AS CONFISSÕES DE PAULO
Carlo Maria Martini
IV. CONVERSÃO E DESILUSÃO
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SUMÁRIO
- Prefácio
- Introdução
- I. No caminho de Damasco
- II. O conhecimento de Jesus
- III. As trevas do homem Paulo
- IV. Conversão e desilusão
- V. Exame de consciência pastoral
- VI. Conversão e ruptura
- VII. A transfiguração de Paulo
- VIII. Passio Pauli, Passio Christi
- IX. Deus é misericórdia
IV. CONVERSÃO E DESILUSÃO
Propomo-nos reflectir sobre a maneira como Paulo viveu o período que compreende cerca de dez anos a partir do evento de Damasco. Se colocamos o encontro de Damasco pelo ano 34-35, chegamos até 45-46, que marca o início da primeira missão do Apóstolo verdadeiramente coroada de êxito, em Chipre e na Ásia Menor. São dez anos de existência obscura e difícil. Paulo não fala muito nisto, talvez por certo pudor, porque deveria dizer coisas desagradáveis com relação à comunidade que o acolheu; mas, aqui e ali, alguma coisa transparece. Devemos levar em consideração que ele começa a escrever 13-14 anos depois da experiência de Damasco, quando já alcançara a maturidade e a plenitude do mistério de Cristo que havia visto.
Queremos compreender o que aconteceu, porque representa um típico aprofundamento doloroso e, ao mesmo tempo, construtivo da conversão fundamental.
Senhor, tu sustentas todas as coisas. Sustentaste a vida de Paulo de maneira aberta e grandiosa desde o momento da sua conversão. Nunca o abandonaste, mesmo nos momentos difíceis nos quais ele talvez nem soubesse o que lhe estava acontecendo. Tu te manifestaste a ele com amor misericordioso talvez precisamente ali onde ele estava para abandonar o mistério. Dá-nos compreender a tua misericórdia sobre nós para que possamos aceitar com confiança a tua orientação, crer no significado providencial daquilo que aconteceu e acontece na nossa experiência cristã e sacerdotal. Para a tua glória, na força do Espírito, por intercessão de Maria e de todos os santos. Amém.
Para a nossa reflexão:
• inicialmente leremos os textos;
• depois nos perguntaremos qual é a história que se pode deduzir destes textos;
• num terceiro momento veremos quais são as motivações por trás da história;
• perguntar-nos-emos qual foi a experiência de Paulo naqueles dez anos;
• por fim, concluiremos com uma palavra relativa a nós.
Os textos
“Saulo ficou alguns dias com os discípulos que estavam em Damasco. E logo começou a pregar nas sinagogas que Jesus era o Filho de Deus. Todos os que o ouviam ficavam assombrados, comentando: ‘Não é ele que estava matando em Jerusalém os que invocavam este nome? Porventura ele não veio aqui precisamente para levá-los presos aos sacerdotes-chefes?’ Entretanto, Saulo falava com poder sempre maior e confundia os judeus moradores de Damasco, demonstrando que Jesus é realmente o Messias. Passados muitos dias, os judeus resolveram matá-lo. Mas esse plano chegou ao conhecimento de Saulo. Dia e noite eles vigiavam as portas da cidade, com a intenção de lhe tirar a vida. Mas, certa noite, os discípulos puseram-no dentro de um cesto e fizeram-no descer pelo muro da cidade. Chegando a Jerusalém, Saulo procurava juntar-se aos discípulos. Mas todos tinham medo dele, não acreditando ainda que ele também fosse discípulo. Então Barnabé o acolheu e o apresentou aos apóstolos contando-lhes como, durante a viagem, Saulo tinha visto o Senhor e o Senhor lhe tinha falado, e como em Damasco tinha pregado abertamente em nome de Jesus. Desde então, Saulo ficou com eles em Jerusalém, andando livremente por toda parte e pregando abertamente o nome do Senhor. Ele também conversava e discutia com os judeus de língua grega, mas estes tramaram contra a vida dele. Sabendo disso, os irmãos levaram-no a Cesareia e de lá o fizeram seguir para Tarso. A Igreja vivia em paz, em toda a Judeia, Galileia e Samaria” (At 9,19-31).
Já se poderia notar, um pouco maliciosamente (embora não seja esta a intenção do texto), que com a partida de Paulo a Igreja está em paz; foi afastada uma pessoa que causava confusão e embaraço.
Encontramos outro texto interessante na carta aos Gálatas: “Mas, quando aquele que me escolheu desde o seio da minha mãe, e me chamou pela sua graça, achou bom revelar o seu Filho em mim, para que o anunciasse aos pagãos, logo, sem consultar a ninguém, e sem ir a Jerusalém para junto dos que eram apóstolos antes de mim, fui para a Arábia e depois voltei para Damasco. Três anos mais tarde, fui a Jerusalém para conhecer Cefas e passei quinze dias com ele. Não vi nenhum outro apóstolo, mas somente Tiago, o irmão do Senhor. O que vos estou escrevendo, atesto diante do Senhor que não é mentira. Depois eu fui para as regiões da Síria e da Cilícia, mas pessoalmente era um desconhecido para as Igrejas de Cristo que estão na Judeia. Elas apenas ouviam dizer: ‘aquele que outrora nos perseguia, agora está anunciando a fé que antes queria destruir’. E davam glória a Deus por minha causa. Quatorze anos depois, fui outra vez a Jerusalém com Barnabé; até levei Tito comigo” (Gl 1,15 – 2,1). É outra série de factos.
Por analogia com estes quatorze anos, acrescentamos outro texto: “É preciso ficar orgulhoso? Isso não serve para nada! Entretanto, vou falar das visões e revelações do Senhor. Sei de um homem em Cristo o seguinte: há quatorze anos foi arrebatado até ao terceiro céu. Foi no o seu corpo? Não sei. Ou fora dele? Não sei. Deus é quem sabe. E eu sei que esse homem – foi no corpo? ou fora do corpo? Não sei. Deus é quem sabe – sei que esse homem foi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inexprimíveis, que um homem não pode repetir. Quanto a este homem eu estaria orgulhoso. Mas no que me toca, porei o meu orgulho nas minhas fraquezas” (2Cor 12,1-5).
Paulo descreve com muito respeito a atmosfera desses anos, mas às vezes perde as estribeiras. Como, por exemplo, na carta aos Filipenses onde, encontrando-se em situação análoga àquelas já vividas, diz: “Cuidado com os cães! Cuidado com os maus operários! Cuidado com os fanáticos da circuncisão! Os circuncisos somos nós, que em espírito prestamos culto a Deus, que colocamos a nossa glória em Cristo Jesus e não depositamos a nossa confiança na nossa condição meramente legal! Bem que eu poderia apoiar-me na minha condição meramente legal!” (Fl 3,2-4). Voltam algumas frases da carta aos Gálatas que fazem pensar numa relação das emoções daquele tempo.
A história dos factos
Que aconteceu na realidade? Alguns factos são bastante evidentes. Depois da conversão, Paulo começa a pregar, provavelmente não morando sempre em Damasco; e aqui está a sua permanência na Arábia, talvez nos arredores das cidades junto a populações árabes, porque a sua presença não era muito aceite. A certa altura, as autoridades preocupam-se e fazem tal oposição que ele se sente na necessidade de fugir. Não se lê que a comunidade o tenha sustentado ou defendido: representava um factor de perturbação, embora o admirassem pelo seu zelo. Depois desta fuga, não se menciona que ele tenha voltado outra vez a Damasco ou tenha frequentado de novo aquele grupo de discípulos.
Em Jerusalém acontece um pouco a mesma coisa: não há perigos tão clamorosos como os de Damasco, e por isso também não há uma fuga tão cheia de aventura. Mas a sua pregação vai sempre mais dando na vista, e por isso os irmãos se preocupam com ele e o levam de volta à pátria. Em outras palavras, os irmãos agradecem e o devolvem.
Aos dois acontecimentos de Damasco e de Jerusalém segue um período de absoluta solidão na pátria e de desconforto. Pode-se deduzir isto do facto de que este tempo termina com a grande visão de que fala a segunda carta aos Coríntios, que se pode considerar como uma continuação que o Senhor faz da primeira aparição de Damasco. A nova visão da glória de Deus, da qual talvez começasse a duvidar, fecha um período de solidão e amargura.
Resumindo, os dez anos da primeira conversão foram anos de dificuldade, de choques, de problemas provocados pela sua maneira muito impetuosa de pregar e de expor-se excessivamente. Foram também anos de solidão, de silêncio, de desconforto. Quando Paulo narra estas coisas, já as vive na plenitude do seu segundo ministério, e por isso não se detém muito nelas.
É interessante notar esta sequência de quatorze anos que é repetida duas vezes. O primeiro duplo septenário vai da conversão à segunda visita a Jerusalém. O outro duplo septenário é indicado na segunda carta aos Coríntios: entre o momento da visão e o momento em que escreve a carta. Enquanto escreve, a sua vida se lhe apresenta como dois períodos sabáticos. Com efeito, os hebreus daquele tempo costumavam calcular também os eventos e a vida segundo um ciclo septenário que correspondia ao período que se concluía com o ano sabático.
Depois de vinte e oito anos da conversão, Paulo aprendeu a calcular a vida segundo um ritmo sagrado: viu numa luz providencial o que lhe aconteceu e até se deu conta de que isto coincidia com o cômputo sagrado do tempo. Mas enquanto vivia aqueles períodos intermediários, ainda não percebia o porquê desta evolução da sua vida.
A história dos dez anos depois de Damasco (que cobre o arco da idade de Paulo dos 25-30 anos aos 35-40 anos), podemos reconstruí-la, portanto, como embaraço em Damasco, incompreensão em Jerusalém, momentos de solidão e desconforto.
As motivações dos factos
Perguntamo-nos: durante este tempo terá havido em Paulo algo que não funcionava bem, ou será que toda a culpa era dos outros que não o compreenderam, o hostilizaram, não o defenderam, preferiram desfazer-se dele e não souberam valorizá-lo? Provavelmente, como em toda realidade humana, a falha esteve em ambas as partes. É verdade que sobretudo os judeo-cristãos, presos a uma visão estreita do apostolado, com muitos receios e muitas reservas, não compreenderam, não souberam avaliar que a sua maneira de agir dava mais prejuízo que vantagem. Os adversários investiram contra ele porque se deram conta de que era um homem-chave. Pelos primeiros e pelos segundos, com aqueles acordos tácitos que às vezes acontecem, Paulo foi eliminado.
Para além disto, porém, penso que se o próprio Paulo fosse interrogado, confessaria que nele também alguma coisa não andou bem. Aconteceu-lhe o que acontece nas conversões grandes e rápidas em que tudo se apresenta na melhor e mais pura luz, e o motivo da conversão não é uma mudança de bandeira ou de campo, mas é a nova visão da vida que se lhe apresenta em Jesus: é o totalmente outro, é a obra de Deus.
Mas quando se trata de retomar a vida diária, o homem se encontra consigo mesmo, e Paulo lança-se na nova missão com o mesmo entusiasmo com que se havia lançado na missão anterior, transfere o seu zelo de um campo para outro e volta a apaixonar-se pela obra como se fosse sua. Então o Senhor permite um período de duríssima provação, de purificação para que aprenda que a conversão não lhe fez mudar o objecto da actividade, mas formou nele outra maneira de ser, outro modo de ver as coisas, que deve amadurecer lentamente antes de integrar-se na sua personalidade. As ideias eram claras, as palavras também; mas a maneira instintiva de agir voltava a ser a de antes.
Fazendo estas reinterpretações, talvez estejamos falando mais de nós do que de Paulo. No caminho da busca de Deus desejamos esclarecer sempre melhor as nossas motivações, mas sabemos bem que isto não está de acordo com a imediata mudança do nosso modo instintivo e possessivo de colocar-nos em relação com as coisas e as situações. Esta tendência possessiva transfere-se do campo material para o campo espiritual, do campo dos interesses económicos para o campo dos interesses do espírito e nos encontramos sempre um pouco a nós mesmos, sempre necessitados de contínua purificação, para além das palavras que dizemos e do belos conceitos que formulamos.
A experiência vivida por Paulo
A esta altura, podemos perguntar a Paulo: Como viveste estes dez anos? Que significou para ti esta prova de solidão e de marginalização com relação à comunidade? Que pensavas em Tarso ao cair da tarde, à beira do rio, quando passeavas por aí sozinho, sem que ninguém te conhecesse, ou voltavas ao caminho de Damasco? Como foram aquelas primeiras pregações em Jerusalém enquanto te sentias tão longe daquele mundo, e chegavas quase a imaginar que tudo não passara de um sonho? Como viveste esta experiência dramática?
Paulo nos lembra, antes de mais nada, que não foi o primeiro a viver esta experiência. Moisés, expulso do Egipto e esquecido pelo seu povo, muitos séculos antes dele viveu no deserto semelhante experiência. Também Elias sentiu-se abandonado por todos, fugiu para o deserto, tremendamente só.
Falando-nos dos seus sentimentos, Paulo pode dizer-nos que a primeira reacção certamente foi de indignação, de desforra e também de ressentimento. Por que empregar as forças e a vida por gente que trata mal, por uma Igreja e pelos chamados irmãos que não querem saber dele? É um ressentimento que lateja fundo, que não deixa a pessoa em paz e que por fim – como sempre acontece – se torna também ressentimento contra Deus. Por que Cristo me chamou com tantas palavras para depois levar-me a trabalhar na minha lojinha de Tarso sem perspectivas? Há realmente um desígnio de Deus na minha vida ou são apenas sonhos do passado? Que significavam aquelas palavras que haviam ressoado aos meus ouvidos (as palavras que repetirá no discurso a Agripa: “No verdade eu te apareci para te escolher para o meu serviço e seres testemunha das coisas que acabas de ver e de outras para as quais eu ainda te aparecerei. Eu vou te livrar do povo e das nações pagãs” (At 26,16-17)? O ressentimento contra Deus é a dificuldade de aceitar a providência e a maneira misteriosa e incompreensível da acção divina.
Podemos dizer com certeza que Paulo passou por esses momentos. São momentos pelos quais passam os santos. Nenhum santo foi poupado desta luta interior e por isso nem o Apóstolo. Mas depois da indignação e do ressentimento, como acontece com a graça de Deus quando a provação amolece a alma, emerge a reflexão e nasce uma pergunta pequena mas capaz de varrer a escuridão de um céu que não apresenta aberturas: “E se houvesse também aqui uma palavra providencial de Deus para mim?” Ouvindo a passagem bíblica de Job 5,17-20, veio-me à mente que uma palavra como esta pode ter penetrado, aos poucos, como se fosse um remédio, no coração de Paulo. “Ditoso o homem a quem Deus corrige: não desprezes a lição do Omnipotente, porque ele fere e pensa a ferida, golpeia e cura com as suas mãos. De seis perigos te salva, e no sétimo não sofrerás mal algum. Em tempo de fome livrar-te-á da morte e, na batalha, dos golpes da espada”.
Ele, que certamente lia e relia a Escritura, é curado pela Palavra de Deus que também aqui age na sua função de bálsamo, de libertação e de consolação. Escutando-a de novo, a reflexão torna-se iluminação e Paulo penetra naquela luminosa revelação que foi o encontro de Damasco. Isso transparece em duas linhas adoptadas nas suas cartas.
a) Uma linha é uma reflexão escatológica que desenvolverá na primeira carta aos Coríntios: “Irmãos, eu vos afirmo: o tempo é breve. Por isso, os que têm mulher, vivam como se não tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem, os que usam deste mundo, como se não usassem” (lCor 7,29ss). Paulo trata de redimensionar o seu zelo apaixonado, dando-se conta de que se havia ligado a projectos imediatos, ao passo que o Reino de Deus está além e acima de tudo; que, por melhores e mais interessantes que sejam as coisas, elas passam, mas o Senhor permanece.
b) Uma segunda linha é uma iluminação: a obra é de Deus; é Deus quem estabelece tempos e condições.
Em Paulo realiza-se um segundo desapego de si mesmo. O primeiro, quando havia deixado atrás de si os seus privilégios de fariseu, de hebreu filho de hebreus. O segundo desapego está em dever perder aquilo de que com justiça poderia gloriar-se: apóstolo da palavra fácil, da linguagem persuasiva, impetuosa, violenta, muito superior à tímida expressão dos outros de Jerusalém.
Paulo compreende que tudo isto é importante, mas a obra é do Senhor: “Quem és tu para julgar o servo de alguém? Quer ele fique de pé ou caia, isso interessa apenas ao seu patrão” (Rm 14,4). Nas nossas hipóteses as coisas deveriam andar de um certo modo, mas é o Senhor quem tem em mãos a obra: “Quem é Apolo? Quem é Paulo?” (lCor 3,5). E prossegue: “Servidores pelos quais viestes à fé, e cada um deles conforme a parte que o Senhor lhe deu. Deste modo, fui eu que plantei e Apolo quem regou, mas foi Deus quem deu o crescimento. Por isso, nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas sim Deus, que dá o crescimento. Quem planta e quem rega são como um só, mas cada um receberá o salário segundo o seu esforço. Porque somos os colaboradores de Deus, o edifício de Deus” (lCor 3,5-9). Não se trata do “meu” campo nem do “meu” edifício: é o edifício de Deus.
Através das experiências dolorosas, Paulo chega à percepção muito simples de que Deus é o Senhor e de que o ministro de Deus se prepara libertando o coração de tudo aquilo que poderia ser êxito próprio, tornando-se instrumento sempre mais apto nas mãos de Deus.
Na visão do terceiro céu descrita na segunda carta aos Coríntios, o Apóstolo compreende coisas que não sabemos por que não quis descrevê-las. Certamente, chega a uma consciência mais profunda do carácter absoluto e da transcendência indescritível do mistério de Deus que se lhe havia apresentado tão próximo na aparição do Cristo a ponto de parecer-lhe seu, quando na realidade falar e dispor dele está além de toda capacidade humana.
É neste ponto que chega a Tarso a notícia de que chegou Barnabé para dizer a Paulo que, se quiser, em Antioquia há uma jovem comunidade que o deseja. Propõe-lhe que vá com ele para começar a trabalhar. É o segundo momento da actividade apostólica. Ele recomeça, de forma nova, o que há dez anos tinha iniciado com tanto zelo, mas colocando nisto um pouco de si mesmo. No misterioso desígnio de Deus, tudo isto tivera de passar pelo fogo purificador.
Uma pergunta para nós
Depois de termos procurado interpretar o caso de Paulo no seu exílio de Tarso, fazemo-nos a última pergunta: para quem é o nosso zelo? É difícil responder porque o zelo é fundamental no compromisso apostólico; a própria palavra indica algo que devora, que envolve. Precisamente porque nos envolve tanto, corremos o risco de ser possessivos.
• Quando nos convertemos da segunda maneira?
• Houve na nossa vida momentos nos quais a primeira conversão, a primeira integração tranquila das realidades baptismais na família, na paróquia – embora sem indicar uma conversão precisa – foi posta à prova, talvez através de uma experiência na qual alguns aspectos da nossa possessividade apostólica foram testados, passados no crivo, e talvez através de dificuldades que nos atingiram duramente?
• Prescindindo de quando o Senhor nos chamou à segunda conversão, qual é a qualidade do nosso zelo?
O zelo autêntico é aquele que envolve profundamente sem colocar-nos em questão. Se somos rejeitados ou não encontramos a saída que desejamos, isto não deve tornar-se um problema pessoal que causa depressões, desconfortos e que leva ao limite do abandono ou ao limite da resignação.
Tudo isto acontece, quase sempre, porque somos feitos de tal modo que não podemos dedicar-nos a alguma coisa sem envolver-nos nela, e não podemos envolver-nos historicamente sem que a nossa figura, também pessoal e psicológica, fique comprometida. Não podemos viver as vicissitudes nas quais a obra de Deus se manifesta sem sentir-nos tocados e, às vezes, de maneira dolorosa. Mas é precisamente aí que a Providência nos espera e não para censurar-nos. Se Paulo passou por estas provações, nós não somos melhores do que ele. Se ele sentiu que a sua imagem estava comprometida, isto acontecerá também a nós. Não nos foi dito que não devemos esperar este tempo; pelo contrário, sabemos que este é um tempo providencial, tempo de revelação do mistério de Deus, que é aparição de Cristo no caminho de Damasco.
Não se nos pede que sejamos invulneráveis, mas que abramos os olhos ao desígnio misericordioso de Deus. Como para Paulo houve um caminho de misericórdia, assim também para nós: em todas as dificuldades, pequenas e grandes, que o nosso compromisso apostólico comporta, há uma palavra misericordiosa de salvação. A palavra de Job: “Deus fere e cura”, prova que o Senhor nos ama e nos purifica porque quer fazer de nós servos do Evangelho, interiormente livres.
Peçamos a intercessão de Maria. Ela, que desde o início viveu esta liberdade, mas que teve que integrá-la na sua vida através do sofrimento, pedirá ao Senhor que nos faça passar através das provações sem que a nossa liberdade interior fique por isso condicionada, diminuída, ou mortificada. O Senhor nos purifique e que a nossa liberdade esteja pronta para retomar em Antioquia a experiência do novo chamamento de Paulo.