6 de Agosto
Transfiguração de Jesus (A)
Mateus 17,1-9
Uma pedagogia em três passos
Hoje celebramos o episódio da Transfiguração. O que é a Transfiguração? É Jesus tentar passar aos discípulos uma imagem que os console, que arranque do seu coração acobardado o medo da cruz, o medo do que vai acontecer. Porque, nesta altura do campeonato, os discípulos já estão a ver que aquilo não vai dar certo e que vai acabar sobrando para eles. Eles já perceberam que os sonhos que tinham de um ser coronel, o outro ser general, herdar isto, herdar aquilo dum reino muito terreno nada disso vai acontecer. Eles estão a perceber que as autoridades vão liquidar Jesus e estão completamente apavorados, não sabem o que vão fazer, querem abandoná-Lo, mas ao mesmo tempo também não conseguem. Ficam com os pés pesados quando se trata de acompanhar Jesus. O episódio da Transfiguração é para lhes dizer: “Podem confiar, Eu Sou Aquele que o vosso coração sabe mas o vosso pensamento ainda não chegou lá, Eu Sou Esse, podeis confiar.”
É muito bela esta narrativa de S. Mateus, quase que a pedagogia de cura, de transformação que Jesus faz com os discípulos. É uma pedagogia em três passos. Jesus aproximou-se deles quando eles estavam caídos por terra cheios de medo. Jesus aproximou-se deles, passo um; tocou-os, passo dois; e falou-lhes, passo três. “Levantai-vos e não temais.” E são, no fundo, estes três passos que Jesus faz com a vida de cada um de nós, com a vida caída, a vida sucumbida, a vida assustada, a vida que não sabe se caminha para a Páscoa ou se volta para trás, a vida que não sabe se consegue chegar à cruz ou não, a vida que se acobarda, a vida que fica a meio caminho, suspensa entre tantas questões, a vida de todos nós.
Jesus aproxima-se, sintamos a proximidade de Jesus. Jesus não nos enjeita, Jesus não nos recusa porque não temos a força, não temos a graça, não temos a luz que devíamos ter, não temos a verdade que se espera, não temos isto. Não, isso não é um impedimento, Ele aproxima-Se de nós tal como somos. Tal como estamos, Ele aproxima-Se de nós.
E depois toca-nos, toca-nos. Isto é, toca o nosso coração. Sintamo-nos tocados pelo amor de Jesus, e tocar é assumir, e tocar é incorporar, e tocar é levar aos ombros, e tocar é levar ao colo, e tocar é carregar o peso da nossa vida. Jesus toca-nos, toca-nos. Isto é, abençoa-nos, trata-nos com amor, cuida das nossas feridas como o Bom Samaritano cuidou das feridas do homem caído. Ele cuida de nós, Ele toca-nos, não nos repele, Ele vem ao nosso encontro, e um encontro de verdade, um encontro profundo.
E depois, fala-nos. A palavra é muito importante porque é esta experiência que nós fazemos aqui, dominicalmente, que é cada um de nós é recriado por esta Palavra. A Palavra que vem da Sagrada Escritura, a Palavra de Deus é uma palavra que nos transforma. Nós experimentamos a força performativa desta Palavra que nos faz outros, que nos renova, que nos abre horizontes. Então, Jesus diz: “Levanta-te”. É muito importante este verbo “levantar-se” porque em grego diz-se ‘egeiren‘, que é a mesma palavra para dizer ressurreição. Aquilo que Mateus vai contar no Domingo de Páscoa é que Jesus Se levantou do túmulo. ‘Egeiren‘ é a mesma palavra que Jesus diz aos discípulos, “Levanta-te”, e é a mesma palavra que Ele diz hoje a cada um de nós: “Levanta-te, ressuscita, vive como um ressuscitado, levanta-te!” É essa palavra que Ele nos diz: “Levanta-te.” Tem de haver um levantamento na nossa vida, tem de haver um acordar, tem de haver um pôr-se de pé.
Cada um saberá o que é que isso significa, o que é que isso representa, mas Ele vem dizer-nos isso, mas diz-nos isso e possibilita isso. ‘Egeiren‘, levanta-te. E cura o medo do nosso coração. Levanta-te e não tenhas medo.
Queridos irmãs e irmãos, é este encontro que transforma a nossa vida. É natural o que nós sentimos, o que nós vivemos muitas vezes é o que temos para viver, é o que nos calhou em sorte, é o que está no nosso caminho. Não vamos julgar, não se trata disso, mas trata-se agora de saber o que é que eu vou fazer com isto. O que é que eu vou construir? Qual vai ser agora o meu caminho? É muito importante estes três passos que Jesus celebra com cada um de nós. Por isso, cada um de nós sinta que cada um destes passos acontece com o tempo e com a perceção necessária ao seu coração. Cada um de nós sinta que Jesus Se avizinha da sua vida, da sua história, que Jesus toca o corpo das nossas feridas e que Jesus nos oferece a Palavra restauradora, recriadora: “Levanta-te, não temas.”
José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org
Jesus transfigurado
A glória da cruz
A voz que foi ouvida pelas testemunhas da Transfiguração pronuncia as mesmas palavras ditas pela voz vinda do céu, no Batismo de Jesus. Nos dois casos, trata-se de uma declaração de identidade: «Este é o meu filho amado». E da afirmação de que todo o amor de Deus o acompanha em seu itinerário pessoal, e também o habita, para reunir todos os homens: «Nele ponho todo o meu amor».
Por que reiterar estas afirmações? É que, no Batismo, tratava-se de investir Jesus de autoridade, para que seus ouvintes acolhessem os ensinamentos que viriam em seguida. Mas na Transfiguração o contexto é diverso: imediatamente antes desta imagem de glória, Jesus havia informado os discípulos que deveria ir até Jerusalém onde seria levado à morte.
Era preciso que os discípulos ficassem sabendo que, mesmo aí, no horror da Paixão, permaneceria sendo o Filho amado e que o rosto da dor coincidiria com o rosto fulgurante da glória. Esta dimensão pascal estava com certeza inscrita no Batismo, como se tem dito, mas, de qualquer forma, à distância; já, agora, não dá mais para recuar.
Para dizer a verdade, o acontecimento pascal aparece diretamente apenas na última linha da nossa leitura, mas está subjacente a todo o relato. Meditemos sobre isto, pois temos muita dificuldade em descobrir, no horror de seu suplício, todo o amor de Deus para com Cristo e, através dele, para conosco. Que fique bem entendido, Deus não é o autor da cruz nem das nossas diversas desgraças, mas vem sim nos reunir e nos «glorificar» em toda parte em que a vida nos coloca.
O rosto de luz
Com o rosto fulgurante de Jesus, pensamos forçosamente em Moisés descendo da montanha em que Deus lhe tinha dado as «dez palavras» da Aliança. Seu rosto resplandecia a tal ponto que devia escondê-lo, para não amedrontar os «filhos de Israel» (Êxodo 34,29-35).
Paulo retoma este tema em 2 Coríntios 3,4-18. Explica que, sob a antiga Lei, a verdade gloriosa estava velada, mas que, em Cristo, o véu cai. Esta luz é contagiosa, pois, também «nós todos que, com a face descoberta, contemplamos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados».
Passamos do regime de condenação ao regime de JUSTIFICAÇÃO (versículo 9). Este texto de Paulo insiste muito no caráter passageiro da primeira Aliança. E, justamente, o relato da Transfiguração nos põe na presença de Moisés e de Elias, a Lei e os profetas, figuras que recapitulam todo o Antigo Testamento.
Cristo veio cumprir, superar, a Lei e preencher as promessas da profecia. Ele realiza a passagem do transitório ao definitivo, ao futuro representado ali pelos três Apóstolos, os mesmos que vamos encontrar no Getsêmani, no limiar da Paixão.
Por que somente estes três? Em Gálatas 2,9, Paulo diz que foi fazer com que sua ação junto aos pagãos fosse aprovada por «Tiago, Pedro e João, os notáveis tidos como colunas»; colunas da Igreja, bem entendido. Estamos, assim, às portas de um futuro revelado como pleno de glória.
Rumo ao último Êxodo
De glória sim, e da luz, que se ergue nas trevas… Mas eis que os personagens entram numa nuvem que é a uma só vez luminosa e obscura, pois ela os cobre com a sua sombra. Obviamente, logo se pensa na nuvem que apareceu tantas vezes no Êxodo para manifestar a presença divina.
Em particular no capítulo 40, versículos 32-36, uma das passagens em que a nuvem é vista sobre a Tenda da Reunião. Estas múltiplas referências ao Êxodo mostram muito bem que, aqui, estamos nas vésperas do último Êxodo, aquele definitivo: o Êxodo que não mais atravessará o deserto, mas sim o que este deserto representava, ou seja, a morte.
Exatamente por isso Lucas, em sua versão da Transfiguração, escreve que Moisés e Elias falavam com Jesus a respeito de «seu êxodo que se consumaria em Jerusalém». Assim como no decurso da travessia do deserto, Pedro quer erguer as tendas. Ora, erguer a tenda é querer instalar-se, é interromper a marcha.
Será que o que quer é bloquear ou retardar a passagem do antigo para o novo? Opa! Todos nós buscamos repousar no já adquirido, no que já está aí. Não queremos deixar o lugar em que a glória se manifesta. Mas lá em baixo, ao pé da montanha, serpenteia a estrada que leva a Jerusalém.
Da mesma forma que em Mateus 16,21-23, no capítulo precedente, portanto, Pedro não quer partir para esta viagem até à cidade que mata os profetas. «Vou erguer três tendas»… Mas por que exigir silêncio sobre a Transfiguração, até que o Filho do homem ressuscite dos mortos? Porque somente então se poderá compreender que pela Cruz é que vem a Glória.
Marcel Domergue
http://www.ihu.unisinos.br