O ITINERÁRIO ESPIRITUAL DOS DOZE

SUMÁRIO

Introdução geral
Prefácio ao Evangelho de São Marcos

Primeira Meditação:
O Mistério de Deus

  • 1ª Série: Textos preliminares (Mc 1,2; 1,3; 1,10-11)
  • 2ª Série: Indicações esclarecedoras (Mc 1,14; 1,15; 1,35; 2,7)
  • 3ª Série: Temas bíblicos
  • 4ª Série: Temas reveladores

Segunda Meditação:
A Ignorância dos Discípulos

Terceira Meditação:
O Chamamento de Jesus

  • a) As vocações junto ao lago
  • b) A vocação no monte

Quarta Meditação:
A Crise do Ministério Galilaico de Jesus (as parábolas da semente)

  • a) A crise do ministério galilaico de Jesus
  • b) A crise do catecúmeno na Igreja primitiva
  • c) a nossa crise
  • d) A resposta em parábolas

Quinta Meditaçãos:
Jesus em Acção

Sexta Meditação:
O Mistério do Filho do Homem

  • a) Primeira predição da paixão: Mc 8,31-37
  • b) Segunda predição da paixão: Mc 9,31-32
  • o) Terceira predição da paixão: Mc 10,32-34

Sétima Meditação:
A Paixão de Jesus

Oitava Meditação:
A Ressurreição (e a vida oculta de Jesus)

Apêndice:
O Combate Espiritual

Carlo Maria Martini
Ed Loyola, S. Paulo 1988
Retiro de 1974.

Gostaria de dar apenas duas indicações que podem servir para entrar no trabalho dos Exercícios que gradualmente iniciaremos amanhã.

A primeira indicação sobre o tema e a segunda indicação sobre os actores dos Exercícios.

Escolhi como tema o Evangelho de São Marcos e por isso nos ocuparemos com a leitura deste Evangelho. Não faremos uma leitura continuada (ou seja, não tomaremos o Evangelho capítulo por capítulo), e nem uma leitura directamente temática (isto é, não nos deteremos em alguns temas do Evangelho de Marcos, por exemplo, sobre o Reino de Deus, as parábolas, os milagres etc.). Antes, faremos uma leitura catequética porque ela nos ajudará a percorrer uma via, um caminho espiritual mais em harmonia com um curso de Exercícios Espirituais.

Que entendemos nós por leitura catequética?

Devemos partir do facto provável que São Marcos apresenta uma catequese, um manual para o catecúmeno. Em outras palavras, o Evangelho de Marcos é um Evangelho feito para aqueles membros das primitivas comunidades que começam o itinerário catecumenal. Para Marcos pode-se falar, sem mais, de Evangelho do catecúmeno. Mateus é, ao contrário, o Evangelho do catequista; ou seja, o Evangelho que dá ao catequista um conjunto de prescrições, doutrinas, exortações. Lucas é o Evangelho do doutor; isto é, o Evangelho dado àquele que quer um aprofundamento histórico-salvífico do mistério, numa visão mais ampla. João, por fim, é o Evangelho do presbítero, aquele que ao cristão maduro e contemplativo dá uma visão unitária dos vários mistérios da salvação.

Marcos é o primeiro destes quatro manuais: o manual do catecúmeno; é por isso que está centralizado num itinerário catecumenal. Ele pode ser condensado em torno da palavra de Jesus aos seus: “A vós é dado o mistério do Reino; aos outros, tudo é comunicado por meio de parábolas” (Mc 4,11).

O Evangelho de Marcos, com efeito, mostra-nos como pelas parábolas, isto é, pela visão exterior do mistério do Reino, podemos penetrar no interior e receber este mistério. Portanto em Marcos há um caminho catecumenal que, contudo, ainda não é o objecto específico destas as nossas considerações.

Neste itinerário catecumenal que se desenvolve ao longo de todo o Evangelho de Marcos, desempenham papel importante os doze apóstolos.

Proponho, pois, como objecto específico, segundo o qual consideraremos o Evangelho de Marcos, o itinerário espiritual dos Doze. Neste itinerário cada um de nós poderá rever, reflectir, repensar o próprio caminho interior.

A segunda indicação diz respeito aos actores deste retiro: quem age nestes dias. Os actores são três.

O Espírito Santo é quem conduz o retiro. Com relação a ele, a pergunta a fazer é a seguinte: Quid vult? Que quer de mim o Espírito neste retiro? Para onde quer conduzir-me?

O segundo actor, guiado pelo Espírito, sois cada um de vós. A pergunta que deveis fazer-vos é esta: Quid volo? Que desejo eu, que estou pretendendo, que me proponho? Deixemos que aflorem gradualmente, na solidão, os nossos desejos interiores, as nossas necessidades, frequentemente sufocados pela urgência dos outros, pelo clima de todo dia, adverso ao silêncio e à oração.

A terceira pessoa que entra em acção sou eu mesmo. Não serei mais do que um sugeridor: e o sugeridor tem a tarefa de facilitar o trabalho dando, aqui e ali, alguma indicação temática que ajude cada um a reflectir sobre o itinerário dos Doze no Evangelho de Marcos. Sendo eu um sacerdote jesuíta, quero notar por fim que o itinerário ascético (asketikós, de askein = exercitar), como é proposto no Evangelho de Marcos, é o mesmo que, com outras palavras, é reflectido no livro dos “Exercícios espirituais” de santo Inácio.

Termino estas palavras de introdução acrescentando um pensamento que tiro do último e interessante livro de Hans Urs Von Balthasar: O complexo anti-romano (trad. italiana de G. Moretto, Brescia, 1974). O Autor examina amplamente como pode existir hoje na Igreja um fenómeno de oposição a Roma, típico do o nosso tempo.

Uma das coisas que me impressionou, lendo o livro, é a importância que ele dá ao princípio mariano da Igreja. As palavras que quero citar e às quais talvez poderemos voltar, referem-se a este fato: a Igreja diz ele é petrina (isto é, apostólica), mas ao mesmo tempo é também mariana.

Balthasar mostra difusamente como os dois aspectos, que se compenetram mutuamente, apresentam a face completa da Igreja. De certa forma, um integra o outro e, do ponto de vista do aspecto também exterior, humano e afectivo da vida diária, o completa.

Por isso, devendo meditar sobre o itinerário dos Doze em Marcos, devemos ter presente Maria Santíssima em a nossa oração para que nos ajude a penetrar sempre mais no coração da Igreja, como o Evangelho a apresenta; ou seja, em toda a sua totalidade, de modo a poder confrontar-nos diariamente com esta Igreja apostólica e mariana.

Perguntamo-nos: existe um itinerário dos Doze no Evangelho de Marcos? No Evangelho de Marcos, os Doze têm uma importância suficiente que nos permita seguir com certo rigor exegético o seu caminho?

Começamos com uma constatação de leitura: no Evangelho de Marcos aparece com bastante frequência a palavra: os Doze (oi dódeka). Existem sete passagens que podemos chamar as passagens dos Doze.

A primeira menção está no capítulo terceiro: “Instituiu Doze” (3,14); repetida em 3, 16: “Fez os Doze”. Encontramos a segunda no capítulo seguinte: “Quando ele ficou sozinho, os seus, junto com os Doze, perguntaram-lhe o sentido das parábolas” (4,10).

A terceira passagem encontra-se no capítulo sexto: “E chama os Doze” (6,7). Aqui é interessante notar que o grego repete o mesmo verbo (proskaléitai) de Mc 3,13: “Chamou os que queria para junto de si”.

Intimamente relacionados com esta passagem, no fim do mesmo capítulo, temos os apóstolos que se reúnem junto a Jesus: os Doze são convidados por ele a irem a um lugar deserto e solitário (6,31).

A quarta vez encontra-se no capítulo nono, em algumas instruções de Jesus aos discípulos: Ele “chamou os Doze e disse-lhes: se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último” (cf. 9,35; 5-50).

A quinta menção dos Doze está no capítulo seguinte: a terceira predição da morte e ressurreição: 10,32-35.

A sexta passagem está contida no capítulo onze: Jesus, depois de ter entrado “em Jerusalém, no templo, e depois de ter observado todas as coisas, como já era tarde, saiu com os Doze para Betânia” (11,11). Por isso, a presença dos Doze no apostolado hierosolimitano de Jesus é lembrada expressamente.

Por fim, a sétima vez ocorre no capitulo catorze, quando se inicia a Paixão. Aqui a menção dos Doze volta mais vezes porque todo o capítulo é apresentado em estreita conexão com os Doze. “Então Judas Iscariotes, um dos Doze… (14,10). “A tarde já tinha caído quando Jesus veio com os Doze…“ (14,17). “E disse-lhes: é um dos Doze, que põe comigo a mão dentro do prato” (14,20). E por fim: “…Judas, um dos Doze…” (14,43).

Portanto, a palavra os Doze aparece com frequência em Marcos; e aparece em intervalos regulares em sete diferentes contextos, quase a cada dois capítulos. Do capítulo terceiro ao capítulo catorze, a via do discípulo que aos poucos chega ao conhecimento de Deus é descrita pelo evangelista como assinalada pela presença dos Doze. A partir do momento da sua constituição (cap. 3) até à dispersão na hora da prova com a traição de Judas (cap. 14) esta presença é sublinhada em toda a secção principal do Evangelho.

Podemos afirmar: os Doze acompanham o caminho de Jesus desde a sua primeira afirmação até à prova final.

Devemos notar que a estes textos, onde aparece a palavra os Doze e que podemos tomar rigorosamente como ponto de partida para a nossa reflexão, deveriam ser acrescentados outros três textos que sem uma menção directa tratam contudo de episódios que lhes dizem respeito. Eu mencionaria sobretudo no capítulo 1,16.20, os primeiros chamamentos; isto é, os primeiros quatro chamados junto ao lago, os primeiros quatro dos Doze; no capítulo 8,27-30: Pedro, que em nome dos Doze, confessa que Jesus é o Cristo; no capítulo 16,7: o novo chamamento dos Doze, para que se reunam a Jesus na Galileia, depois da Ressurreição.

Se levarmos em consideração todos os episódios mencionados, teremos uma espécie de estrutura apostólica da versão marciana. Por isso, está confirmada a possibilidade de meditar o itinerário dos Doze do Evangelho de Marcos. Possuímos dez perícopes apostólicas (sete mais três), em lugares importantes do Evangelho. Elas têm a sua origem numa afirmação inicial: “Para que estivessem com ele” (3,14).

Toda a carreira dos Doze inicia-se a partir deste momento fundamental da sua existência que é “estar com Jesus”. E tudo o que segue é aprofundamento daquilo que significa concretamente “estar com Jesus” para a vida de um homem chamado à intimidade pessoal com o Senhor.

Eis por que aquela frase tão dura, tão inesperada: “E instituiu Doze para que estivessem com ele” (3,14), na sua própria rudeza está cheia de imenso significado e contém em germe toda a vocação dos apóstolos. As dez perícopes mostram o caminho segundo o qual os apóstolos chegaram verdadeiramente a estar com Jesus e a possuir o mistério do Reino: “A vós é dado o mistério do Reino de Deus” (4 11). Estar com Jesus, receber dele o mistério do Reino, são duas expressões que descrevem a identidade dos apóstolos e o seu caminho.

Podemos fazer uma última observação sobre este itinerário. Nele o momento da penitência não é colocado no início, mas o encontramos sobretudo no fim, com a prova da Paixão, no capítulo 14. No início há apenas um aceno a ela, porque, em Marcos, não é apresentado um itinerário de conversão que começa com a penitência e prossegue com a descoberta de estar com o Cristo, mas nos é apresentado um chamamento a estarmos com Cristo. Este chamamento deve ser gradualmente aprofundado, até reconhecer, numa reflexão penitencial, quanto ainda nos falta para sermos fiéis a uma vocação já existente.

Por isso, seguiremos o caminho de Marcos sem fazer uma análise rigorosa de cada perícope. Mas nós as teremos presentes como pano de fundo, de modo a poder entender como a revelação, progressiva do mistério do Reino, se realiza naqueles que são chamados a “estarem com Ele”.

Meditaremos o caminho que estas perícopes pressupõem ou indicam: isso significa que nos colocaremos no Lugar dos Doze e nos perguntaremos:

  • Que atitude supõe nos Doze este colocar-se à escuta com relação a Jesus?
  • Que mentalidade encontra neles?
  • Que pressupostos de fé são exigidos, que caminho se quer fazer percorrer; e que provações apresenta esta via?
  • Como acontece a gradual revelação do Reino de Deus para que se compreenda não só com palavras, mas com factos o que significa “estar com Ele”?

Eis o caminho que procuraremos palmilhar.