Retiro sinodal – Meditação n. 4
Conversa sobre o caminho de Emaús
Timothy Radcliffe
Somos chamados a seguir o caminho sinodal na amizade. Caso contrário, não chegaremos a lugar algum. A amizade com Deus e entre nós está enraizada na alegria de estarmos juntos, mas precisamos de palavras. Em Cesareia de Filipe a conversa foi interrompida. Jesus chamou Pedro de “Satanás”, inimigo. Na montanha ele ainda não sabe o que dizer, mas os discípulos começam a escutá-lo e assim a conversa pode começar de novo à medida que se dirigem para Jerusalém.
Ao longo do caminho, os discípulos brigam, entendem mal Jesus e, eventualmente, o abandonam. O silêncio retorna. Mas o Senhor ressuscitado aparece e oferece-lhes palavras de cura para serem ditas uns aos outros. Também nós precisamos de palavras de cura que transcendam as fronteiras que nos dividem: as fronteiras ideológicas da direita e da esquerda, as fronteiras culturais que dividem um continente do outro, as tensões que às vezes dividem homens e mulheres. As palavras partilhadas são a força vital de nossa Igreja. Devemos encontrá-las para o bem do nosso mundo, onde a violência é alimentada pela incapacidade da humanidade de escutar. A conversa leva à conversão.
Como as conversas deveriam começar? Em Gênesis, depois da queda, há um silêncio terrível. A comunhão silenciosa do Éden tornou-se o silêncio da vergonha. Adão e Eva estão se escondendo. Como Deus pode superar esse abismo? Deus espera pacientemente que eles se vistam para esconder o seu embaraço. Agora estão prontos para a primeira conversa da Bíblia. O silêncio é quebrado por uma simples pergunta: “Onde você está?”. É um pedido de informação? É um convite para sair para a luz e ser visível diante de Deus.
Talvez esta seja a primeira pergunta com a qual devemos quebrar os silêncios que nos separam. Não: “Por que tens essas opiniões ridículas sobre a liturgia?” ou “Por que és um herege ou um dinossauro patriarcal?” ou “Por que és surdo para mim?”. Mas “Onde estás?”, “Com o que estás preocupado?”. Este sou eu. Deus convida Adão e Eva a saírem do esconderijo e serem vistos. Se também sairmos para a luz e nos deixarmos ver como somos, encontraremos palavras para os outros. Na preparação para este sínodo, foi muitas vezes o clero que estava mais relutante em sair para a luz e compartilhar as suas preocupações e dúvidas. Talvez tenhamos medo de sermos vistos nus. Como podemos encorajar uns aos outros a não temer a nudez?
Depois da ressurreição, o silêncio do túmulo é novamente quebrado por perguntas. No Evangelho de João: “Por que choras?”. Em Lucas: “Por que procuras os vivos entre os mortos?”. Quando os discípulos fogem para Emaús, eles estão cheios de raiva e deceção. As mulheres afirmam ter visto o Senhor, mas são apenas mulheres. Como hoje, às vezes, as mulheres pareciam não contar! Os discípulos estão fugindo da comunidade da Igreja, como muitos hoje. Jesus não lhes bloqueia o caminho e não os condena. Ele pergunta: “Quais são essas conversas que vos fazeis entre vós?”. Quais são as esperanças e deceções que estão mexendo nos vossos corações? Os discípulos falam com raiva. Em grego, significa literalmente: “Quais são essas palavras que vós lançais uns aos outros?”. Então Jesus os convida a compartilhar sua raiva. Eles esperavam que Jesus fosse aquele que redimiria Israel, mas eles estavam errados. Falhou. Então anda com eles e abre-se para a raiva e o medo deles.
O nosso mundo está cheio de raiva. Falamos sobre política da raiva. Um livro recente se chama American Rage. Essa raiva também infecta a nossa Igreja. Uma raiva justificada pelos abusos sexuais de crianças. Raiva da posição das mulheres na Igreja. Raiva daqueles conservadores terríveis ou daqueles liberais horríveis. Como Jesus, tenhamos a coragem de perguntar uns aos outros: “Do que tu estás falando? Por que estás com raiva?”. Temos a coragem de ouvir a resposta? Às vezes eu me canso de ouvir toda essa raiva. Não suporto ouvir de novo. Mas devo ouvir, como Jesus faz, caminhando em direção a Emaús.
Muitos esperam que neste sínodo a sua voz seja ouvida. Sentem-se ignorados e sem voz. Têm razão. Mas só teremos voz se ouvirmos primeiro. Deus chama as pessoas pelo nome. Abraão, Moisés, Samuel. Eles respondem com a bela palavra hebraica Hinneni, “Aqui estou”. O fundamento da nossa existência é que Deus se dirige a cada um de nós pelo nome, e nós escutamos. Não o cartesiano “penso logo existo”, mas escuto então existo. Estamos aqui para ouvir o Senhor e os outros. Como dizem, temos dois ouvidos, mas uma só boca! A palavra só vem depois de ouvir.
Nós ouvimos não só o que as pessoas dizem, mas também o que elas tentam dizer. Nós ouvimos as palavras não ditas, as palavras que procuram. Há um ditado siciliano: “A melhor palavra é aquela que não é dita” (1). Escutamos para ver se eles estão certos, se há um grão de verdade, mesmo que o que eles dizem seja errado? Ouçamos com esperança e não com desprezo. No Conselho Geral da Ordem Dominicana tínhamos uma regra. O que os irmãos diziam nunca era um absurdo. Pode ser devido a desinformação, ilógico, até mesmo errado. Mas em algum lugar nas suas palavras erradas há uma verdade que eu preciso ouvir. Sejamos mendigos em busca da verdade. Os primeiros confrades disseram de São Domingos que ele “entendia tudo na humildade da sua inteligência” (2).
Talvez as Ordens religiosas tenham algo a ensinar à Igreja sobre a arte da conversa. São Bento ensina-nos a procurar o consenso, São Domingos a amar o debate, Santa Catarina de Siena a deleitar-se na conversa e Santo Inácio de Loyola a arte do discernimento. São Filippo Neri, o papel duma risada.
Se realmente escutarmos, nossas respostas pré-confecionadas desaparecerão. Ficaremos mudos e sem palavras, como Zacarias antes de começar a cantar. Se não sei como responder à dor ou à perplexidade duma irmã ou dum irmão, devo dirigir-me ao Senhor e pedir-lhe que me dê as palavras. Então a conversa pode começar.
A conversa precisa de um salto imaginativo para a experiência do outro. Ver com os seus olhos e ouvir com os seus ouvidos. Devemos nos colocar na sua pele. De que experiências vêm as suas palavras? Que dor ou esperança trazem consigo? Que caminho estão tomando?
Num Capítulo Geral dominicano houve um acalorado debate sobre a natureza da pregação, um tema que sempre candente para os dominicanos! O documento proposto no Capítulo entendia a pregação como um diálogo: proclamamos a nossa fé entrando em conversa. Mas alguns capitulares não concordavam em absoluto, alegando que isso beirava o relativismo. Eles disseram: “Devemos ter a coragem de pregar a verdade com audácia”. Pouco a pouco, tornou-se evidente que os irmãos que estavam se confrontando estavam falando a partir de experiências muito diferentes.
O documento foi escrito por um irmão que vivia no Paquistão, onde o cristianismo está necessariamente em diálogo constante com o Islão. Na Ásia não há pregação sem diálogo. Os confrades que reagiram fortemente contra o documento vinham principalmente da antiga União Soviética. Para eles, a ideia de um diálogo com aqueles que os colocaram na prisão não fazia sentido. Para superar o desacordo, a argumentação racional era necessária, mas não suficiente. Era necessário imaginar o motivo pelo qual a outra pessoa apoiava o seu próprio ponto de vista. Que experiência a levou a tal ponto de vista? Que feridas ele carrega consigo? Qual é a sua alegria?
Isso exigia ouvir com toda a própria imaginação. O amor é sempre o triunfo da imaginação, enquanto o ódio é uma falha da imaginação. O ódio é abstrato. O amor é particular. No romance de Graham Greene O poder e a glória, o herói, um padre pobre e fraco, diz: “Quando tu vias as rugas nos cantos dos olhos, a forma da boca, o modo como o cabelo crescia, era impossível odiar. O ódio era apenas um fracasso da imaginação”.
Temos de ultrapassar não só as fronteiras da direita e da esquerda, ou as fronteiras culturais, mas também as fronteiras geracionais. Tenho o privilégio de viver com jovens dominicanos cujo caminho de fé é diferente do meu. Muitos religiosos e sacerdotes da minha geração cresceram em famílias muito católicas. A fé permeou profundamente a nossa vida diária. A aventura do Concílio Vaticano II foi encontrar o mundo secular. Os sacerdotes franceses iam trabalhar nas fábricas. Tirávamos o nosso hábito e mergulhávamos no mundo. Uma freira irritada, vendo-me usando o vestido, explodiu: “Por que ainda usas essas coisas velhas?”.
Hoje, muitos jovens – especialmente no Ocidente, mas cada vez mais em todos os lugares – crescem num mundo secular, agnóstico ou até mesmo ateu. A aventura deles é a descoberta do Evangelho, da Igreja e da tradição. Eles usam o hábito com alegria. Nossos caminhos são opostos, mas não contraditórios. Como Jesus, eu devo andar com eles e aprender o que anima os seus corações. “Do que falais? Que filmes assistis? De que música gostais?”. Assim nós teremos palavras para os outros.
Devo imaginar como eles veem a mim! Quem sou eu aos seus olhos? Eu estava pedalando por Saigão uma vez com um grupo de jovens estudantes dominicanos vietnamitas. Isso foi muito antes de se tornar normal ver turistas. Virámos a esquina e lá havia um grupo de turistas ocidentais. Eles pareciam tão grandes e gordos e tinham um colorido feio e estranho. Que pessoas estranhas. Então percebi que eu também era assim!
Enquanto os discípulos caminham em direção a Emaús, eles ouvem esse estranho que lhes dá tolos e os contradiz. E ele também está enraivecido! Mas começam a se alegrar com as suas palavras. Os corações deles ardem. Durante o Sínodo podemos aprender o prazer extático da discordância que leva à compreensão? Hugo Rahner, irmão mais novo de Karl (e muito mais fácil de entender!), escreveu um livro sobre o homo ludens, a humanidade lúdica (3). Aprendamos a falar uns com os outros de uma forma lúdica! Como fazem Jesus e a mulher samaritana no poço em João 4.
Na primeira leitura de hoje, sentimos que na plenitude do tempo “as praças da cidade estarão cheias de meninos e meninas a brincar pelas ruas” (Zacarias 8:5). O Evangelho convida-nos a todos a tornar-nos filhos: “Em verdade vos digo, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus” (Mateus 18:3). Nós nos preparamos para o Reino nos tornando brincalhões, como crianças, mas não infantis. Às vezes, na Igreja, somos afligidos por uma seriedade monótona e sem alegria. Não é de se admirar que as pessoas fiquem entediadas!
Na noite do novo milénio, enquanto eu estava na Costa do Marfim à espera de apanhar um voo para Angola, sentei-me no escuro com os nossos estudantes dominicanos, a beber uma cerveja juntos e a conversar calmamente sobre o que nos era mais querido. Saboreamos o prazer de ser diferentes, de ter uma imaginação diferente. O prazer da diferença! Tinha medo de perder o avião, mas chegou com um atraso de três dias! A diferença é frutífera, generativa. Cada um de nós é o resultado da maravilhosa diferença entre homens e mulheres. Se fugirmos da diferença, seremos estéreis e sem filhos, nas nossas casas e na nossa Igreja. Mais uma vez, agradeçamos a todos os pais neste sínodo! As famílias podem ensinar muito sobre como lidar com as diferenças. Os pais aprendem a conhecer as crianças que fazem escolhas incompreensíveis e ainda sabem que ainda têm um lar.
Se conseguirmos descobrir o prazer de imaginar por que nossos irmãos e irmãs têm opiniões que consideramos estranhas, então uma nova primavera começará na Igreja. O Espírito Santo nos dará o dom de falar outras línguas.
Vale ressaltar que Jesus não tenta controlar a conversa. Ele pergunta o que eles estão falando; ele vai para onde eles vão, não para onde ele gostaria de ir; ele aceita a hospitalidade deles. Uma conversa verdadeira não pode ser controlada. Segue-se a direção que ela tomar. Não é possível prever para onde nos levará, para Emaús ou Jerusalém. Para onde este sínodo levará a Igreja? Se soubéssemos com antecedência, não faria sentido fazê-lo! Deixamo-nos surpreender!
A conversa real é, portanto, arriscada. Se nos abrirmos para os outros em uma conversa livre, seremos mudados. Toda amizade profunda dá origem a uma dimensão da minha vida e da minha identidade que não existia antes. Eu me torno alguém que nunca fui antes. Cresci numa maravilhosa família católica conservadora. Quando me tornei dominicano, fiz amizade com pessoas que tinham uma história diferente, uma política completamente diferente, que minha família achava perturbadora! Quem era eu, então, quando cheguei a casa para estar com a minha família? Como eu poderia conciliar a pessoa que eu era com eles e o que eu estava me tornando com os dominicanos?
Todos os anos eu conheço novos dominicanos, com diferentes crenças e maneiras de ver o mundo. Se eu me abrir para eles em amizade, quem eu vou me tornar? Mesmo na minha idade avançada, a minha identidade deve permanecer aberta. No romance de Madeleine Thien sobre os imigrantes chineses nos Estados Unidos, Do not say we have nothing, uma das personagens diz: “Nunca tentes ser uma coisa, um ser humano inteiro. Se tantas pessoas te amam, tu podes honestamente ser uma só coisa?” (4). Se nos abrirmos a múltiplas amizades, não teremos uma identidade clara e bem definida. Se nos abrirmos uns aos outros neste sínodo, todos seremos transformados. Será uma pequena morte e ressurreição.
Um mestre dos noviços dominicano filipino tinha um aviso na sua porta: “Perdoai-me. Eu sou um trabalho em andamento”. A coerência está no futuro, no Reino. Então o lobo e o cordeiro dentro de cada um de nós estarão em paz entre si. Se agora temos identidades fechadas, fixas, gravadas em pedra, nunca experimentaremos a aventura de novas amizades que revelarão novas dimensões de quem somos. Não estaremos abertos à amizade espaçosa do Senhor.
Quando chegam a Emaús, o voo de Jerusalém termina. Jesus parece querer ir mais longe, mas com esplêndida ironia convidam o Senhor do sábado a parar com eles. “Fica connosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!” (Lucas 24:29). Jesus aceita a hospitalidade deles, assim como os três estrangeiros em Gênesis 18 aceitaram a hospitalidade de Abraão. Deus é nosso convidado. Nós também devemos ter a humildade de sermos convidados. A apresentação alemã dizia que devemos abandonar “a posição confortável daqueles que dão hospitalidade para nos deixarmos acolher na existência daqueles que são nossos companheiros na jornada da humanidade”.
Marie-Dominique Chenu OP, o avô do Concílio Vaticano II, saía quase todas as noites, mesmo aos oitenta anos. Ele saía para ouvir líderes sindicais, académicos, artistas, as famílias e para aceitar a sua hospitalidade. À noite nos encontrávamos para uma cerveja e ele perguntava: “O que aprendeste hoje? Em que mesa te sentaste? Que presentes recebeste?”. A Igreja em cada continente tem dons a oferecer à Igreja universal. Por exemplo, os meus irmãos da América Latina me ensinaram a abrir os ouvidos às palavras dos pobres, especialmente o nosso amado irmão Gustavo Gutiérrez. Vamos ouvi-las nos nossos debates este mês? O que vamos aprender com os nossos irmãos e irmãs na Ásia e na África?
“Depois que se sentou à mesa com eles, tomou o pão, pronunciou a bênção, partiu-o e deu a eles. Neste momento, seus olhos se abriram, e eles o reconheceram. Ele, porém, desapareceu da vista deles” (Lucas 24,30-31). Eles abriram os olhos. A primeira vez que ouvimos isso foi quando Adão e Eva tiraram o fruto da árvore da vida e os seus olhos se abriram e perceberam que estavam nus. É por isso que alguns comentaristas antigos viram discípulos como Cléofas e a sua esposa, um casal, como novos Adão e Eva. Agora eles comem o pão da vida.
Uma última breve reflexão: Quando Jesus desaparece da sua vista, os discípulos dizem: “Não estava ardendo o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras”. (Lucas 24:32) É como se eles percebessem somente depois da alegria que sentiram andando com o Senhor. São John Henry Newman disse que somente quando olhamos para trás, para a nossa vida, percebemos como Deus sempre esteve connosco. Rezo para que esta seja também a nossa experiência.
Durante este sínodo, seremos como aqueles discípulos. Às vezes não estaremos cientes da graça do Senhor que opera em nós e poderemos até pensar que seja apenas uma perda de tempo. Mas peço a Deus que mais tarde, olhando para trás, vamos perceber que Deus estava connosco o tempo todo e que nosso coração ardia dentro de nós.
(1) “La megliu parola è chiddra chi nun si dici”.
(2) ‘humili cordis intelligentia’,
(3) Man at Play or Did you ever practice eutrapelia? Tradotto da Brian Battershaw e Edward Quinn, Compass Books, London 1965
(4) Granta, London, 2016, p.457