens ameaçadoras de novas chuvas diluvianas serão mantidas à distância pelo arco de luz que sinaliza a aliança de Deus com todos os viventes. E, enquanto estivermos caminhando sobre as águas do não ser, está ainda por vir a realidade que este arco representa. Para os Hebreus, foram quarenta anos no deserto. Ao fim do caminho, a Terra Prometida. Uma pátria que esteve sempre no horizonte, à medida que dela ia-se aproximando, à espera da «pátria melhor» de que fala Hebreus 11,13-16. Para Jesus, quarenta dias no deserto, submetido à fome, à sede e atormentado pela tentação do poder e do domínio. E não irá acompanhá-lo por toda a vida esta mesma tentação? Até que, no último dia, pedirá ao Pai que afaste dele o cálice que deverá beber? Como vemos, aos quarenta dias da Quaresma não faltam referências bíblicas. Poderíamos citar ainda outras, mas vamos nos contentar com 1 Reis 19,6-8, onde se vê Elias caminhar quarenta dias e quarenta noites até à montanha de Deus, o Horeb.
Para onde vão os nossos caminhos?
Temos aí o que pode enriquecer o sentido que damos à Quaresma. Este é com certeza um tempo especial, bem enquadrado pela liturgia, mas que significa toda a nossa existência. Sinaliza as nossas apostas, caminhos e provações. Por que este número, quarenta? Porque, ao que parece, quarenta anos representa o tempo que dura uma geração. Um ser humano procria convencionalmente quando tem vinte anos: e, vinte anos depois, os seus filhos e filhas chegam por sua vez à idade de procriar. Deste modo, a geração toda que saiu do Egito morreu nas areias do deserto. As crianças nascidas durante o Êxodo é que irão entrar na terra prometida. A Quaresma nos convida, de qualquer forma, a lembrarmos o que está em jogo no decurso dos nossos dias. Para onde vamos? O que buscamos? Para onde se dirigem as nossas preferências? O nosso caminho, sinuoso às vezes, pode estar semeado de obstáculos, sofrimentos e fracassos. A Quaresma convida-nos a manter um afastamento, a que nos desembaracemos do imediato, para localizarmos o que temos de viver na trajetória da nossa existência. Ao fim do caminho, esperamos encontrar a terra onde corre o leite e o mel, num universo em perfeita aliança com Deus e, portanto, com todos. É claro que a Quaresma deveria ser um tempo de reflexão e de reorientação para nós. E é evidente que isto deverá nos conduzir a compartilharmos e a nos ocuparmos com os problemas postos a um número tão grande de excluídos. Voltaremos a falar sobre isto.
Sobreviventes
Este subtítulo quer fazer alusão à aventura simbólica de Noé. Não é uma aventura entre outras, mas sim a parábola de toda a existência humana. De fato, é exatamente o que quer dizer a segunda leitura que estabelece um paralelo entre a arca de Noé e o batismo: «Salvas por meio da água». Paulo irá mais longe, ao explicar que o batismo nos faz passar pela morte e pela ressurreição do Cristo (Romanos 6,3-5 e Colossenses 2,12). Assim como Noé, o mundo passa também pela morte, para chegar à ressurreição. Uma recriação e um renascimento do mundo. A água e o vento estão aí, assim como em Gênesis 1. O batismo, tanto o de Jesus como o nosso, contém os mesmos elementos. Batismo, sem dúvida, só se recebe uma vez. Mas, justamente porque é para ser vivido e revivido em cada coisa até na hora da nossa morte, assinalará a passagem definitiva e, assim, coroará tudo o que teremos significado ao longo dos nossos dias, dos nossos «quarenta dias». Tudo isso nos ajuda a compreender a coerência que há entre a Quaresma e o acontecimento pascal de que ela prepara a celebração. Mais uma vez; a Quaresma não é um tempo entre outros, mas sim a imagem de todos os tempos, de todo o nosso tempo. Lembra-nos a Boa Nova da Ressurreição e da derrota da morte. Acolher a esta Boa Nova muda a nossa vida e é esta mudança que é chamada de conversão. Trata-se de passar da tristeza à alegria.
A Quaresma é um tempo de mobilização interior
José Tolentino Mendonça
Queridos irmãs e irmãos,
Todos os grandes acontecimentos da nossa vida requerem uma preparação. E quanto mais significativos eles são, mais uma preparação, um caminho eles pedem de nós. É verdade que o inesperado, a surpresa, também têm o seu lugar, mas se queremos tomar uma grande decisão, celebrar uma grande festa, realizar um grande encontro, o nosso coração e a nossa vida têm de preparar-se para isso. Preparação é a palavra deste arranque da Quaresma, porque Quaresma quer dizer isso. Quer dizer preparação para a Páscoa, para a grande passagem, para a grande travessia. Quaresma são estes 40 dias que são memória dos 40 dias que Jesus passou no deserto, segundo a narração evangélica que ouvimos. Mas também dos 40 anos que o Povo de Deus fez de caminho, de preparação, de reencontro consigo mesmo, até entrar na Terra Prometida.
Nós olhamos para a natureza à nossa volta, e sentimos que alguma coisa está a acontecer: as árvores estão mais verdes, sentimos que primeiro surgiram as flores amarelas, agora surgem as flores brancas, depois vão surgir as flores de todas as cores, e daqui a pouco o tempo já está a mudar. Sentimos que há uma temperatura diferente, mesmo se faz frio. Sentimos que a própria natureza se prepara para uma estação diferente. E esta preparação não pode ser apenas exterior a nós, não pode ser apenas um impulso, um anelo, um desejo que a natureza sente. A nossa vida também precisa de primavera, precisamos acordar o fogo debaixo da cinza, precisamos, também, depois do inverno, sentir que a nossa vida acorda para aquilo que é essencial. Porque, como dizia Tchekhov num dos seus contos, “O coração humano é um mar gelado, é um oceano gelado.” E pode acontecer que o inverno se prolongue na nossa vida. Numa indecisão, num deixar andar, numa incapacidade, no fundo, de descobrir e de habitar a própria vida, pode acontecer que a primavera, verdadeiramente, nunca chega, nunca rebenta em nós.
Nessa preparação para o grande acontecimento pascal, para esse levantamento, esse colocar-se de pé, essa espécie de insurreição espiritual que a Páscoa do Senhor prefigura na nossa própria vida, a Páscoa pode-nos encontrar perfeitamente desmobilizados.
Nesse sentido, a Quaresma é um tempo de mobilização interior, de uma forma muito simples porque tem de ser, porque também é de uma forma muito objetiva, de uma forma muito concreta que eu tenho de me por aberto àquilo que Deus pode fazer em mim. E, neste tempo da Quaresma, nós somos chamados, de facto, a calçar as sapatilhas, a nos colocar à estrada, a tomarmos a trouxa do peregrino, a sentirmos que nos temos de dar ao trabalho. A espiritualidade não é uma zona de conforto, é um caminho, é o desafio, é o desafio a uma estrada que nós temos de abraçar.
Os três meios que nos são dados, que nos são apontados, são meios muito simples, mas como dizia o Papa Francisco na sua mensagem, “São meios que formam o nosso coração.” E nós precisamos disso, formar o nosso coração na caridade, no amor, na esperança, na fé.
Por isso, o primeiro meio é a oração. Temos de nos tornar mulheres e homens para quem a oração é relevante, existe, cabe no nosso horário, está no nosso dia a dia uma oração que seja pessoal e também comunitária. Precisamos intensificar a oração. E intensificar a oração quer dizer apenas isto: intensificar a relação com Deus.
Porque a oração é sobretudo isso: relação. Não é cumprir um rito, não é dizer muitas palavras, mas é uma coisa de coração a coração, é sentir que a nossa vida, em cada dia, está diante do olhar de Deus, é sentir que é no diálogo com esse olhar que a nossa vida se constrói, que a nossa vida, dia a dia, responde às suas próprias expectativas.
Nesse sentido, somos chamados a um esforço de rezar mais, até porque a grande transformação da nossa vida é um dom de Deus, não é apenas um exercício de autocorreção, mas é, sobretudo, acolher o dom de Deus que nos transforma. Nós somos transformados pelo Espírito, não apenas pela nossa vontade. Somos transformados pelo Espírito e por isso é que aquilo que a nós nos parece impossível, Deus pode tornar possível em nós.
Aquelas transformações, que nós não vemos como podem acontecer, Deus permite que elas se realizem em nós. Mas precisamos abrir o nosso coração a essa chegada de Deus, a essa vinda de Deus à nossa vida, através da oração. Tal como o ferro só se dobra a altas temperaturas, e fica como que mole, nós também só atingimos graus de amor, de esperança, de fé nas altas temperaturas da oração – que não tem de ser uma oração especial, que eu não sei fazer, não.
Deus está perto da nossa boca e do nosso coração. Cada um de nós há de encontrar a sua própria oração, o seu próprio caminho, o seu modo de rezar, o seu modo de relacionar-se com Deus, de dizer: “Senhor, eu estou aqui. Senhor, vem. Senhor ajuda-me.” E não dizer mais nada. Neste silêncio, neste eu olho para Deus, Deus olha para mim, crio o espaço para que a comunhão, a comunicação, a relação, verdadeiramente aconteçam. Por isso, que este tempo de Quaresma seja um tempo para descobrir o vigor da oração, a novidade da oração nas nossas vidas.
Depois nós temos o caminho do jejum. E o jejum é um caminho de privação. Nós temos, por vezes, um sentido crítico muito apurado em relação a todos, exceto em relação a nós próprios. Somos capazes de ver o argueiro, o pequeno mato, no olho do nosso irmão, mas não vemos a trave que esconde a nossa própria vista. Nesse sentido, o jejum desenvolve o sentido crítico, porque diz assim: “Eu até tenho direito a isto mas não vou fazer. Ah, mas apetece-me.” Mas eu retraio-me perante aquilo que me apetece, para que o meu eu também não se torne tirânico, não seja caprichoso mas possa seguir uma linha verdadeiramente fundamental. E isto em relação à comida, às coisas que nos dão prazer, mas em relação a tantas outras dimensões da nossa vida, que nós podemos encarar assim, desde a nossa forma de comunicar com os outros, a nossa língua, a facilidade com que falamos dos outros, mas também a dispersão do nosso tempo, o consumismo. Que, de facto, o jejum introduza dinâmicas de sobriedade, que é o mais importante na nossa vida, dinâmicas de frugalidade. Aprender e treinar-se a viver do essencial, é isso que o jejum significa. Neste tempo da Quaresma, todas as sextas-feiras nós somos chamados a fazer abstinência, a não comer carne. Isso também tem um sentido espiritual, porque a carne dos outros seres que nós comemos é derramar sangue, é dizer: “A minha vida é mais importante que as outras vidas.” E pronto, essa é uma decisão. Deus colocou-nos no centro da criação, mas é preciso também temperar a nossa voracidade e o modo mecânico como nós achamos que temos direito a tudo. Por isso, o não comer carne às sextas-feiras é fazer-nos pensar, é dizer: “Eu não quero derramar sangue, eu se calhar posso viver uma vida mais simples, uma vida mais pobre. Posso viver uma vida mais pobre e isso em mim abre espaço para uma riqueza espiritual muito maior.” Por isso era tão importante que, de facto, também a nossa dieta expressasse o tempo da Quaresma que estamos a viver.
E por fim a esmola. A esmola é o encontro com o irmão, nós sermos capazes da condivisão, sermos capazes da partilha. Da partilha do nosso tempo, da nossa vida, porque o verdadeiro dar é dar-se, é dar-se, não é apenas dar uma coisa, é dar-se, estar disponível, estar aberto, ir ao encontro dos outros, e sobretudo do outro que me é mais difícil, que me custa mais. Mas ir ao encontro e estabelecer formas de relação, e também efetuar isso numa partilha material, numa partilha de dons, para que não fique só uma coisa abstrata mas que, de facto, toque todas as dimensões da nossa vida.
Queridos irmãos,
Neste tempo da Quaresma era muito importante que cada um de nós tivesse o seu programa de vida, e em cada uma destas dimensões – oração, jejum, esmola – nós tivéssemos um ponto de esforço, um ponto de caminho, para podermos ir trabalhando. Um ponto que seja pequeno, porque não são grandes coisas que nós podemos fazer e, às vezes, o idealizar é uma espécie de fuga da própria realidade. Uma coisa pequena, que esteja ao nosso alcance, que nós sintamos que conseguimos, realmente, fazer. Claro, com esforço, com decisão, com combate, mas que está de facto ao nosso alcance. E que seja pessoal, não vamos fazer planos para os outros fazerem, para todos fazerem na nossa casa, mas vamos, com muita humildade, traçar um plano de vida, nesta Quaresma, que seja de facto só para nós, mesmo que também outros ao nosso lado também estejam a fazer uma coisa semelhante, mas que nos envolva de facto a nós. Porque, com muita facilidade, achamos que é o outro que precisa, e a Quaresma ajuda-nos a perceber que somos nós que precisamos de revitalizar, de revitalizar. Porque, se calhar, nem nos damos conta como o inverno tomou conta do nosso coração e precisamos desta primavera, que a Páscoa de Jesus acorda na nossa vida.
Jesus preparou-se antes da sua missão. Esteve aqueles 40 dias, e esses 40 dias não foram um passeio. Nós não pensamos: “Ah, vou tomar esta regra de vida, fazer isto, tentar fazer isto, aquilo, e aquilo.” e depois vamos mesmo conseguir. Não, nós dizemos aquilo e depois vamos para a luta, caindo, levantando, esmorrando, tentando, não conseguindo, conseguindo. Jesus esteve neste debate com o Demónio, sendo tentado, mas “Os anjos serviam-no”.
Que nós sintamos que Deus vem em socorro da nossa fragilidade, que Deus vem em socorro da nossa vida vulnerável, e que Ele é capaz de dar consistência espiritual à vida que cada um de nós vive. A Palavra do Senhor é uma palavra forte, exigente, comprometedora, mas também é uma palavra libertadora. Também nós precisamos de liberdade, de libertação. Tanta coisa nos escraviza. Estamos prisioneiros, capturados por tanto egoísmo, tanto individualismo, tanta condescendência, tanta facilidade, tanta autocomiseração. Estamos capturados por tanta coisa que temos de sacudir. A Palavra de Jesus é uma palavra que nos liberta, que nos liberta. Quando Ele diz: “Cumpriu-se o tempo,” e “Está próximo o Reino de Deus, arrependei-vos e acreditai no Evangelho” esta é uma palavra para fazer mulheres e homens novos.
«No deserto um homem sabe quanto vale»
Romeo Ballan, mccj
«No deserto um homem sabe quanto vale: vale quanto valem os seus deuses», isto é, os seus ideais, os seus recursos interiores. Escreve-o António de Saint-Exupéry, o autor do Pequeno Príncipe. No deserto, também Jesus demonstrou quanto vale! No deserto na sua realidade de Deus-em-carne-humana: lá defrontou-se com as tentações de Satanás, saiu vitorioso, embora tendo, mais tarde, na paixão, de pagar as consequências das suas desconcertantes e impopulares escolhas humano-divinas. O momentâneo fracasso da cruz, porém, foi superado definitivamente na ressurreição, com a qual Jesus demonstrou a validade e a bondade das suas escolhas. Jesus precedeu-nos no deserto e, como cristãos, somos chamados a fazer o mesmo percurso. É o único caminho que nos leva à Vida!
A celebração da Quaresma, «sinal sacramental da nossa conversão» (oração da colecta), repropõe os temas fundamentais da salvação e da missão: o primado de Deus e o seu plano de amor para o homem, a redenção que nos é oferecida de maneira gratuita no sacrifício de Cristo, a luta permanente entre pecado e vida da graça, as relações de fraternidade e respeito a manter com os próprios semelhantes e com a Criação… As tentações (Evangelho) não foram para Jesus um artifício-disfarce: foram tentações reais, como o são para o cristão e para a Igreja. «Se Cristo não tivesse vivido a tentação como tentação real, se a tentação não tivesse significado nada para ele, homem e messias, a sua reacção não poderia ser um exemplo para nós, porque não teria que ver com a nossa» (C. Duquoc). Mas dado que foi posto à prova, Ele é capaz de vir em socorro de quem está na provação (cf. Heb 2,18; 4,15).
Jesus defrontou-se realmente com Satanás (v. 13) sobre as possíveis escolhas de método e de caminho para realizar a Sua missão de Messias. Cada uma das três tentações – relatadas nos outros Evangelhos sinópticos de Mateus e Lucas – representa um modelo de Messias, e portanto um modelo de missão. As tentações eram «três atalhos para não passar pela cruz» (Fulton Sheen). A tentação de se tornar: 1º, um «reformador social» (converter as pedras em pão para si e para todos teria garantido um sucesso popular); 2º, um «messias milagreiro» (um gesto espectacular teria garantido fama e brilhantismo); 3º, um «messias do poder» (um poder baseado no domínio do mundo teria satisfeito o orgulho pessoal e de grupo). Jesus supera as tentações: escolhe respeitar o primado de Deus, confia no Pai e faz seu o plano divino para a salvação do mundo. Aceita a cruz por amor e morre perdoando: só assim, quebra a espiral da violência e tira à morte o veneno. Desde então, é possível um caminho novo, em humildade, verdade e fraternidade.
Jesus enfrenta as tentações na força do Espírito (v. 12), do qual está repleto desde o seio de sua Mãe e pelo baptismo acabado de receber (Mt 1,10). É o Espírito da Páscoa, do Pentecostes e da missão. Por vezes, infelizmente, acreditou-se que dinheiro, poder, domínio, presumível superioridade, super activismo, etc., fossem caminhos apostólicos de evangelização. O missionário é tentado também por estas ilusões; precisa, portanto, do Espírito de Jesus, agente principal da evangelização (EN 75) e protagonista da missão RM 21). O Espírito ajuda a compreender que o deserto quaresmal é um tempo de graça (kairós): tempo das coisas essenciais, um tempo a preencher com os valores que perduram, um dom a viver no silêncio, longe dos inquinamentos do barulho, pressa, dinheiro, futilidades, evasões, mentiras… Mais do que uma obrigação penosa, o «converter-se» programático de Jesus é um convite a mudar de caminho; é o percurso verdadeiro que conduz à vida: «acreditai no Evangelho», isto é, no próprio Jesus (v. 15). É Ele a boa notícia a viver e a levar a outros.
No caminho em ordem à Páscoa, os temas da conversão e do baptismo são já apresentados nas leituras de hoje. São Pedro (II leitura) é explícito em vincular à conversão baptismal também a experiência de Noé e dos seus, salvos por meio da água, tornada «imagem do baptismo, que agora vos salva» (v. 20-21), em virtude de Jesus Cristo, morto e ressuscitado (v. 18.21).
Noé não era nem israelita, nem cristão, nem muçulmano, mas «homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos e caminhava com Deus» (Gn 6,9). Nele, Deus estabeleceu a primeira aliança com a humanidade (I leitura), ainda antes que com Abraão: uma aliança universal, com todos os povos. Uma aliança não sobre base étnica ou religiosa, mas simplesmente sobre a base da comum natureza humana. Uma aliança nunca revogada, em vigor hoje e para sempre. Uma aliança na base no diálogo possível com todas as expressões religiosas e culturais. A aliança diz respeito às pessoas – «convosco e com os vossos descendentes» (v. 9) –, mas também «com todos os seres vivos… com todos os animais» (v. 10). Deus é o primeiro ecologista: é cioso de cada uma das suas criaturas! O sinal de tal aliança, escolhido pelo próprio Deus, é o arco-íris sobre as nuvens (v. 13), que se eleva como símbolo da vontade de salvação por parte de um Deus que nunca se cansa da humanidade: nenhuma malvadez humana poderá alguma vez induzi-lo a destruir as suas criaturas. O arco das setas de morte tornou-se, por iniciativa de Deus, arco de bons auspícios: de paz e prosperidade, diálogo e partilha, verdade e fraternidade.
