Timothy Radcliffe:
Meditações do retiro sinodal
O frade dominicano e antigo Mestre da Ordem dos Pregadores, Padre Timothy Peter Joseph Radcliffe, guiou as meditações para os participantes na Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, que começa nesta quarta-feira, 4 de outubro, centrada no tema “Em casa em Deus e Deus em casa em nós”.
Meditação n.º 2
“Em casa em Deus e Deus em casa em nós”
Timothy Radcliffe
Chegamos a este Sínodo com esperanças contraditórias. Mas isso não deve ser um obstáculo intransponível. Estamos unidos na esperança da Eucaristia, uma esperança que abraça e transcende tudo o que desejamos.
Porém, há ainda uma outra fonte de tensão. A nossa conceção da Igreja como casa é por vezes contraditória. Todos os seres vivos precisam de uma casa para se desenvolverem. Os peixes precisam de água e os pássaros precisam de ninhos. Sem uma casa, não podemos viver. As diferentes culturas têm diferentes conceções do que é uma casa. O Instrumentum Laboris diz-nos que “a Ásia ofereceu a imagem da pessoa que descalça os sapatos para atravessar a soleira da porta, como sinal de humildade para estar preparada para encontrar o outro e Deus; a Oceânia propôs a imagem do barco; a África insistiu na imagem da Igreja como família de Deus, capaz de oferecer pertença e acolhimento a todos os seus membros, em toda a sua variedade” (B 1,2). Mas todas estas imagens mostram que precisamos de um lugar onde possamos ser aceites e, ao mesmo tempo, desafiados. Em casa somos afirmados pelo que somos e convidados a ser mais. O lar é o lugar onde somos conhecidos e amados, onde estamos seguros, mas é também o lugar onde somos desafiados a embarcar na aventura da fé.
Devemos renovar a Igreja como uma casa comum se quisermos falar a um mundo que sofre de uma crise devido à falta de moradia. Estamos consumindo nossa pequena casa planetária. Há mais de 350 milhões de migrantes em movimento, fugindo das guerras e das violências. Milhares de pessoas morrem cruzando os mares tentando encontrar um lar. Nenhum de nós pode se sentir completamente em casa se eles não se sentirem. Mesmo nos países ricos, milhões de pessoas dormem na rua. Os jovens muitas vezes não podem pagar uma casa. Em todos os lugares há uma terrível falta de casa espiritual. O individualismo impulsionado, a desintegração da família, as desigualdades cada vez mais profundas significam que somos atingidos por um tsunami de solidão. Os suicídios estão em ascensão porque sem um lar, físico e espiritual, não se pode viver. Amar é voltar para casa a alguém.
O que nos ensina esta cena da Transfiguração sobre a nossa casa, tanto na Igreja como no nosso mundo deserdado? Jesus convida seu círculo mais íntimo de amigos a separar-se dele e desfrutar deste momento de intimidade. Eles também estarão com ele no Getsémani. Este é o círculo mais íntimo daqueles com quem Jesus se sente mais confortável. Na montanha, ele lhes concede a visão de sua glória. Pedro quer agarrar-se a este momento. “Rabi, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Chegou e quer que este momento íntimo dure.
Mas eles ouvem a voz do Pai. “Escutai-o!”. Devem descer da montanha e caminhar em direção a Jerusalém, sem saber o que os espera. Serão dispersos e enviados aos confins da terra para testemunhar a nossa última morada, o Reino. Vemos, portanto, duas conceções de casa: o círculo íntimo com Jesus na montanha e o apelo à nossa casa definitiva, o Reino, ao qual todos pertenceremos.
Do mesmo modo, diferentes conceções da Igreja como casa dividem-nos hoje em dia. Para alguns, esta é definida pelas suas tradições e devoções antigas, pelas suas estruturas e linguagem herdadas, pela Igreja em que crescemos e que amamos. Ela dá-nos uma clara identidade cristã. Para outros, a Igreja atual não parece ser um lar seguro. É sentida como exclusiva, marginalizando muitas pessoas, as mulheres, os divorciados e os casados novamente. Para alguns, é demasiado ocidental, demasiado eurocêntrica. O Instrumentum Laboris também menciona os gays e as pessoas que vivem em casamentos polígamos. Estas pessoas desejam uma Igreja renovada na qual se sintam plenamente em casa, reconhecidas, afirmadas e seguras.
Para alguns, a ideia de um acolhimento universal, em que todos são aceites independentemente de quem somos, é sentida como destrutiva da identidade da Igreja. Como numa canção inglesa do século XIX, “Se todos são alguém, então ninguém é ninguém” [1]; eles acreditam que a identidade requer fronteiras. Para outros, porém, a abertura está no cerne da identidade da Igreja. O Papa Francisco disse: “A Igreja é chamada a ser a casa do Pai, com as portas sempre abertas… onde há lugar para todos, para cada pessoa com os seus problemas, para ir ao encontro daqueles que sentem necessidade de retomar o seu caminho de fé” [2].
Esta tensão sempre esteve no centro da nossa fé, desde que Abraão deixou Ur. No Antigo Testamento, há duas coisas em perpétua tensão entre si: a ideia da escolha, do povo escolhido de Deus, do povo com quem Deus habita. Trata-se de uma identidade que é protegida. Mas há também o universalismo, a abertura a todas as nações, uma identidade ainda por descobrir.
A identidade cristã é conhecida e desconhecida ao mesmo tempo, dada e a ser procurada. São João diz: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1Jo 3,1-2). Sabemos quem somos, mas não sabemos quem seremos.
Para alguns de nós, a identidade cristã é sobretudo dada, a Igreja que conhecemos e amamos. Para outros, a identidade cristã é sempre provisória, a caminho do Reino em que todos os muros cairão. As duas são necessárias! Se apenas insistirmos no facto que a nossa identidade é dada – isso é que significa ser católico – corremos o risco de nos tornarmos uma seita. Se nos limitarmos a sublinhar a aventura em direção a uma identidade ainda por descobrir, arriscamo-nos a tornar-nos um vago movimento cristão. Mas a Igreja é sinal e sacramento da unidade de toda a humanidade em Cristo (LG 1) ao ser ambas as coisas. Nós habitamos na montanha e saboreamos a glória agora. Mas caminhamos em direção a Jerusalém, o primeiro sínodo da Igreja.
Como viver esta tensão necessária? Toda a teologia nasce da tensão que dobra o arco para lançar a flecha. Esta tensão está no centro do Evangelho de São João. Deus faz de nós a sua casa: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada” (14,23). Mas Jesus promete-nos também a nossa casa em Deus: “Na casa de meu Pai há muitas moradas. Não fosse assim, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós” (Jo 14,2).
Quando pensamos na Igreja como uma casa, alguns de nós pensam principalmente em Deus que vem à nossa casa, e outros em nós que vamos para casa em Deus. Ambas são verdadeiras. Precisamos de entrar em sintonia com aqueles que pensam de forma diferente. Nós apreciamos o círculo íntimo na montanha, mas descemos e caminhamos em direção a Jerusalém, errantes e sem casa. “Escutai-o”.
Assim, em primeiro lugar, Deus faz a sua casa connosco. O Verbo faz-se carne num judeu palestiniano do primeiro século, educado nos usos e costumes do seu povo. O Verbo faz-se carne em cada uma das nossas culturas. Nas pinturas italianas da Anunciação, vemos belas casas de mármore, com janelas que dão para oliveiras e jardins de rosas e lírios. Os pintores holandeses e flamengos mostram Maria com um forno quente, bem agasalhada para evitar o frio. Seja qual for a vossa casa, Deus vem habitar nela. Durante trinta anos de silêncio, Deus habitou em Nazaré: um lugar secundário e insignificante. Natanael exclamou com desgosto: “De Nazaré pode sair algo de bom?” (Jo 1,46). Filipe responde-lhe simplesmente: “Vem e vê!”.
Todas as nossas casas são Nazaré, onde Deus habita. São Charles de Foucauld dizia: “Deixai que Nazaré seja o vosso modelo, em toda a sua simplicidade e abertura… A vida de Nazaré pode ser vivida em qualquer lugar. Vivei-a onde for mais útil ao vosso próximo” [3]. Onde quer que estejamos e independentemente do que tenhamos feito, Deus vem encontrar-nos: “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, eu entrarei na sua casa e tomaremos a refeição, eu com ele e ele comigo” (Ap 3,20).
Guardemos com carinho, então, os lugares onde encontrámos o Emanuel. “Deus connosco”. Amamos as liturgias onde vislumbrámos a beleza divina, as igrejas da nossa infância, as devoções populares. Eu amo a grande abadia beneditina da minha escola, onde pela primeira vez senti as portas do céu abertas. Cada um de nós tem o seu próprio Monte Tabor, no qual vislumbrou a glória. Precisamos disso. Por isso, quando as liturgias são alteradas ou as igrejas demolidas, as pessoas sentem uma grande dor, como se a sua casa na Igreja fosse destruída. Como Pedro, queremos permanecer.
Cada Igreja local é uma casa para Deus. A nossa Mãe Maria apareceu em Inglaterra, em Walsingham, o grande santuário medieval, em Lourdes, em Guadalupe no México, em Częstochowa na Polónia, em La Vang no Vietname e em Donglü na China. Não há competição mariana. Em Inglaterra dizemos: “A boa notícia é que Deus te ama. A má notícia é que ele ama todos os outros também”. Santo Agostinho disse: “Deus ama cada um de nós como se fosse um só” [4]. Na Basílica de Nossa Senhora de África, em Argel, está inscrito: « Priez pour nous et pour les Musulmans », “Rezem por nós e pelos muçulmanos”.
Muitas vezes os sacerdotes consideram o caminho sinodal mais difícil de abraçar. Nós, sacerdotes, cuidamos destes lugares de culto e celebramos as liturgias. Os sacerdotes precisam de um forte sentido de identidade, dum esprit de corps. Mas quem seremos nós nesta Igreja libertada do clericalismo? Como pode o clero abraçar uma identidade que não seja clerical? Este é um grande desafio para uma Igreja renovada. Abracemos sem medo uma nova compreensão fraterna do sacerdócio ministerial! Talvez possamos descobrir como esta perda de identidade é, na verdade, uma parte intrínseca da nossa identidade sacerdotal. É uma vocação que vai para além de qualquer identidade, pois “nem sequer se manifestou o que seremos” (1Jo 3,2).
Deus constrói agora a sua casa em lugares que o mundo despreza. O nosso irmão dominicano Frei Betto descreve como Deus se tornou a sua casa numa prisão no Brasil. Alguns dominicanos foram presos pela sua oposição à ditadura (1964-1985). Betto escreve: “No dia de Natal, festa do regresso de Deus a casa, a alegria é irreprimível. A Noite de Natal na prisão… Agora toda a prisão canta, como se o nosso canto, feliz e livre, devesse ressoar pelo mundo inteiro. As mulheres cantam na sua secção e nós aplaudimos… Todos aqui sabem que é Natal, que alguém está a renascer. E com o nosso canto, testemunhamos que também nós renascemos para lutar por um mundo sem lágrimas, sem ódio e sem opressão. É impressionante ver estes rostos jovens encostados às grades e a cantar o seu amor. Inesquecível. Não é um espetáculo para os nossos juízes, nem para o ministério público, nem para a polícia que nos prendeu. Para eles, a beleza desta noite seria intolerável. Os torturadores temem um sorriso, mesmo que seja um sorriso fraco”.
É assim que vislumbramos a beleza do Senhor no nosso Monte Tabor, onde, como Pedro, queremos montar as nossas tendas. Ótimo! Mas “escutai-o!”. Desfrutemos desse momento e depois saiamos do monte e caminhemos em direção a Jerusalém. Temos de nos tornar, de certo modo, pessoas sem-abrigo. “As raposas têm tocas e os pássaros do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. (Lucas 9,58). Caminham em direção a Jerusalém, a cidade santa onde reside o nome de Deus. Mas lá Jesus morre fora dos muros para o bem de todos os que vivem fora dos muros, tal como Deus se revelou ao seu povo no deserto, fora do acampamento. James Alison escreveu: “Deus está no meio de nós como um relegado” [5]. “Por isso também Jesus sofreu do lado de fora da porta, para, com seu sangue, santificar o povo. Vamos, portanto, sair ao seu encontro, fora do acampamento, carregando a sua humilhação” (Hebreus 12,12s).
O Arcebispo Carlos Aspiroz da Costa escreveu à Família Dominicana quando era Mestre: “Fora do acampamento, entre todos os ‘outros’ relegados para um lugar fora do acampamento, é onde encontramos Deus. A itinerância requer um passo fora da instituição, das perceções e das crenças culturalmente condicionadas, porque é ‘fora do campo’ que encontramos um Deus que não pode ser controlado. É ‘fora do campo’ que encontramos o Outro que é diferente e descobrimos quem somos e o que devemos fazer” [6]. É saindo que chegamos a uma casa onde “não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus” (Gálatas 3,26).
Na década de 1980, refletindo sobre a resposta da Igreja à AIDS, visitei um hospital em Londres. O médico disse-me que havia um jovem que procurava um padre chamado Timothy. Pela providência de Deus, consegui ungi-lo pouco antes de morrer. Ele pediu para ser enterrado na Catedral de Westminster, o centro do catolicismo na Inglaterra. Ele estava cercado pela gente comum que vinha àquela Missa durante a semana, bem como por pacientes de AIDS, enfermeiras, médicos e amigos gays. Aquele que estivera na periferia, por causa da sua doença, da sua orientação sexual e especialmente porque morrera, estava no centro. Ele estava cercado por aqueles para quem a Igreja era casa e por aqueles que normalmente nunca entrariam numa igreja.
A nossa vida se nutre de tradições e devoções queridas. Se elas se perdem, lamentamos. Mas devemos também recordar todos aqueles que ainda não se sentem em casa na Igreja: as mulheres que não se sentem reconhecidas num patriarcado de velhos homens brancos como eu! Pessoas que sentem que a Igreja é demasiado ocidental, demasiado latina, demasiado colonial. Temos de caminhar em direção a uma Igreja onde elas já não estejam à margem, mas no centro.
Quando Thomas Merton se tornou católico, descobriu “Deus, esse centro que está em todo o lado e cuja circunferência não está em lado nenhum, enquanto me encontra”. Renovar a Igreja é, portanto, como cozer pão. Juntam-se as bordas da massa no centro e espalha-se o centro até às bordas, enchendo-o de oxigénio. Faz-se o pão invertendo a distinção entre as bordas e o centro, fazendo o pão de Deus, cujo centro está em todo o lado e cuja circunferência não está em lado nenhum, encontrando-nos.
Uma última palavra muito breve. Várias vezes, durante a preparação deste Sínodo, foi feita a pergunta: “Mas como é que podemos estar em casa na Igreja com o horrível escândalo dos abusos sexuais?” Para muitos, foi a gota de água que fez transbordar o copo. Fizeram as malas e foram-se embora. Fiz esta pergunta numa reunião de diretores de escolas católicas na Austrália, onde a Igreja foi terrivelmente desfigurada por este escândalo. Como é que eles puderam permanecer? Como puderam estar ainda em casa?
Um deles citou Charles Carretto (1910-1988), um Pequeno irmão de Charles de Foucauld. As palavras de Carretto resumem a ambiguidade da Igreja, minha casa, mas ainda não minha casa, que revela e esconde Deus.
“Quanto devo te criticar, minha Igreja, e, no entanto, quanto te amo! Fizeste-me sofrer mais do que qualquer outra pessoa, e, no entanto, devo-te mais do que qualquer outra pessoa. Gostaria de te ver destruída, e, no entanto, preciso da tua presença. Escandalizaste-me muito, mas só tu me fizeste compreender a tua santidade. … Inúmeras vezes tive vontade de te bater com a porta da minha alma na cara e, no entanto, todas as noites rezei para morrer nos teus braços seguros! Não, não posso livrar-me de ti, porque contigo sou um tudo, embora não completamente. E depois, para onde é que eu iria? Para construir outra igreja? Mas não poderia construir uma sem os mesmos defeitos, pois são os meus defeitos”.
No final do Evangelho de Mateus, Jesus diz: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos”. Se o Senhor permanece, como poderíamos nós partir? Deus colocou-se na nossa casa, com todas as nossas limitações escandalosas, para sempre. Deus permanece na nossa Igreja, mesmo com todas as corrupções e abusos. Devemos, portanto, permanecer. Mas Deus está connosco para nos conduzir aos espaços mais amplos do Reino. Precisamos da Igreja, da nossa casa atual com todas as suas fraquezas, mas também de respirar o oxigénio cheio de Espírito da nossa futura casa sem fronteiras.
[1] W. S. Gilbert, The Gondoliers, 1889
[2] Evangelii Gaudium paragrafo 47.
[3] Cathy Wright LSJ St Charles de Foucauld: His Life and Spirituality, p.111
[4] Confessions. Book 3
[5] Knowing Jesus p.71
[6] Letter to the Order on Itinerancy