29° Domingo do Tempo Comum (ciclo A)
Mateus 22,15-21
Referências bíblicas
- 1ª leitura: “Tomei Ciro pela mão para submeter os povos ao seu domínio” (Isaías 45,1.4-6)
- Salmo: Sl. 95(96) – R/ Ó família das nações, dai ao Senhor poder e glória!
- 2ª leitura: Recordamos sem cessar vossa fé, vossa caridade e vossa esperança (1 Tessalonicenses 1,1-5)
- Evangelho: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22,15-21)
Um Messias como não se esperava
Marcel Domergue
Deus e César

Não seria correto acreditar que a passagem do evangelho que lemos hoje seja por si mesma evidente e sem nenhum problema. Pois ela, de fato, reúne algumas das questões mais embaraçosas que atualmente se põem aos cristãos: tem a nossa fé alguma coisa a dizer com respeito ao funcionamento das nossas sociedades laicas? Não será a «religião» um assunto totalmente privado? À primeira vista, Jesus parece manifestar-se neste sentido. Problemas de impostos, de legislação social etc. não dizem respeito à fé. Certa vez não disse ele que ninguém o estabelecera para ser juiz ou árbitro de nossas heranças (Lucas 12,13)? Digamos que, nas coisas e no desenrolar dos acontecimentos, há uma lógica que, para ser exercida, não carece de nenhuma referência a Deus. Logo adiante veremos o sentido que é preciso dar a esta afirmação. Mas devemos admitir que pessoas que nunca ouviram falar de Deus nem do Evangelho podem tomar decisões e levar toda uma vida conforme a justiça e a verdade. Assim, pois, sem que o saibam, são autênticos filhos de Deus. Não há necessidade de vivermos com o nariz sempre para cima, esperando que Deus nos venha inspirar em decisões sempre conformes à sua vontade, vontade que, em tal contexto, se põe como mítica. As coisas falam por si mesmas e submeter-se ao real equivale a submeter-se a Deus. César é o gestor – em princípio, justo – da nossa vida social. No horizonte, podemos ver aí a separação entre Igreja e Estado.
Lei de Deus, lei do que é humano
Percebemos que o que acaba de ser dito é um pouco sumário. Corremos de fato o risco de imaginar dois domínios totalmente separados: de um lado, o universo da fé; e, do outro, um universo totalmente profano. Mas como pensar que seja lá o que for possa escapar de Deus? Seria o mesmo que admitir não ser Deus o criador de tudo o que existe! Não ser Ele a fonte única do real! Ou que existissem coisas que lhe escapassem e que, por consequência, não fossem nem ilustração (imagem) nem revelação do que Ele é. Ora, as coisas todas falam de Deus, conforme nos explica Paulo na Carta aos Romanos 1,20, acompanhando Sabedoria 13. Nada escapa à sua Lei. Numa outra linguagem, digamos que nada pode existir sem se construir segundo o Amor. Muito abstrato tudo isso? Não acreditamos, porque encontramos aí a fonte e a justificação de todo o trabalho dos crentes, tendo em vista uma sociedade mais justa. Mas, para que isso soe verdadeiro, devemos dizer que não há valores especificamente cristãos ou, antes, que estes valores somente são cristãos na medida em que, ao mesmo tempo, são humanos, o que nos põe no mesmo nível de todos os homens de boa vontade. César não teria poder algum se não lhe fosse dado «do alto» (João 19,11), mas deve-se confiar em seu julgamento e decidir com liberdade, para agir segundo Deus. Então, dando a César o que é de César, neste mesmo ato, damos a Deus o que é de Deus.
Deus nos vem também por César
Podemos concluir de tudo isso que devemos trabalhar para que as nossas sociedades se construam sobre o amor, assim como nos foi revelado em Cristo, mas sem que usemos argumentos de fé, de religião ou, resumindo, de qualquer vontade de Deus. Estamos a serviço de Deus servindo os outros, mas não podemos nos servir de Deus para nos justificar e impor as nossas escolhas. Isto seria fazer de Deus o instrumento da nossa dominação: não temos sabido sempre evitar esta perversão e muitas vezes temos confundido soberania de Deus com soberania da Igreja. O anticlericalismo é fruto direto do clericalismo. Deus pode muito bem cumprir a sua obra de amor pela ação dos não crentes. É o que nos revela a primeira leitura. Vemos aí que Ciro, rei dos Persas, ignorando tudo da fé de Israel, foi quem cumpriu o desígnio de Deus, restabelecendo o povo escolhido em sua soberania. O texto o chama de «consagrado», ou seja, «ungido», palavra que pode ser traduzida por «cristo». Deus tomou-o pela mão direita e o chamou por seu nome. Podemos dizer que Ciro, o pagão, é uma figura de Cristo. Por certo, este homem acredita simplesmente fazer o que é o bem. Eis porque Deus passou por ele. Deus revela assim que está ativo até mesmo aonde não se esperava. «Embora não me conheças, eu te cinjo, a fim de que se saiba desde o nascente do sol até o poente que, fora de mim, não há ninguém» (Isaías 45,5).
Nós somos imagens de Deus
Raymond Gravel
Às três parábolas do Reino dos três últimos domingos, se seguem, para as próximas duas semanas, duas controvérsias entre Jesus e seus adversários, os fariseus: a primeira (deste domingo) sobre o imposto pago a César e a segunda (domingo próximo) sobre o maior mandamento. Em Jerusalém, onde se aproxima a condenação e a morte de Jesus, vemos que os fariseus estão indispostos e procuram um meio para prender Jesus. Mas Jesus não permite e podemos dizer hoje que ele lhes devolve na mesma moeda: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21). Não devemos esquecer que este texto de Mateus, assim como todos os outros, foi escrito depois da Páscoa, à luz da fé pascal, para uma comunidade cristã que certamente vivia em conflito com os romanos, mas especialmente com os judeus que consideravam o cristianismo uma seita temível e perigosa.
1. A controvérsia. Para compreender a controvérsia de hoje, temos que explicar o que é o imposto pago ao imperador, o tributo a César… Estamos na Judeia, uma província de Roma, no primeiro século da era cristã. As pessoas estavam sobrecarregadas com impostos. Havia um imposto que era cobrado para o rei Herodes, outro para o Templo de Jerusalém e os sacerdotes e um outro para o imperador de Roma, além de alfândegas, impostos e pedágios que todos os judeus tinham que pagar… E pior ainda, quando o imperador de Roma, César Augusto se divinizou a si mesmo, ele mandou inscrever na moeda: “O Divino César’, o que chocou alguns líderes judeus que se recusaram não apenas a pagar o tributo a César, mas até mesmo de usar sua moeda. No tempo de Jesus, havia os herodianos e os saduceus que mantinham boas relações com Roma; portanto, a moeda do império circulava pela Judeia. Por outro lado, os fariseus e os zelotes se opunham firmemente a isso… O que envenenava as relações entre Roma e a Judeia.
Esta situação nos permite compreender a cena do evangelista Mateus, onde vemos Jesus sendo questionado pelos discípulos dos fariseus, juntamente com os herodianos: “É permitido pagar o tributo a César, sim ou não?” (Mt 22, 17). A pergunta é realmente uma armadilha: quer Jesus responda sim ou não, ele se enrosca de uma ou de outra maneira. A fórmula: “É permitido…’, é a fórmula clássica para a observância da Lei de Moisés. Se Jesus responde que sim, isso significa que ele está em conluio com os romanos, que idolatram o imperador; mas se ele responde que não, isso significa que ele convida à desobediência e incentiva movimentos extremistas como os zelotes à revolta contra a ocupação romana.
Portanto, a resposta de Jesus é uma inversão da situação: ao pedir para ver uma moeda, ele arma uma armadilha, por sua vez, para os fariseus e os herodianos; ele desmascara sua hipocrisia, já que eles utilizam a moeda do imperador que eles carregam consigo, contra eles. Ele lhes disse: “De quem são esta efígie e esta inscrição?” (Mt 22, 20). Eles devem, portanto, responder à sua própria pergunta… E para mostrar que a política, o poder e o imperador não tinham nada a ver com Deus, Jesus acrescenta: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21).
A mensagem é esta: se a imagem cunhada na moeda é do próprio César, isso significa que a moeda pertence a César. Mas se nós seres humanos somos à imagem de Deus, isso significa que nós somos de Deus… Somos rostos de Deus. Pela dupla sentença: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é Deus”, Jesus desdiviniza o imperador e dessacraliza a sua moeda, e reconhecendo seu valor e devolvendo-o à sua própria responsabilidade. Ao mesmo tempo, Jesus afirma que o imperador não é contrário a Deus… O que pertence a Deus é de Deus e César não tem nenhum poder sobre isso.
2. Nossa dupla realidade humana. Infelizmente, muitas vezes este texto de Mateus foi usado para justificar a separação entre a Igreja e o Estado, entre a religião e a política, como se se pudesse separar completamente a dimensão espiritual e a dimensão material da nossa realidade humana. É verdade que as religiões não têm de impor seus pontos de vista às sociedades civis em sua visão sobre o mundo e sobre o modo de viver em sociedade. No entanto, as religiões podem dar as suas opiniões, interpelar as pessoas, propor um ideal evangélico… mas se o fizerem devem fazê-lo no respeito a cada um: sem julgamentos, sem condenações, com o cuidado da justiça, da equidade, da igualdade na dignidade em vista da Paz e da harmonia entre nós.
A este respeito, penso que a fé cristã influenciou muito as nossas sociedades ocidentais. É justamente esta influência religiosa que está na origem da Carta dos Direitos e das Liberdades, e que permite às minorias serem reconhecidas e respeitadas pela maioria. Entretanto, se as religiões se opõem à evolução dos povos e das sociedades e se elas julgam e condenam a novidade, isso significa que as religiões são contrárias ao ideal evangélico, proposto por Cristo que os líderes religiosos dizem representar. Neste caso, certamente não deveria surpreender o fato de que os religiosos sejam criticados, abandonados e até mesmo rejeitados pelos cristãos e cristãs de hoje.
Na segunda leitura, São Paulo, em sua primeira carta aos Tessalonicenses (por sinal, é o texto mais antigo do Novo Testamento escrito em Corinto aproximadamente no ano 51 d.C.), nos lembra que a vida cristã repousa sobre três pilares: a fé, a esperança e o amor. Ele diz: “Sem cessar, conservamos a lembrança de vossa fé ativa, de vosso amor sacrificado e de vossa perseverante esperança, que nos vêm de nosso Senhor Jesus Cristo, diante de Deus nosso Pai” (1Ts 1, 3). Se nós nos apoiarmos nestes três pilares da fé cristã, o Evangelho que proclamamos não será uma simples palavra, mas um poder, uma ação do Espírito Santo, uma certeza absoluta (1Ts 1, 5): ela é a Palavra de Deus.
Apoiar-se sobre estes três pilares da fé cristã é ver o mundo de forma diferente; isso dá uma qualidade de ser e de agir que promove a justiça e a paz. Isso humaniza a sociedade e as pessoas que a compõem, e possibilita a universalidade e a pluralidade em nosso mundo. Assim, a Palavra de Deus não é simplesmente um texto bíblico que podemos ler e reler todos os domingos; é uma Palavra que expressa a fé, a esperança e a caridade da Igreja na sua realidade histórica e teológica. O que era verdade para a comunidade de Tessalônica, também é verdade para as comunidades cristãs de hoje.
Concluindo, a laicidade não significa que um cristão não deva exercer uma função política na sociedade civil. Pelo contrário, ele pode fazê-lo, mas deve fazê-lo no respeito pelos outros que não compartilham a sua fé. Ser cristão não é impor uma fé aos outros. Ser cristão é dar testemunho de sua fé e esperança aos outros; é a única maneira de fazê-los querer crer e esperar. Sobre o Evangelho de hoje, Santo Agostinho dizia: “Do mesmo modo como César busca a sua imagem em uma moeda, Deus procura sua imagem na sua alma. Dai a César, diz o Salvador, o que pertence a César. O que César exigiu de ti? Sua imagem. O que o Senhor pede de ti? Sua imagem. Mas a imagem de César está em uma moeda, a imagem de Deus está em ti.”
Missão é anunciar um Deus sempre ‘outro’
Romeo Ballan mccj
Jesus no Evangelho desmonta a armadilha que os fariseus e os herodianos lhe estavam a preparar sobre o tema melindroso dos impostos a pagar ao imperador de Roma (v. 17). Jesus distingue, ou melhor transtorna o modo de entender a autoridade política-humana e a autoridade suprema de Deus. A «moeda do tributo» em questão (v. 19), de ouro ou outro metal, era cunhada pelo imperador, que era seu proprietário; o devedor era apenas um seu proprietário temporário, com a obrigação de devolução-restituição ao imperador. Um dever que também Jesus reconhece (v. 21). Mas aquela moeda continha a inscrição «ao divino César» ou «ao deus César», que Jesus rejeita e declina profeticamente: «Dai a Deus o que é de Deus» (21). César pode ter um certo direito sobre as coisas, mas não sobre as pessoas. «César não tem direito de vida e de morte sobre as pessoas, não tem o direito de violar a sua consciência, não pode apoderar-se da sua liberdade. A César não dizem respeito o coração, a mente, a alma. Dizem respeito a Deus somente. A cada poder humano é dito: não te apropries do homem. O homem pertence a um Outro. Pertence de Deus… Para Jesus, Deus não é o poder para além de qualquer poder, é amor. Não é o dono das vidas, é o servidor dos vivos. Não é um César maior que os outros césares, mas um servo sofredor por amor. Um modo completamente diferente de ser Deus» (E. Ronchi).
A Palavra de Deus neste domingo lança uma luz nova sobre as relações entre homem e homem, entre homem e Deus, entre o homem e as outras criaturas; entre religião e estado, entre Evangelho e política, missão e liberdade religiosa, fé e liberdade de consciência, Igreja e governos, laicidade do estado e imperativos éticos… São relações delicadas e complexas, que tocam de perto a consciência individual das pessoas, mas também o trabalho de quem anuncia o Evangelho em todas as frentes. Em particular, a liberdade religiosa, valor sancionado pelo Concílio Vaticano II, não exime, pelo contrário requer a proposta missionária do Evangelho de Cristo, em vista de uma opção pessoal livre e das reincidências em âmbito familiar e social.
A resposta de Jesus sanciona a autonomia das duas esferas de acção, humana e divina (v. 21), reivindicando, aqui e noutros passos do Evangelho, a primazia de Deus, do qual todos os seres recebem vida, destino, sentido. Uma sã autonomia exige clareza de papéis, respeito mútuo, colaboração na complementaridade, evitando quer as confusões de um sistema teocrático, quer também as evasões de um espiritualismo intimista. Todos, porém, são chamados a apoiar as iniciativas para a promoção integral da pessoa e o desenvolvimento solidário da humanidade. A esta luz, a própria acção política do rei persa Ciro (I leitura) definido «ungido» de Deus (v. 1), é vista em chave de salvação para o povo hebraico, escravo na Babilónia. Do mesmo modo, o crescimento espiritual dos cristãos (II leitura), com os valores de fé laboriosa, caridade empenhada e esperança firme (v. 3), tem certamente consequências salutares para a convivência familiar, política e social.
Primazia de Deus, salvação em Jesus Cristo, conhecido e amado por todos, para que todos tenham n’Ele vida, dignidade, salvação plena… São os objectivos da missão da Igreja, que neste mês celebra o Dia Mundial das Missões. Anunciar o Evangelho é o melhor serviço que a Igreja pode prestar ao mundo, porque o Evangelho tem sempre uma influência benéfica na vida da família humana. A oração colecta de hoje põe-no em evidência, dirigindo-se ao Pai, ao qual «obedece toda a criatura no misterioso entrecruzar-se das livres vontades dos homens»; ao mesmo tempo suplicamos, em Cristo e no Espírito, para que «a humanidade inteira te reconheça como único Deus», bem supremo para uma vida humana mais digna, livre e feliz.