Sete ideias relevantes que surgem da Jornada Mundial da Juventude, evento global que reuniu em Lisboa, no início de Agosto, um milhão e meio de peregrinos de todo o mundo.
JMJ, uma memória em sete ideias
ANTÓNIO MARUJO
Além-Mar, setembro 2023
Os dias alegres, festivos e esperançosos da Jornada Mundial da Juventude terão muitas maneiras de ser recordados e pensados. Aqui fica um registo possível a partir de sete ideias.
O caminho da Arte
O que vimos e ouvimos – de um modo especial na cerimónia de acolhimento, na Via-Sacra e naquele momento de comunhão quando Carminho cantou “Estrela” diante do papa é um alerta: a criatividade artística e cultural é uma exigência maior, incluindo para múltiplas propostas da Igreja (também com jovens).
Desde sempre o Cristianismo buscou a beleza como forma de balbuciar o mistério de Deus. É certo que nos últimos dois séculos a relação com a arte e os artistas foi mais tensa ou mesmo inexistente. Na JMJ, as encenações da Via-Sacra e da cerimónia do acolhimento, por exemplo, mostraram que é possível ser criativo, passar uma mensagem que permite traduzir o evangelho para os tempos de hoje e com uma linguagem visual, acústica e musicalmente apelativa.
Pretender, como tantas vezes acontece, mobilizar os jovens através de umas coisas divertidas e umas “guitarradas” ou uns ambientes “piedosos” é poucochinho. Ser criativo exige ler muito, ver muito, conhecer muito (e ler, ver e conhecer mesmo coisas de que não gostamos à primeira). É certo que os momentos referidos tiveram a responsabilidade de uma larga equipa mobilizada pelos Jesuítas, já habituados a essa dinâmica. Mas ficou um caminho apontado e isso é muito positivo.
O sonho fundador da União
No seu primeiro discurso em Portugal – perante autoridades políticas, representantes da sociedade civil e corpo diplomático no Centro Cultural de Belém –, o Papa Francisco sublinhou a «missão pacificadora» da União Europeia (UE) e a sua «originalidade específica» em relação à promoção da dignidade dos povos em regiões como o Mediterrâneo, a África e o Médio Oriente.
Outras ideias do discurso do papa: é preciso «defender e aperfeiçoar a democracia» contra o crescimento dos factores que a ameaçam, e a UE «deve promover a paz e os seus valores» (direitos humanos, protecção social e Estado de Direito), recuperando o sonho dos pais fundadores.
A dimensão de esperança que a festa dos dias da JMJ trouxe ao país e a Lisboa, aliada à universalidade das presenças, deve também promover esse horizonte de paz tão urgente.
A União Europeia é uma experiência única na História, que pretende resolver os problemas entre diferentes países de forma pacífica e por meio do diálogo. O projecto comum que daí saiu permitiu o mais longo tempo de paz no continente, agora de novo ameaçado pela invasão russa da Ucrânia. Alargar a democracia e desarmar o mundo devem ser o horizonte, para o futuro, da recuperação desses sonhos.
Uma economia que reduza desigualdades
Em outro dos seus apelos, o papa pediu a construção de uma economia que reduza e não agrave o fosso das desigualdades, como vem acontecendo. Vêm desde o início do seu pontificado os apelos de Francisco a que se ponha fim a uma «economia que mata», como ele referiu na exortação sobre A Alegria do Evangelho – e mata literalmente, se pensarmos na quantidade de pessoas que são postas à margem e perdem trabalho, dignidade, modos de vida e muitas vezes, com isso, acabam na penúria, na doença e na morte.
A criação de uma cátedra da Economia de Francisco e de Clara na Universidade Católica Portuguesa (UCP) é uma boa notícia, mais ainda se pensarmos que, muitas vezes, têm sido também as universidades católicas a reproduzir as elites económicas, políticas e financeiras que apenas seguem as leis do mercado que têm sistematicamente aumentado o fosso das desigualdades. E os discursos na UCP e na Scholas Ocurrentes de Cascais desafiavam também a renovar, nessa perspectiva inclusiva, os desafios da educação.
Uma casa para todos, onde se podem fazer perguntas
Na cerimónia de acolhimento, e depois em Fátima, o Papa Francisco insistiu na ideia de que na Igreja, «ninguém é supérfluo» e de que «há lugar para todos»: «Jovens e velhos, sãos e doentes, justos e pecadores, todos, todos, todos! Na Igreja, há lugar para todos.» E repetiu: «Amigos, gostaria de ser claro convosco, que são alérgicos à falsidade e às palavras vazias: na Igreja, há lugar para todos. Para todos. E Jesus torna-o claro. Todos, todos, todos, todos eles, todos eles, todos, todos.»
Noutro passo do mesmo discurso, o papa dirigiu-se ainda aos jovens como se falasse com cada um em concreto: «Também tu, esta tarde, me fizeste perguntas, muitas perguntas. Nunca te canses de perguntar. Não te canses de fazer perguntas.» E acrescentou: «Fazer perguntas é bom; de facto, muitas vezes é melhor do que dar respostas, porque quem faz perguntas fica “inquieto” e a inquietação é o melhor remédio para a rotina.»
Houve comentadores que destacaram o facto de que, apesar da mensagem do papa, há quem ainda não tenha lugar na Igreja – mulheres, pessoas com deficiência, pobres, migrantes, refugiados, diferentes orientações sexuais ou pessoas que, estando dentro da Igreja são atiradas para as suas margens, são ainda exemplos de situações que muitas vezes são rejeitadas ou desprezadas. E também as vítimas de abusos sexuais, colocadas no centro pelo papa, que se encontrou com treze pessoas e se referiu de forma intensa ao tema no discurso nos Jerónimos. Há um caminho a fazer, mas também já há experiências positivas de inclusão e são estas que devem servir de inspiração.
Acolher as fragilidades
A pobreza, a violência (incluindo a violência doméstica, o bullying e os abusos), a solidão, a falta de compromisso, a intolerância. Quais são, hoje, as estações da via-sacra das gerações jovens? «Vocês vão renovar o caminho da cruz», disse o Papa Francisco durante a celebração da Via-Sacra, na sexta-feira, 4 de Agosto. Também o individualismo, a desesperança, a destruição da criação, as dependências e a incoerência entraram na lista dos novos passos da paixão de Cristo – e das novas gerações. E ainda as crises humanas, o produtivismo, a desinformação e o medo do futuro.
O papel dos cristãos é, cada vez mais, o de escutar as fragilidades que atravessam tantas vidas, todas as vidas – que não são só rosas nem diversão. Jesus «andou, curando os doentes, cuidando dos pobres, fazendo justiça, andou, pregando, ensinando», disse o papa. «O caminho de Jesus é Deus saindo de si mesmo. […] E o Verbo fez-se homem e caminhou entre nós. E fá-lo por amor. E fá-lo por amor. […] Ninguém tem mais amor do que aquele que dá a sua vida, e Jesus ensinou-o. É por isso que, quando olhamos para o Crucificado, que é tão doloroso, tão duro, vemos a beleza do amor que dá a sua vida por cada um de nós.»
Numa sociedade que tantas vezes se materializou como reacção a formas distorcidas de viver o Evangelho, recuperar a atenção ao outro, a proposta de sentido, a espiritualidade e a relação intensa com Deus – também através das outras pessoas – é um passo necessário. Foi essa a mensagem do papa no Bairro da Serafina, quando pediu que não haja «nojo» dos pobres e para «fazermos juntos o bem, agir no concreto e estar próximo dos mais frágeis». E foi essa a sua proposta, na Serafina e em Fátima, ao integrar jovens com deficiência nas próprias cerimónias.
Missionários da alegria
Costuma o Papa Francisco dizer que os cristãos vivem muitas vezes com rosto de Sexta-Feira Santa. Na vigília de sábado à noite, 5 de Agosto, afirmou: «É uma alegria ver-vos, obrigado por terem viajado, caminhado, por estarem aqui.» Referindo depois o lema da JMJ de Lisboa – «Maria levantou-se e partiu apressadamente» para ir ter com a prima Isabel –, referiu: «Em vez de pensar nela, pensa na outra [pessoa], porque a alegria é missionária.»
Os rostos que são as raízes da alegria de cada um, a conversão da própria alegria em raiz de alegria para outros e, desse modo, ajudar quem cai – «a única ocasião em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo é para ajudá-la a levantar-se» – foram ideias sugeridas pelo papa. No final, com os voluntários, usaria a imagem dos «surfistas do amor».
Não é por acaso que vários dos documentos principais do Papa Francisco têm a ideia da alegria no título: Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho), Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), Gaudete et Exsultate (Alegrai-vos e Exultai). Em todos eles, a proposta não é de uma alegria plástica e artificial, mas de algo que nasce fundo e faz renascer e alimentar a esperança que ajuda a transfigurar a realidade da relação de cada pessoa com Deus e com as outras pessoas, na sua dimensão espiritual, social, política, económica…
Um futuro
E agora? Até hoje, a Jornada Mundial tem-se constituído sobretudo uma oportunidade pessoal para muitos jovens, que decidem mudar a sua vida em diferentes aspectos. Terão sido poucos, ao invés, os países que souberam tirar partido da JMJ em termos pastorais, recriando dinâmicas e estruturas de trabalho com jovens.
A Igreja em Portugal poderia ser também aqui um exemplo, aproveitando a vitalidade criada durante a JMJ – não de forma triunfalista, mas na humildade. Se é certo que faltou preparação e um dinamismo de diálogo com a sociedade portuguesa nos quatro anos pré-JMJ (que ficaram reduzidos quase só à peregrinação dos símbolos, por muito importante e intensa que tenha sido para muitos jovens), é possível recuperar esse tempo e iniciativa. Para isso, é importante que a Igreja Católica (e a sua hierarquia em primeiro lugar) esteja disponível para recriar linguagens, centrar a atenção nos mais pobres e em todas as periferias existenciais, assumir o cuidado com a Criação e a Casa Comum como tarefa urgente e fazer dos jovens protagonistas da mudança sinodal a que o Papa Francisco também tem apelado (e cuja dinâmica foi quase ignorada antes e durante a JMJ).
Com uma atitude e dinâmica renovada, a Igreja, o país e o mundo não se tornariam perfeitos, mas a JMJ teria ajudado a uma maior fidelidade e aproximação ao Evangelho.