6.º Domingo do Tempo Comum (B)
Meditação sobre o Evangelho de domingo
Marcos 1, 40-45: «Quero: fica curado!»
Naquele tempo, veio ter com Jesus um leproso. Prostrou-se de joelhos e suplicou-lhe: «Se quiseres, podes curar-me». Jesus, compadecido, estendeu a mão, tocou-lhe e disse: «Quero: fica limpo». No mesmo instante o deixou a lepra e ele ficou limpo. Advertindo-o severamente, despediu-o com esta ordem: «Não digas nada a ninguém, mas vai mostrar-te ao sacerdote e oferece pela tua cura o que Moisés ordenou, para lhes servir de testemunho». Ele, porém, logo que partiu, começou a apregoar e a divulgar o que acontecera, e assim, Jesus já não podia entrar abertamente em nenhuma cidade. Ficava fora, em lugares desertos, e vinham ter com Ele de toda a parte.
“Se queres, tu tens o poder de me purificar” (Mc 1, 40)
Raymond Gravel
É triste contatar que todas as sociedades humanas tiveram e têm ainda seus excluídos, seus párias, seus intocáveis. Será que nós não temos os nossos também hoje? No antigo Israel, como em outras épocas e embaixo de outros céus, eram simplesmente os leprosos os que representavam essa categoria de malditos. É evidente que eles confundiam todas as doenças da pele com a lepra, o que a medicina atual saberia bem diferenciar… Além do mais, como a doença era considerada um castigo divino e a lepra representava um aspecto repugnante, existia uma punição dupla para os leprosos: eles sofriam de uma impureza moral e religiosa, mas também social. Porém, atualmente, não é porque a lepra seja mais estudada e melhor cuidada, que não temos os nossos pesteados, nossos marginais e excluídos, na nossa sociedade e na nossa Igreja. O teólogo francês, Jean Perron escreve: “Os hipócritas, os hipócritas que somos nós mesmos, sempre tiveram necessidade de poder catalogar alguém de impuro, para convencer-se que eles mesmos não o são”. Ainda hoje, nós temos nossos leprosos, e isso reconforta sempre os hipócritas da religião e da política. A partir dos textos da Palavra de hoje, que ensinamentos podemos tirar?
1. Transgredir a Lei: No livro do Levítico, que temos hoje na primeira leitura, apresenta-se o homem atingido pela lepra como um intocável, um morto-vivo. Esse homem perdia toda a sua dignidade humana. Chamavam-no pelo nome da sua doença: o leproso. No evangelho de hoje, São Marcos começa dizendo: “Um leproso chegou perto de Jesus“ (Mc 1, 40). O enfermo de lepra perdia todos os seus bens, sua casa, as suas pertenças… Devia morar fora da cidade ou do povoado: “Viverá separado e morará fora do acampamento” (Lv 13, 46). Além do mais, ele não podia mais entrar em contato com os outros: a sua esposa, seus filhos, seus pais, seus amigos… Quando uma pessoa não tem mais contato com ninguém, é um morto-vivo. E, para ter certeza de que ninguém se aproximaria de um leproso, ele devia andar “com as roupas rasgadas e despenteado, com a barba coberta e gritando: «Impuro! Impuro!” (Lv 13, 35). E, para evitar todo contato com um leproso, ele devia levar uma campainha no pescoço para advertir que ele estava no entorno. A lei proibia severamente o leproso de abordar alguém e, se ele se aproximava de alguma pessoa deixava-a impura.
Então, vejam que no evangelho, há uma infração: um leproso enfrenta a lei aproximando-se de Jesus: “pediu de joelhos: ‘Se queres, tu tens o poder de me purificar’” (Mc 1, 40). É todo um ato de fé; ele se confiou à vontade de Jesus: “Se queres”. Além do mais, ele não pede a cura, mas somente a purificação, isto é, a reinserção, a inclusão na comunidade. O leproso quer recobrar a sua dignidade humana. Mas, há outra coisa: o evangelho de Marcos nos diz que Jesus também transgride a lei: “tocou nele e disse: ‘Eu quero, fique purificado’” (Mc 1, 41). É a purificação instantânea, e assim, a inclusão na comunidade. “No mesmo instante a lepra desapareceu e o homem ficou purificado” (Mc 1, 42). Transgredindo a lei da exclusão social e religiosa, aquele que era identificado pelo seu mal: o leproso, se tornou alguém: o homem. Isso significa que a exclusão desumaniza. O excluído se torna objeto a jogar ou a evitar. O contato com outro ser humano lhe fez reencontrar a sua dignidade; se tornou um homem.
Segundo a regra da época, Jesus envia-o para lhe mostrar ao sacerdote, pois são os sacerdotes os que podem reintegrar às pessoas excluídas da comunidade (Mc 1, 44). E mesmo se Jesus lhe adverte severamente (Mc 1, 43), o homem não se preocupa da recomendação e se torna missionário do evangelho, da Boa Notícia da Salvação trazida pelo Cristo ressuscitado (Mc 1, 45)… De maneira que, agora, é Jesus que se torna leproso, isto é, impuro, rejeitado e excluído. São Marcos escreve: “Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade: ele ficava fora, em lugares desertos” (Mc 1, 45). Por outro lado, o evangelista acrescenta: “E de toda parte as pessoas iam procurá-lo” (Mc 1, 45).
2. Entrar no coração de Deus: O episódio do evangelho de hoje nos diz algo do coração de Deus. Jesus se moveu pela compaixão, isto é, ele ficou emocionado até as entranhas. Ele quer purificar o leproso. Ele estende a mão e o toca. O amor vira as leis. Jesus recria a relação que a Lei tinha rompido. Ele demonstra a sua misericórdia. Toma sobre si o sofrimento do outro. É a única maneira de curar. E para demonstrar que há, de fato, inclusão e reinserção na comunidade, Jesus pede para o leproso cumprir as prescrições de lei: “Não conte nada para ninguém! Vá pedir ao sacerdote para examinar você, e depois ofereça pela sua purificação o sacrifício que Moisés ordenou” (Mc 1, 44). E o evangelista acrescenta: “para que seja um testemunho para eles” (Mc 1, 44).
Em poucas palavras, o evangelista Marcos demonstra o que pode fazer o amor em toda a sua gratuidade. Quando se exprime como compaixão e misericórdia, a cura é, não somente possível, mas automática, e ele se torna testemunho para os outros; de maneira que o homem curado se torna discípulo, missionário: “Mas o homem foi embora e começou a pregar muito e a espalhar a notícia” (Mc 1, 45). Será que não é o São Paulo que nos pede para fazer como ele na segunda leitura, hoje, quando ele nos diz: “Façam como eu, que me esforço para agradar a todos em todas as coisas, não procurando os meus interesses pessoais, mas o interesse do maior número de pessoas, a fim de que sejam salvas” (1 Co 10, 33). E por que tomar Paulo como modelo? Simplesmente porque seu modelo próprio é Cristo, e o Cristo que nos salvou e nos curou de todas as nossas feridas e as nossas exclusões.
Cristo acolheu todas as enfermidades e todos os excluídos sem exceção. Ele nos convida a fazer a mesma coisa. Para chegar a isso, precisa simplesmente de Amor. O exegeta francês Jean Debruynne escreve:“Para Jesus, o Amor que ama é sempre capaz de transgredir todas as proibições. O Amor será sempre mais forte que a regra, Sempre mais urgente que a regra. Quando ele encontra esse leproso em São Marcos, é um excluído que Jesus encontra. Mais do que uma doença médica, a lepra era vivenciada na época como uma enfermidade social. O leproso, como o doente de AIDS dos nossos dias, é um ser rejeitado pela sociedade. Jesus o reintegra e lhe recomenda claramente de não esquecer os passos a fazer para que seja reintegrado com a assinatura dos sacerdotes. Fica evidente que a misericórdia de Jesus não é uma cura, mas um nascimento”. No fundo, incluir, reintegrar, liberar, despertar a esperança de alguém por Amor, é dar-lhe de novo a vida, é fazê-lo renascer.
3. Aceitar pagar o preço do Amor: O preço do Amor é, infelizmente com bastante freqüência, a cruz, e ela se manifesta necessariamente. No evangelho, pelo fato de que Jesus deixa o leproso se aproximar dele, e mais ainda, que o toque e o purifique, Jesus se torna leproso por sua vez, isto é, rejeitado pelos outros. O que significa que Cristo, nos curando, carrega sobre si as nossas doenças, as nossas enfermidades, as nossas feridas, os nossos pecados. Como cristãos, discípulos de Cristo, nós somos convidados a fazer como ele, a liberar as pessoas feridas e a lhes devolver a dignidade, sob o risco de perder a nossa. Mas o Amor deve ir até lá. Por outro lado, não há que ter medo, pois o evangelista conclui dizendo: “E de toda parte as pessoas iam procurá-lo” (Mc 1, 45).
Para concluir, eu gostaria simplesmente de citar um comentário do francês Michel Viot, sobre este tempo litúrgico que chamamos comum, mas que não tem nada de comum: “A força de deixar de lado os leprosos de todos os gêneros, fizemos deles pessoas marginais… Os leprosos são proibidos de serem acolhidos assim como de serem saudados. Mas o próprio Jesus tem a audácia hoje de tocar o intocável. Isso acontece no sexto domingo que chamamos comum. Comum, vocês falam? Será que é comum tocar os reclusos? É comum tornar novo esse homem em sursis? Vamos lá, então! Todo é extraordinário neste domingo. Nada é como sempre. Nada é feito segundo as regras. Jesus o toca e está proibido. Jesus o envia para voltar à comunidade dos vivos e está proibido. É o sinal evidente de um mundo novo que nasce. É dar novamente um rosto humano a todas as proibições do coração, aos recalcados de toda parte, aos desocupados, aos aidéticos, às pessoas com necessidades especiais, aos divorciados, aos homossexuais, aos imigrantes… O Amor faz essas coisas!”.
Jesus também se enfurece
Enzo Bianchi
No evangelho deste domingo, lemos um relato que tem um início repentino, sem especificação de tempo e de lugar, um relato que facilmente nos parece atual, situável aqui e agora: é o encontro entre Jesus e um homem que sofre de lepra.
O leproso era então e ainda é um doente repugnante, a ponto de ser qualificado como um homem morto. Para um judeu, além disso, a lepra era sinal de um castigo preciso de Deus, uma doença mediante a qual haviam sido afetados, pelos seus pecados, a irmã de Moisés, Miriam (cf. Nm 12, 9-10), o servo do profeta Eliseu (2Re 5, 27) e outros pecadores. Grande é o horror, terrível é a reação diante dessa doença que devasta, até a putrefação da carne, o rosto e o corpo dos doentes.
Sendo a lepra contagiosa, ela exigia que o doente fosse excluído da convivência, segregado em algum lugar deserto e reconhecível pelo grito que devia emitir quando visse alguém se aproximar dele: “Sou impuro! Sou impuro!” (Lv 13, 45-46).
Um leproso, então, parecia ser uma pessoa sem possibilidade de relação e de comunhão, nem com Deus nem com as pessoas. Não era apenas um doente, mas também um “impuro”, como um cadáver. Tocar uma pessoa nessa condição significava excluir-se de qualquer ato religioso. Só era possível se aproximar do leproso após o desaparecimento, nele, dos sintomas do mal e após sua “purificação”: esta devia ser reconhecida por um sacerdote, que, com um ato religioso, podia reintegrar a pessoa na comunidade dos fiéis.
E eis o encontro entre Jesus e um leproso que vem até ele, ajoelha-se diante dele e lhe suplica: “Se queres, tens o poder de curar-me!”. Não sabemos nada desse homem, nem podemos avaliar sua vida e sua fé. Certamente, ele tem confiança em Jesus, que lhe parece confiável; ele é atraído por Jesus como por um homem que pode fazer algo por ele. Com audácia, mais do que com fé, portanto, ele se aproxima daquele homem que merece escuta, confiança, talvez até adesão.
E Jesus, diante dele, tem uma reação: justamente porque o olha e sabe o que significa essa doença, precisamente porque sente o fedor das suas chagas e vê seu rosto contorcido, seu corpo devastado, “sente cólera” (orghistheís), enfurecido pela intolerabilidade do mal e do destino que pesa sobre esse homem.
Sim, Marcos nos narra um Jesus colérico, que, precisamente por ser capaz de paixão, tem uma reação de cólera; ele nos descreve como Jesus acha intolerável tal situação para um homem que é seu irmão, homem como ele, igual a ele na dignidade de pessoa humana.
Mas prestemos atenção às palavras de Jesus. Em resposta à súplica do outro, ele não responde: “Eu quero e te curo!”, mas: “Eu quero: fica curado!” (divino passivo). Jesus dá lugar para aquele que purifica, Deus: não pretende ocupa-lo, mas proclama seu desejo e sua vontade de que aquele homem não precise mais ser separado, mas possa ser curado, purificado.
O evangelista, porém, não sabia que, usando algumas expressões que testemunham a humanidade verdadeira e concreta de Jesus, podia despertar estupor, oposição e julgamento sobre o próprio Jesus. De fato, especialmente entre os homens religiosos, sempre há almas mefíticas, tão voltadas a uma santidade formal que se escandalizam com a paixão de Jesus e com sua cólera. Esses religiosos estão sempre em cena. Para eles, Jesus, primeiro, deveria ter pensado no que a Lei prevê e, depois, mostrar seu sentimento de acordo com aquilo que a Lei manda.
Mas, em vez disso, Marcos, querendo mostrar de modo claro e compreensível os comportamentos de Jesus, diz aquilo que para alguns não é suportável: Jesus sente cólera, aqui como em outros lugares (cf. Mc 3, 5: diante dos fariseus; 10, 14: diante dos seus discípulos). Sim, Jesus sente cólera, porque sabia viver o conflito e se rebelar contra o mal, a doença, a situação de escravidão e de segregação que deixada aquele homem como morto. Não era algo justo, e eis então a cólera de Jesus!
Alguns escribas, porém, pensaram em corrigir essa expressão, que, em alguns manuscritos, se tornou: “cheio de compaixão” (splanchnistheís; cf. Mc 6, 34 e 8, 2: diante das multidões). Assim, as pessoas de baixa frequência de sentimentos ficaram satisfeitas com isso…
Na verdade, também na expressão “sentiu cólera”, havia a paixão da compaixão, mas com essa correção, que a versão italiana [e brasileira] segue, o comportamento de Jesus pareceria talvez mais aceitável, mas menos capaz de expressar seus sentimentos.
Naquele ataque de ira, Jesus toma a mão daquele homem, toca-o, entrando assim em relação ou, melhor, em comunhão com ele. Mão leprosa na mão de Jesus, contato vetado pela Torá, toque em uma carne julgada como demoníaca, e seu gesto é acompanhado pela palavra: “Eu quero: fica curado”.
“No mesmo instante – anota Marcos – a lepra desapareceu e ele ficou curado”: aquele leproso está curado, sua confiança em Jesus obteve o resultado esperado, sua oração de compaixão foi ouvida. Ele não é mais um excomungado; antes, é uma pessoa que entrou em plena comunhão com Jesus, que eliminou aquele mal tão horrível e excludente.
Essa deveria ser a atitude do cristão em relação aos doentes e aos pecadores, quando o cuidado e a misericórdia se tornam mão na mão, olho no olho, rosto no rosto, um beijo como o que Francisco de Assis soube dar ao leproso como sinal do início de outra visão e, portanto, de outra vida.
Jesus também diz: “Vai, mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua purificação, o que Moisés ordenou, como prova para eles”. Ele recorda as prescrições da Lei, pede que o doente purificado as observe, mas também se preocupa que seja dado o testemunho aos sacerdotes e aos funcionários do templo.
Essas “observâncias” não seriam necessárias, porque a ação purificadora de Deus ocorreu com eficácia, mas Jesus insiste nelas, para que também no templo se saiba a novidade trazida por ele com sua pregação e sua ação.
Mas, depois da cura, eis ainda um Jesus que não gosta das pessoas “religiosas” que se alimentam apenas de mel. O texto diz que Jesus, “livrando-se dele, o mandou logo embora”. Ocorrida a libertação, Jesus não fica ali recebendo elogios, pedindo que se olhe e se constate sua ação: de fato, ele nunca é tentado pelo narcisismo que espera o reconhecimento pelo bem feito e, às custas de parecer rude e indelicado, desdenha e expulsa aquele homem curado por ele, advertindo-o de não dizer nada a ninguém.
Jesus não quer ser reconhecido como alguém que faz milagres, não quer que o aclamem por ações prodigiosas e, acima de tudo, quer que o segredo sobre sua identidade de Messias seja revelado e proclamado quando ele estiver pendurado na cruz. Só então será lícito, aos que entenderam Jesus, dizer que ele era bom, que era justo (cf. Lc 23, 47), que era o Filho de Deus (cf. Mc 15, 39, Mt 27, 54).
Jesus é discreto diante das pessoas, fica em silêncio e pede para fazer silêncio para não despertar o aplauso, conhece a arte da fuga aos lugares desertos para escapar do fácil consenso dos outros; mas também sente cólera, ofende-se visivelmente diante do sofrimento, da mentira, do desconhecimento da verdade, da preguiça e da covardia das pessoas. E assim, de todas as cidades, vêm procurar, ver, rezar a Jesus. Sucesso? Sim, mas sucesso do qual Jesus sabe se defender, porque está ciente de que aquilo que ele cumpre, ele realiza apenas emprestando olhos, mãos, voz ao Pai, a Deus que o enviou.
Abençoar com o “tangere”
Gianfranco Ravasi
Os gestos de Jesus. Um ensaio entrelaça exegese, teologia, psicologia, linguística, literatura e espiritualidade sobre um tema peculiar: o Cristo evangélico que toca e se deixa tocar. Existe no evangelho de Marcos uma página que marca de maneira inequívoca a originalidade de Jesus e sua descontinuidade em relação ao terreno do judaísmo no qual também pousam seus pés (1,40-45). É o episódio do encontro com um doente particular, o leproso, uma doença não apenas com implicações clínicas (era considerada extremamente infecciosa), mas também ético-religiosas. De fato, para a chamada “teoria da retribuição”, segundo a qual a cada mal causado corresponde uma punição, essa síndrome também era sintoma de uma culpa vergonhosa secreta que tornava o doente um “excomungado”. Por isso, ele era relegado às periferias degradadas, abrigado em cavernas, segregado entre os lixões, como no caso de Jó, aflito de “praga maligna”.
O livro bíblico de normas sacrais, o Levítico, não hesitava: “as vestes do leproso serão rasgadas, e a sua cabeça será descoberta, e cobrirá o lábio superior, e clamará: Imundo, imundo!” (13.45-46). Era, portanto, socialmente um cadáver ambulante, esquivado com horror pelos saudáveis, com medo de serem infectados não apenas fisicamente, mas também moral e sacramente. Aqui está, porém, a escandalosa escolha de Cristo: “Comovido profundamente, ele estendeu a mão, tocou-o e disse-lhe: Eu quero, seja purificado!” Esse gesto, em nome da compaixão, viola as normas sócio-rituais e aquela mão que toca, quase para assumir sobre si o mal, torna-se um sinal provocador e libertador. Como é sabido, Mauriac, no romance homônimo de 1922, introduziria a variante do beijo do leproso. Reconstruímos toda essa cena para nos reportar a um belo ensaio da escritora e exegeta francesa Marie-Laure Veyron, que se intitula precisamente com esta frase evangélica Estendeu a mão e o tocou e que, no horizonte mais amplo da corporalidade, entendida de uma maneira muito mais “simbólica”, ou seja, plena, do que acontecia na cultura grega e até na contemporânea, mira o foco sobre esse verbo, o “tocar”. Aliás, o grego háptomaí aparece 39 vezes no Novo Testamento, enquanto chéir, a “mão” 177 vezes. O tato, um sentido primordial que revela proximidade e reciprocidade, é, portanto, submetido pela estudiosa a uma sugestiva análise semântica com a contribuição da psicanálise para mostrar todas as suas variações. Existe efetivamente, nos Evangelhos, um tocar taumatúrgico para curar ou abençoar, há o contato compassivo e terno, há o apoio da palavra que enriquece e dissolve os significados do gesto, há o reflexo tátil do desejo, mas também há o famoso Noli me tangere dirigido pelo Ressuscitado à Madalena. Basicamente, Veyron ordena essas iridescências temáticas em uma trilogia evangélica desenvolvida de acordo com um desenho narrativo e coerente. Parte-se do tocar que cura e se expressa de diferentes formas: basta pensar na hemorrágica que agarra a orla do manto de Jesus que, pouco depois, segura a mão da filha, aparentemente morta, de Jairo (Marcos 5, 21-43). Em seguida, prossegue-se em direção ao contato físico como sinal do amor de Cristo: é o que acontece com o filho morto da viúva de Naim (Lucas 7: 11-17). E termina com a ternura da prostituta que beija, entre lágrimas, os pés de Jesus, provocado a reação escandalizada do fariseu Simão: “Se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou, pois é uma pecadora! “(Lucas 7,36-50).
Estas são apenas algumas pinceladas sobre um ensaio realmente atraente que sabe entrelaçar olhares diferentes (exegéticos, teológicos, psicológicos, linguísticos, literários, semânticos, hermenêuticos, espirituais), a fim de mostrar todas as nuances e dimensões de um ato espontâneo e criativo, representadas de forma exemplar precisamente por um Jesus que toca e se deixa tocar. E desde que abordamos esse microcosmo que é nosso corpo, podemos combinar o texto de Veyron com uma verdadeira joia da literatura mística occitana, uma obra quase desconhecida inclusive para os estudiosos, A escala do amor divino, que chegou até nós em um único documento, o manuscrito Egerton 945 da British Library. Quem o disponibiliza para nós em uma tradução acompanhada de uma imponente introdução é um dos nossos maiores estudiosos da literatura teológico-alegórica medieval, Francesco Zambon, coadjuvado no comentário e nas notas do texto por outra professora qualificada de Trento, Claudia Di Fonzo. O autor desconhecido, com uma marca espiritual franciscana, eleva nessas poucas páginas uma escada ascendente que leva ao Palácio do Amor, onde é celebrado o abraço entre criatura e Criador. Combinamos esse texto com o estudo anterior sobre o “toque” cristológico porque a escala mística em questão – um símbolo, aliás, clássico na tradição teológica tanto oriental como latina – consiste de cinco degraus que correspondem aos cinco sentidos corporais. Também nesse caso, trata-se uma constelação tradicional que, partindo da Bíblia, se ramifica nos Padres da Igreja, de Agostinho até a Idade Média. A sequência da Escada em questão é articulada de acordo com uma ordem gradual modulada em um horizonte cósmico (o ato criativo é surpreendentemente traçado como uma “balada” realizada por Deus com suas criaturas).
De fato, temos a convicção de que os quatro elementos (terra, água, ar, fogo) tenham em si “doçura, suavidade, perfume, melodia de canto, beleza e candor”. Sobre esse palimpsesto, desenvolve-se o pentagrama dos sentidos: a doçura é percebida pelo paladar, a suavidade pelo tato, o perfume pelo olfato, a melodia pela audição e, finalmente, a beleza pela visão. A tese fundamental é que os sentidos guardam dentro de si uma carga espiritual e estética “analógica”, que leva ao vértice supremo divino, no qual todas as experiências atingem seu auge e, assim, permitem a íntima comunhão da pessoa humana com Deus. Como Zambon escreve no livro, na esteira do Cântico do Frei Sol de São Francisco, “o tema central é o do amor de Deus através de suas criaturas e da progressiva aproximação a ele que pode ser alcançada graças ao uso correto dos cinco sentidos, arranjados numa escada ascendente que vai do mais baixo, do paladar ao mais alto, a visão”. Mais uma vez, temos a desmistificação do estereótipo, segundo o qual a mística seria uma experiência etérea que faz decolar da terra e da corporalidade rumo aos céus míticos e espíritos puros. E é também a reafirmação de um cristianismo que tem seu nó fundamental na “encarnação” pela qual o Logos divino e eterno, como é proclamado no famoso prólogo do Evangelho de João, sarx eghéneto, ” tornou-se carne” (1,14).
Quero. Fica curado!
Ermes Ronchi
Um leproso. O mais doente dos doentes, de doença que não é apenas física, um excluído da sociedade: «Deve rasgar as roupas, desalinhar o cabelo, tapar-se até à boca… será impuro, viverá isolado, e a sua residência será fora do acampamento» (Levítico 13, 46).
E Jesus, todavia, aproxima-se, opõe-se à cultura da exclusão, acolhe e toca o leproso, o último da fila. Toca o intocável. Ama quem não se ama: pela lei de Moisés, aquele homem tinha sido castigado por Deus pelos seus pecados, era um rejeitado do Céu.
O leproso não tem nome nem rosto porque é cada ser humano. Em nome de cada um geme, da sua boca tapada sai uma expressão comovente: «Se quiseres, podes curar-me». Com toda a discrição de que é capaz, diz: «Se quiseres».
Intuo Jesus feliz por este pedido grande e segredado, que lhe aperta o coração e o força a revelar-se: «Se quiseres». Em nome de cada filho da Terra, o leproso pede. E o que quer Jesus? Quer sacrifícios, uma pedagogia do sofrimento para testar a nossa paciência, ou quer filhos curados?
E Jesus feliz por poder revelar Deus, por poder dizer uma palavra última e imensa sobre o coração de Deus, responde: «Quero: fica curado!». Repitamo-lo, com emoção, com paz, com força: eternamente Deus não quer outra coisa a não ser filhos curados.
A mim diz-me: «Quero: fica curado!». A Lázaro grita: «Quero: vem para fora!». À filha de Jairo: «”Talità kum”. Quero: levanta-te!». É a boa nova: Deus que faz graça, que volta a restabelecer a vida, Deus a quem importa a minha felicidade e a minha fidelidade.
A cada página do Evangelho Jesus mostra que Deus é cura! Não conheço os modos nem os tempos, mas sei que luta agora comigo contra todos os meus males, renovando gota a gota a vida, estrela a estrela a noite.
O leproso curado, desobedecendo a Jesus, começa a proclamar e a divulgar o que aconteceu. Recebeu e agora dá, através de gestos e palavras e carne de primavera, a sua experiência feliz de Deus. O imundo torna-se fonte de admiração, o rejeitado é transformado pelo acolhimento.
O que está escrito aqui não é uma fábula, sucede realmente, sucede assim. Pessoas repletas de Deus conseguem hoje fazer as mesmas coisas de Jesus. Repletas de Deus fazem milagres.
Vão às leprosarias do nosso tempo: sem-teto, toxicodependentes, prostitutas, tocam-os, um gesto de afeto, um sorriso, e muitos, milhares e milhares, são literalmente curados dos seus males, tornando-se, por sua vez, curadores.
Tomar o Evangelho a sério traz por dentro um poder que muda o mundo. E todos aqueles que o tomaram a sério e tocaram os leprosos do seu tempo, todos testemunham que fazê-lo é origem de grande felicidade.
Ermes Ronchi In “Avvenire”
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
http://www.snpcultura.org
“Tornar-se leprosos”, como Jesus,
para curar e salvar os irmãos
Romeo Ballan, mccj
Um morto em vida! Tal era o leproso no Antigo Testamento e nas culturas antigas; um doente incurável, considerado um amaldiçoado por Deus, excluído da família e convivência social. A lei judaica (I leitura) impunha-lhe viver sozinho, marginalizado, com a obrigação de gritar a todos os transeuntes a sua condição de impuro (v. 45-46). Nos séculos seguintes as condições dos doentes de lepra registaram melhorias, até à descoberta do bacilo específico por mérito do médico norueguês, Gerhard Hansen (1868). O tratamento veio com o uso da sulfamida, o isolamento nas leprosarias e, depois, os cuidados em ambulatório. Graças às campanhas do aventureiro da caridade e apóstolo dos leprosos, Raoul Follereau (1903-1977), e à assistência capilar de muitos missionários e missionárias e de outros voluntários, diminuiu a má fama dos preconceitos, ganhou terreno a ideia correcta de que a lepra é uma doença como as outras, uma doença que se pode tratar e erradicar, mesmo com baixos custos. Apesar disso, há ainda cerca de 10 milhões de leprosos no mundo, com dezenas de novos casos todos os dias. Em certos aspectos (marginalização, efeitos devastadores…), a gravidade e o medo da lepra fazem lembrar o flagelo moderno da AIDS/SIDA. «A lepra é sintoma de um mal mais grave e mais vasto, que é a miséria», disse o Papa em 2006 e repete-o este ano.
Os missionários sempre prestaram uma atenção particular aos doentes de lepra, socorrendo-os na sua marginalização e favorecendo a sua inserção social. Seguindo o exemplo de Jesus! Ele (Evangelho) vai contra corrente: omite as restrições legais, permite que o leproso se aproxime dele, escuta a sua oração, comove-se, estende-lhe a mão, toca-o, cura-o com uma palavra (v. 40-41). A comoção de Jesus é profunda, visceral (v. 41), como indica o verbo grego usado com frequência pelos evangelistas (splanknizomai) para descrever cenas de ternura: como a comoção de Jesus perante as multidões famintas (Mt 9,36), a compaixão do bom samaritano (Lc 10,33), a misericórdia do pai do filho pródigo (Lc 15,20) e outras.
Curando os leprosos, Jesus realiza um gesto típico da sua missão messiânica (cf. Mt 11.5). Aquele leproso anónimo, de rosto desfigurado e cotos sem dedos, grita a Jesus uma das orações mais belas dos Evangelhos, feita de joelhos, com humildade e confiança: «Se quiseres, podes curar-me» (v. 40). O leproso é um modelo de oração e de missão: «pôs-se a apregoar e a divulgar o que acontecera» (v. 45). O leproso curado, que grita a todos a sua alegria, é uma esplêndida imagem missionária do cristão e da comunidade crente, que proclama as maravilhas do Deus que salva.
Desafiando o contexto das proibições legais, Jesus comove-se no seu íntimo e ousa tocar o leproso com a mão, contraindo a impureza legal; Ele revela assim até que ponto entrou na história humana, pobre-doente-pecadora-marginalizada, tocando a sua profundidade, assumindo a sua doença, a maldição, o ostracismo social… A história do leproso encerra todo o mistério pascal de Jesus e da humanidade inteira. Certamente é leprosa a família humana na obscuridade do seu sofrimento e do seu pecado, razão pela qual tem necessidade de Alguém que se aproxime dela, a toque, a cure, a salve, a conduza à vida, a leve a viver de comunhão. Este Bom Samaritano é Jesus, que se fez ele mesmo leproso: «não tem aparência nem beleza… desprezado e rejeitado pelos homens, homem das dores (Is 53,2-3). Assim «Ele carregou sobre si os nossos sofrimentos… O castigo que nos dá salvação abateu-se sobre Ele; pelas suas chagas fomos curados» (Is 53,4-5). Pela sua morte-ressurreição somos salvos e todos os que fomos salvos proclamamos – juntamente com Ele e em seu nome a todas as gentes – as maravilhas do Pai da Vida, que nos chama a todos, sem exclusões de espécie, a ser seu povo novo, sua família, animados pelo único Espírito de amor.
O missionário está chamado a derribar as barreiras legais, ambientais, culturais, a fazer-se «tudo para todos», para ajudar os outros, como diz S. Paulo (II leitura): «Esforço-me por agradar a todos em tudo, não procurando o meu interesse, mas o interesse de muitos, para que cheguem à salvação» (v 33). Seguindo os passos de Jesus, Servo sofredor, o missionário é chamado a fazer-se próximo dos últimos, a carregar sobre si o sofrimento dos irmãos e das irmãs mais necessitados e marginalizados, disposto a sofrer recusas, incompreensões e perseguição, até ao martírio. É ainda S. Paulo que insiste: «Tudo eu faço pelo Evangelho» (1 Cor 9,23). Nisto se joga a fidelidade e a credibilidade do missionário.
O encontro de dois transgressores
Nesta perícope de Marcos percebemos dois movimentos, o primeiro o do leproso à Jesus, e o segundo do Jesus ao leproso. Quando os autores dos dois movimentos se encontram, se produz o milagre!
Vamos agora a adentrar-nos no leproso, que no meio da sua dor tem a ousadia de se aproximar a Jesus. A lepra, em Israel, era um sofrimento duplamente cruel, por causa da doença em si e pela exclusão social e religiosa que a lei imponha.
Pelo qual quem tinham essa doença deviam abandonar suas casas.,família e ir morar fora da cidade, e não se aproximar de ninguém.
Mas este homem confiando em que Jesus poderia curá-lo, movido pela fé sai da sua marginalização e solidão e se atira aos pés do Senhor, pedindo-lhe: “Se queres, tu tens o poder de me purificar”.
A atitude de este homem ensina-nos várias coisas. A primeira é que, reconhecendo sua doença, não se deixou consumir pela dor, popularmente diríamos “não baixou os braços”. Foi mais forte nele o desejo de viver que ficar na passividade, esperando que a morte chegasse a visitá-lo. Em segundo lugar a esperança de encontrar em Jesus a cura da sua dor, lhe fez tirar forças de dentro, para ir ao seu encontro, sem lhe importar quebrar a lei que se lhe tinha imposto.
Hoje continuam existindo pessoas que sofrem de diferentes lepras físicas, afetivas, e continuam sendo excluídos de nossa sociedade. Por exemplo, os enfermos de aids, as prostitutas, os meninos e meninas de rua…além de sofrer a falta de saúde, a exploração, o abandono extremo, são considerados as manchas de uma sociedade “farisaicamente” pura.
Elas são convidadas, aceitando sua limitação a colocar sua esperança em Jesus e saindo de si mesmas, quebrando o fechamento que o mesmo sofrimento provoca e as fechaduras que a sociedade injustamente impõe, implorar: Senhor se queres podes curar-me!
Cada um/a de nós sofre sua lepra, com todas as conseqüências que isso traz, para iniciar o mesmo movimento do leproso à Jesus, que precisamos?
Agora vamos nos deter na pessoa de Jesus, a quem o leproso reconhece com poder, e a sua vez Marcos apresenta cheio de compaixão. Jesus é sensível à dor deste homem, antes de tocá-lo, podemos dizer que Ele se deixou tocar pelo sofrimento deste excluído que tinha nele colocado sua única esperança.
Três verbos mostram o movimento de amor de Jesus ao leproso: “estendeu a mão, tocou nele e disse..”. Através de seus gestos e palavras põe de manifesto seu amor salvífico: “Eu quero, fique purificado”.
É agora Jesus quem transgrede a lei, porque ela não permitia que ninguém toca-se a um leproso, só pena de ficar impuro. Para Ele é mais importante a saúde, a liberdade da pessoa que o cumprimento da lei. O amor faz de Jesus um homem livre, e seu amor liberta: “o homem ficou purificado”.
Nossos gestos e palavras, são movidos pelo amor e por isso colaboram no processo de libertação de nossos irmãos, irmãs? Ou não?
Finalmente vamos refletir nos últimos dois pedidos que Jesus faz ao ex-leproso.
Porque lhe pede que não conte para ninguém? Este silencia que Jesus pede se conhece com o nome de segredo messiânico. Para entendê-lo, temos que saber que todo o evangelho de Marcos buscar responder a pergunta de “Quem é Jesus?”.
O evangelho vai respondendo aos poucos, por meio de ações concretas. O retrato do Messias, só fica pronto no final, o seja com Jesus na cruz. Aí temos uma idéia exata de quem ele é, antes de isso a resposta é sempre parcial.
O fato de Jesus mandar o leproso curado se mostrar ao sacerdote pode ter dois sentidos. Naquele tempo, os sacerdotes eram os que deviam declarar sadio alguém que fora leproso. Seria, então o caso de confirmação da cura. E dessa maneira o homem fica reintegrado na vida social e religiosa.
Mas pode ter um sentido de denúncia, como se com isso Jesus estivesse dizendo às lideranças religiosas da época, muitas vezes comprometidas com a injustiça e a opressão do povo: vocês são incapazes de libertar um ser humano.
Mas o leproso curado não pode esconder sua felicidade, e comunica por todas partes a Boa Nova!
Unamo-nos a sua alegria, reconhecendo também nós todas as vezes que o Senhor com seu amor nos curou, nos libertou.
A compaixão de Jesus
Frei Acílio Mendes
A compaixão de Jesus
não é umas “cócegas” de sentimentalismo,
mas é um compromisso levado até ao fim
para com as nossas “mortes”.
Sim, Ele carrega as nossas lepras,
e é assim que também sairá fora da cidade
para ser crucificado.
Ele ensina-nos como actuar neste mundo
onde enfermam as relações.
Não temer assumir a dor do outro,
não temer habitar os desertos
onde os seres humanos indesejados
são lançados com as suas lepras…