Maria Madalena foi a primeira a encontrar Jesus ressuscitado na aurora da manhã de Páscoa e a levar a mensagem aos apóstolos, pelo que foi definida “a apóstola dos apóstolos”. Porém, a sua identidade foi deformada e pairou entre dois extremos: ora rebaixada carnalmente e vista como prostituta ou amante, ou elevada espiritualmente e considerada a Sabedoria transfigurada.
No intervalo de tempo que decorre entre a morte de Jesus na cruz, a Sua sepultura e a manhã de Páscoa da ressurreição, entra em cena uma figura especial, Maria Madalena. Em 1989, o escritor Giovanni Testori pediu-me que prefaciasse um dos seus livros dedicados a Maria Madalena na história da arte (um tema em que sagrado e eros se entrelaçavam segundo uma tipologia cara ao escritor) com um perfil bíblico. Escolhi como título: Uma santa caluniada e glorificada. O título é ainda mais pertinente nos tempos que correm, após as fantasias improváveis de Dan Brown, no seu livro, O Código Da Vinci, até porque se baseia numa espécie de lugar-comum, confundido com historiográfico, cravado na mente de muitos leitores.
Tentemos, então, reconstruir as razões da deformação do vulto desta mulher proveniente de Magdala (do hebraico migdol, “torre”), uma aldeia piscatória na costa ocidental do lago de Tiberíades, então um centro de comércio de peixe, tanto assim que em grego se chamava Tarichea, que significa “peixe salgado”. Pois bem, desta localidade, Maria surge improvisamente no Evangelho de Lucas (8, 1-3), numa lista de discípulos de Cristo, como Joana, mulher do ministro das finanças de Herodes Antipas, ou uma certa Susana e “muitas outras”. O retrato é traçado com uma única pincelada: “Maria de Magdala, da qual saíram sete demónios.” O “demónio”, na linguagem evangélica, não é apenas a raiz do mal moral, mas também do mal físico que pode acossar uma pessoa. O “sete” é o número simbólico da plenitude. Não podemos, por isso, saber muito sobre o grave mal moral, psíquico ou físico que afligia Maria e que Jesus tinha eliminado. No entanto, a tradição popular dos séculos posteriores não hesitou e fez de Maria Madalena uma prostituta.
Mas porquê? A resposta é simples: na página anterior, no capítulo 7 do Evangelho de Lucas, conta-se a história de uma anónima “pecadora conhecida naquela cidade (não mencionada)”. A aplicação foi fácil, mas infundada: esta “pecadora” pública deveria ser Maria de Magdala, apresentada algumas linhas mais tarde! A ela, portanto, se atribui todo o caso narrado pelo evangelista. Tendo sabido da presença de Jesus num banquete em casa de um fariseu notável, um tal Simão, ela tinha realizado um gesto de veneração e de amor particularmente apreciado por Cristo: tinha ungido os pés do rabi de Nazaré com óleo perfumado, tinha-os banhado com as suas lágrimas e tinha-os enxugado com os seus cabelos, recebendo no fim uma palavra de perdão dos seus pecados.
Com esta primeira identificação injustificada entre Maria Madalena e a pecadora anónima, já se preparava a segunda, numa espécie de jogo de sobreposições. Sabe-se, de facto, que no capítulo 12 de João, Maria, irmã de Marta e de Lázaro, amigos de Jesus, tinha feito o mesmo gesto – que, aliás, era um sinal de hospitalidade e de exaltação do anfitrião – da mencionada pecadora de Lucas. Durante a refeição, ela “ungiu os pés de Jesus com uma libra de preciosíssimo óleo de nardo e enxuga-os com os seus cabelos”. É por livre dedução que, na tradição cristã, Maria de Magdala se transforma em Maria de Betânia, um subúrbio de Jerusalém!
Por duas vezes, a tradição popular faz assim com que Maria de Magdala perca as suas conotações pessoais, confundindo-a primeiro com uma prostituta – daí todas as representações “carnais” da santa na história da arte – e depois com a mais pura Maria de Betânia. Entretanto, porém, Maria Madalena chegou, efectivamente, com os discípulos a Jerusalém, para seguir Jesus e viver com Ele as Suas últimas e trágicas horas. Todos os evangelistas, de facto, concordam em relatar a sua presença no momento da crucificação e da sepultura de Cristo (por exemplo, Mateus 27, 56.61). E é precisamente junto ao sepulcro, na luz ainda pálida da aurora pascal, que o Evangelho de João (20, 11-18) situa o famoso encontro entre Cristo e Maria Madalena.
Como se sabe, Maria confunde Cristo com o guardião do cemitério. Ora, este tipo de “cegueira” é típico de algumas aparições do Ressuscitado: basta pensar nos discípulos de Emaús que caminham com Ele durante horas sem O reconhecerem (Lc 24, 13-35). O significado é naturalmente teológico: mesmo sendo o mesmo Jesus de Nazaré, o Cristo glorioso transcende as coordenadas humanas, históricas e físicas. Para poder“reconhecê-l’O”, é necessário colocar-se num canal de conhecimento transcendente, o da fé. É por isso que, só quando se sente chamada pelo nome num diálogo pessoal, Maria O “reconhece”, chamando-Lhe em aramaico Rabbuni, “meu mestre”. Na sua célebre Vida de Jesus (1863), o historiador francês Ernest Renan, explica de um modo racionalistico toda a cena como a alucinação de uma mulher apaixonada: “O amor de uma mulher realizou o milagre: Jesus ressuscitou por ela!” Acrescentou-se, assim, um ulterior elemento malicioso ao retrato de Maria Madalena, fazendo-a passar – sem o menor fundamento textual – por amante secreta de Jesus. Aliás, não faltou quem tentasse fazer dela Sua esposa, como o americano William E. Phipps, em 1970, num livro bastante “criativo” com o título explícito Was Jesus Married? (Foi Jesus casado?). Mas esta deformação da identidade de Maria Madalena tinha raízes mais antigas, às quais os modernos “detractores” da santa talvez se possam referir. Temos, pois, de sair dos Evangelhos canónicos e entrar no mundo magmático e inseguro dos apócrifos gnósticos, surgidos no cristianismo egípcio por volta do século III. Antes de mais, devemos dizer que, em alguns destes escritos, Maria de Magdala é mesmo confundida com Maria, a mãe de Jesus! Uma identificação, sem dúvida nobre, mas que, mais uma vez, impedia esta mulher de preservar a sua identidade pessoal. Pelo contrário, a transfiguração atingirá nesses escritos tal dimensão que dissolverá a figura de Maria Madalena ao ponto de a tornar quase uma ideia, um símbolo, a Sabedoria por excelência.
Este resultado é paradoxalmente conseguido através de imagens sobre as quais uma posterior leitura interpretativa malíciosa tentará bordar alusões voluptuosas e eróticas. Lemos, de facto, no Evangelho de Filipe, um apócrifo descoberto em 1945, em Nag Hammadi, no Egipto: “O Senhor amava Maria Madalena mais do que todos os discípulos e beijava-a muitas vezes na boca. Os outros discípulos, vendo-o com Maria, perguntaram-Lhe: ‘Porque a amas mais do que a todos nós?’” Foi o suficiente para aqueles que, desconhecendo o simbolismo bíblico (“A sabedoria sai da boca do Altíssimo”, segundo o Antigo Testamento (24, 3), quiseram semear a suspeita sobre Maria e Jesus, fantasiando uma relação sexual entre os dois, como relatámos acima. Na realidade, segundo o que observou o estudioso Luigi Moraldi (1915-2001), na sua edição daquele apócrifo, “em todos os escritos gnósticos cristãos, Maria Madalena é apenas o exemplo do gnóstico perfeito e da mestra da doutrina gnóstica”, isto é, do conhecimento pleno dos mistérios divinos.
Num outro texto gnóstico, o tratado Pistis Sophia, onde ela aparece nada menos que 77 vezes, Maria Madalena torna-se o emblema da humanidade redimida de tipo andrógino (outra deformação de Maria!) porque, segundo uma leitura literal de uma passagem do apóstolo Paulo, “não haverá mais homem nem mulher, mas todos serão um em Cristo Jesus” (Gálatas 3, 28). A sua função de sinal da Sabedoria divina será explicitada nesta bem-aventurança dirigida a Maria Madalena e posta na boca de Jesus pelo autor gnóstico: “Bem-aventurada és tu, Maria, Eu te aperfeiçoarei em todos os mistérios do alto. Fala abertamente tu, cujo coração está voltado para o Reino dos Céus, mais do que todos os dos teus irmãos!” (17, 2).
Uma santa em busca de identidade, portanto, suspensa entre dois extremos: reduzida carnalmente a prostituta ou amante, ou elevada espiritualmente a Sabedoria transfi- gurada. Felizmente, o único que, naquela madrugada pascal, a chamou pelo nome, Maria, e a reconheceu como Sua discípula, foi Jesus de Nazaré, o Seu Mestre, o Rabbuni. E é precisamente com base nesse encontro pascal que a sua presença reaparece todos os anos na liturgia pascal católica, com a maravilhosa melodia gregoriana das Victimae paschali e com aquele diálogo latino que recordamos na Sequência Pascal e hesitamos em traduzir: – Dic nobis, Maria, quid vidisti in via? – Surrexit Christus spes mea! (“Diz-nos, Maria, que viste no caminho? Ressuscitou Cristo, minha esperança!)
Cardeal Gianfranco Ravasi