AS CONFISSÕES DE PAULO
III. As trevas do homem Paulo
Carlo Maria Martini
Texto DOC:
SUMÁRIO
- Prefácio
- Introdução
- I. No caminho de Damasco
- II. O conhecimento de Jesus
- III. As trevas do homem Paulo
- IV. Conversão e desilusão
- V. Exame de consciência pastoral
- VI. Conversão e ruptura
- VII. A transfiguração de Paulo
- VIII. Passio Pauli, Passio Christi
- IX. Deus é misericórdia
III- AS TREVAS DO HOMEM PAULO
Nesta meditação propomo-nos aprofundar um aspecto do evento de Damasco: “a cegueira” que segue imediatamente a conversão. As trevas não somente do Paulo histórico, mas de Paulo como homem que vive este momento de trevas.
O tema é difícil porque tem algo a ver com as trevas que estão em nós e que não gostaríamos de enfrentar. É um tema penitencial. Peçamos a graça do Espírito Santo para entrar neste tema com verdade e abertura de coração:
Ó Senhor, tu nos perscrutas e nos conheces, sabes como somos incapazes de compreender o teu e o nosso mistério. Conheces a nossa incapacidade de falar destas coisas com verdade. Nós te pedimos, ó Pai, em nome de Jesus: manda a nós o teu Espírito que perscruta as profundidades do homem, que sabe o que há dentro de nós, para que nos torne capazes de conhecer-nos como somos conhecidos por ti nas profundidades do nosso mal, com amor e misericórdia. Faz que contemplemos com olhar verdadeiro o que existe em nós de peso, de opacidade e de oposição a ti; faz que saibamos olha-lo na luz misericordiosa que vem da morte e ressurreição do teu Filho, Jesus Cristo nosso Senhor, que com o Espírito vive e reina por todos os séculos. Amém.
Foi importante definir a conversão de Paulo como “revelação e iluminação”. Agora nos perguntamos como pode Paulo estar cego depois da conversão. Este facto é sublinhado, com certa ênfase, pelo relato dos Actos: “Saulo levantou-se do chão e, embora estivesse com os olhos abertos, não enxergava mais nada. Por isso é que os seus companheiros o guiaram pela mão e o fizeram entrar em Damasco. E ficou lá durante três dias, sem enxergar e sem comer nem beber coisa alguma” (At 9,8-9). Dir-se-ia que a iluminação de Cristo, em vez de enchê-lo de alegria, de luz, de clareza, o abateu, como se fosse vítima de uma grave doença: é incapaz de ver, de alimentar-se, tem necessidade de ser conduzido.
A mesma coisa é repetida mais adiante: “Mas, como eu não enxergava nada, ofuscado pelo brilho daquela luz, os meus companheiros me levaram pela mão e assim cheguei a Damasco” (At 22,11). E adquiriu a vista quando Ananias se aproximou dele dizendo-lhe: “Saulo, irmão, recupera a vista. E, no mesmo momento, olhei para ele” (At 22,13).
Por que é que Paulo foi atingido por cegueira depois que lhe foi revelado o mistério luminoso de Cristo?
A cegueira na Escritura é claramente relacionada com o pecado, com a desorientação do homem, com o seu andar trôpego e incapaz de encontrar uma direcção. É um castigo: Elimas, em Chipre, é castigado com a cegueira: “Então Saulo, chamamento também Paulo, cheio do Espírito Santo, olhou para ele com firmeza e lhe disse: ‘Homem cheio de toda falsidade e perversidade, filho do Diabo e inimigo de tudo o que é bom, quando deixaras de desviar os caminhos rectos do Senhor? Por isso a mão do Senhor pesa agora sobre ti: ficarás cego e por algum tempo não enxergarás mais o sol” (At 13,9-11).
Mas no caso de Elimas o significado simbólico da cegueira é muito bem explicado: ele deve deixar de transtornar os caminhos rectos do Senhor, de opor-se, com o seu modo de agir, à verdadeira imagem de Deus. Por isso é o símbolo do homem incapaz de encontrar o caminho certo, do homem prisioneiro das forças de Satanás, “homem cheio de toda a falsidade e perversidade e inimigo de tudo o que é bom”. É claramente a imagem do pecado, daquilo que no pecado parte do interior: “falsidade e perversidade”; e do exterior: “filho do Diabo”; e nas consequências: “inimigo de tudo o que é bom”.
Mas com relação à cegueira de Paulo não é fácil responder, porque os Actos dos Apóstolos não a explicam, limitando-se a descrever o facto ao qual o Apóstolo parece nunca acenar nas suas cartas.
Procurando reflectir e compreender a sua intenção, dois motivos podem emergir.
A cegueira como reflexo do esplendor de Deus
Antes de mais nada, é um tema bíblico recorrente: “O homem não pode ver a Deus sem morrer”. A visão de Deus é luz, mas para a carnalidade do homem é motivo de espanto e faz com que o homem perceba toda a escuridão em que se encontra. Em contacto com Deus que é luz, o homem reconhece que é trevas. Paulo vive assim o caminho penitencial que jamais fora capaz de viver antes. O conhecimento da glória de Cristo reflecte no conhecimento da sua própria escuridão, vivida simbolicamente por Paulo, com um símbolo real, até que a palavra da Igreja, a palavra de Ananias, intervém para dar-lhe o sentido da sua aceitação na Igreja e da certeza de caminhar na via que leva a Deus.
A cegueira é o reflexo negativo da glória de Deus que lhe foi manifestada. É típico da conversão cristã o facto de que o homem acabe conhecendo muito mais a si mesmo e se espante das próprias trevas quando conhece a luz de Deus, do que através de um rigoroso exame ou de uma psicanálise das próprias profundidades. É no contacto com o rosto de Cristo que o homem se descobre como treva!
A cegueira como caminho penitencial
O segundo motivo que pode explicar a cegueira é a participação de Paulo no pecado do mundo, a sua inserção na humanidade pecadora.
Perguntamo-nos como ele a viveu e como se apresentou a ele. Não é necessário recorrer à imaginação, porque o próprio Paulo exprimiu em diversas ocasiões a sua visão da pecaminosidade de todo homem, do abismo de trevas que está à espreita, sempre, em cada um de nós. Isto só pode ser vencido pela força de Deus, mas poderia voltar à tona a cada momento se Deus não fosse continuamente o vencedor. E quando a força de Deus é por nós rejeitada ou negligenciada, então surge novamente o que Paulo chamará o pecado personificado.
Reflectir sobre as trevas que estão no coração do homem não é simplesmente fazer uma meditação descritiva de algo que está longe de nós, mas é realidade que está em nós, mais ainda, está à espreita dentro de nós. A dolorosa experiência histórica de cada um de nós sabe que este ser à espreita pode transformar-se, às vezes, rapidamente e de maneira imprevista, em realidade. Este é um tema impopular e difícil de traduzir em linguagem comum.
Nós sempre oscilamos entre duas posições. De um lado, deploramos a malícia do homem, quando vemos factos desconcertantes. Estou aludindo às violências, a formas de crueldade típicas do terrorismo, à própria crueldade das prisões, com mortes entre presos, onde se chega a uma situação de inferno e as pessoas se odeiam, embora estando a pagar a mesma pena. Nós mesmos ficamos atónitos diante de certos homicídios bárbaros que acontecem perto de nós, no tempo e no espaço. De outro lado, continuamos embalados na ideia dos homens de boa vontade: todos têm boa vontade, todos são bastante bons.
Nunca conseguimos captar verdadeiramente o fundo destas duas posições e harmonizá-las entre si: oscilamos entre uma atitude moralista-deplorativa e uma atitude de compreensão paternalista diante do que se apresenta. Com frequência falta-nos o olhar que saiba ver o mal do homem, mas com misericórdia, e não apenas de maneira deploradora e pessimista.
Quais são, pois, as dimensões das trevas e da escuridão de que Paulo fala nas suas cartas, reflectindo sobre o que lhe aconteceu no momento da conversão? Podemos exprimi-las segundo três diferentes níveis:
a) o nível do pecado pessoal;
b) o nível do pecado fundamental;
c) o nível do pecado estrutural.
O pecado pessoal
A este propósito dois textos devem ser mencionados: “As obras da carne são bem patentes: prostituição, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódios, brigas, ciúme, cóleras, intrigas, discussões, divisões, inveja, bebedeiras, orgias e outras coisas parecidas. Eu vos previno como já o fiz anteriormente: os que praticam essas coisas não tomarão parte no Reino de Deus” (Gl 5,19-21). Estamos no nível dos pecados individuais, pessoais: é um elenco impressionante de quatorze atitudes negativas do homem que Paulo tira da sua experiência e da sua época. Uma visão muito realista e ao mesmo tempo pessimista do homem que se move no âmbito dos próprios interesses.
São obras da carne. São as obras que nascem no homem que vive no âmbito do puro proveito próprio. O homem revela-se, então, como um ser cheio de “prostituição, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódios, brigas. É um olhar dramático sobre a sociedade e a gente do seu tempo.
O outro texto toma este quadro e aumenta-o, fazendo uma lista de vinte e uma atitudes negativas: “Como não fizeram caso do verdadeiro conhecimento de Deus, Deus entregou-os a sentimentos depravados. Por isso, procederam indignamente. Estão cheios de todo tipo de injustiça, perversidade, avareza e malícia, e também de inveja, homicídio, discórdia, velhacaria, depravação e calúnia. Difamam uns aos outros, odeiam a Deus, são atrevidos, soberbos, presunçosos, inventores de maldades, desobedientes aos pais. Eles não têm consciência, nem lealdade, nem coração, nem pena dos outros” (Rm 1,28-31). É uma descrição que parece até retórica, tão prolixa ela é; contudo, é real e apresenta os factos e a sociedade do seu tempo.
Relendo estas duas listas perguntamo-nos que tipo de descrição é. São pecados sociais, isto é, pecados no comportamento para com o próximo: toda a maneira errada de agir do homem com relação ao irmão, fruto de um errado conhecimento de Deus e, em última análise, de uma errada concepção da vida fundada no egoísmo.
O Apóstolo quer demonstrar à gente do seu tempo – que era tão orgulhosa como a nossa, que pensava ter cultura, civilização, direito, leis, ser infinitamente superior aos bárbaros – que não passam de pobres homens às voltas com todo tipo de depravação porque buscam apenas a própria vantagem pessoal.
Paulo faz uma descrição das coisas assim como as vive e as vê, mas sabe muito bem que aquilo que descreve tem raízes também nele. Segundo a palavra fundamental de Jesus, no cap. 7 de Marcos, vv. 21-22: “Do coração do homem nascem estas coisas”. E não apenas do coração de um homem que por acaso nasceu numa situação infeliz, mas do coração de todo homem. É de injustiça e estão em nós com as suas raízes, nas propensões negativas que temos.
O texto também deixa claro que a comunidade cristã estava sujeita a dissensões, rivalidades, divisões, facções que facilitavam o triunfo dos pagãos. É verdade que cabia à autoridade dos pagãos levar adiante a perseguição mas, de acordo com Paulo, esta não alcançaria tanto sucesso se os cristãos fossem mais unidos. A própria morte de Pedro é atribuída à inveja, à traição e a vinganças oriundas do grupo dos crentes judeo-cristãos ou dos grupos rivais. Pensemos nas outras palavras daquela lista: difamadores e maledicentes, e perceberemos que com frequência nós também o somos na maneira como nos referimos aos outros.
Se continuarmos lendo o elenco, descobriremos como ele está próximo da nossa experiência de todos os dias e que às vezes estas atitudes emergem de maneira clamorosa, precisamente porque faltou a vigilância e a atenção para captar o mal dentro de nós e submetê-lo continuamente à luz de Deus. Não há nada mais prejudicial do que deixar de lado a vigilância evangélica que é uma das virtudes fundamentais.
Também o padre que não exerce a vigilância sobre si mesmo, que pensa com a força do hábito ter encontrado certo modo de viver, pode sucumbir sob o peso de algumas daquelas forças negativas descritas por Paulo, que emergem e se afirmam nele.
Estas obras da carne que encontramos nas cartas do Apóstolo servem como listas penitenciais sobre as quais se examinavam os catecúmenos e com as quais eram confrontados os cristãos na sua experiência de penitência.
Este nível de pecado pessoal refere-se a todos nós, porque são coisas imediatamente perceptíveis nos seus efeitos.
O pecado fundamental
Paulo vai ainda mais fundo e, seguindo o ensinamento de Jesus, denuncia o pecado fundamental que está na raiz de todos os outros: “Como não fizeram caso do verdadeiro conhecimento de Deus, Deus os entregou a sentimentos depravados. Por isso, procederam indignamente” (Rm 1,28).
Comparando a lista paulina com a de Jesus, compreendemos o ensinamento fundamental: todas estas coisas estão dentro de nós.
Saber que fazem parte de nós leva-nos a encará-los mais seriamente, buscando reflectir sobre elas com atenção. Pensemos, por exemplo, num tema que está presente nas duas listas: a inveja. Ou mesmo nas dissensões, divisões, facções. Podemos perceber a que ponto esses sentimentos habitam o nosso coração! Clemente Romano disse que Paulo foi morto por inveja: não foi a perseguição, o aprisionamento dos pagãos, mas a inveja de alguns que, como rivais, o denunciaram.
Este é um dos aspectos do pecado radical ao qual o homem está inclinado e ao qual cada um de nós está profundamente propenso e inevitavelmente atraído, se a força de Deus não vier em nossa ajuda.
Qual é este pecado fundamental?
Pode-se exprimi-lo de muitas maneiras, e cada maneira a partir da própria experiência. É “o pecado” de que fala João no quarto evangelho usando quase sempre o singular. É, substancialmente, o não querer reconhecer a Deus como Deus, é o pecado que está na raiz da revolta de Satanás: não reconhecer que a nossa vida é determinada somente por Deus.
A raiz oculta, e portanto não facilmente explicitável, de tudo o que se chama laicismo está precisamente aqui. Não se trata de uma propensão má, como por exemplo na escolha do furto, da injustiça, da mentira. O pecado está em dizer que não há necessidade de dar ouvidos a Deus, que não é a Palavra de Deus que determina a vida, mas, em última análise, a nossa simples escolha.
Eis o pecado fundamental do qual tudo o mais deriva, ao qual estão submetidas todas as faltas pessoais. Para Paulo, a distorção fundamental é a de não reconhecer o Deus do Evangelho; é a tendência a negar que o homem é feito para ouvir a Deus, para viver da sua Palavra; é a rejeição instintiva e diabólica em si, porque irracional, de se deixar amar e salvar por Deus e viver do seu amor. Esta rejeição pode assumir, como em Paulo, até à aparência de zelo: gloriando-se da sua tradição, da sua honorabilidade, ele de facto rejeita a misericórdia de Deus como determinante da sua vida.
É o pecado que realmente precisa ser curado no homem, para que seja curada a raiz das obras da carne. Injustiça, maldade, cobiça, malícia, inveja não são simples fragilidades e fraquezas, mas têm uma origem mais profunda.
O homem é um ser desgraçadamente descontente consigo mesmo e o seu descontentamento foi assumindo formas paradoxais, anormais. Este descontentamento de si é, na raiz, a recusa de ser amado, de deixar-se amar; é fixar-se de tal forma na própria autonomia a ponto de tornar-se um ídolo, com todas as reacções de tristeza ou de desespero que se seguem disto, e com todas as consequências de crueldade, de injustiça que são o ápice da maldade humana. Somente assim podemos explicar os grandes massacres, também recentes, da história, os homicídios desapiedados que aconteceram e que acontecem em momentos de revoluções políticas, sociais, em que transborda o desespero interior do homem. Quem está descontente consigo mesmo investe contra os outros.
Graças a Deus, só raramente encontramos na vida estes casos extremos; mas encontramo-los, existem e fazem a história. Com efeito, o que aconteceu nos campos de concentração no tempo de Hitler não pode ser explicado a não ser com este surgimento da demoníaca rejeição de Deus. Falando deste pecado, Paulo nos desconcerta porque, referindo-o a si mesmo e a todo homem, sublinha que é invencível. “Nós bem sabemos que a Lei é espiritual, enquanto que eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado. Porque não entendo o que faço. Não faço aquilo que quero e faço o que não quero. Fazendo o que não quero, reconheço, de acordo com a Lei, que ela é boa. Mas, de facto, já não sou eu quem age, mas sim o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita o bem. Realmente, não faço o bem que quero, mas o mal que não quero” (Rm 7,14-19).
É uma impotência humana histórica, misteriosa, paradoxal, chegando quase ao absurdo. O homem deseja o bem, mas se dá conta de que não o realiza. Condicionado pelas vicissitudes, pelas tensões, pelas dificuldades, pelas oposições que deve superar, ele se endurece e, endurecendo-se, fecha-se em si mesmo, se enrijece contra as dificuldades, fecha-se na posse e na autodefesa e assim rejeita a dependência de Deus, da sua Palavra e da sua misericórdia.
Nos casos mais graves revolta-se e nega a transcendência de Deus. Nos casos menos graves, o homem chega a viver o dualismo pelo qual nos momentos bons tem a impressão de tender para a audição da Palavra, e depois, tangido pelas circunstâncias, especialmente as adversas – amarguras, desilusões, ódios, contrastes, injustiças que sofre e que tem vontade de revidar – defende-se a todo custo, opõe-se aos outros e, sobretudo, evita qualquer referência à Palavra de Deus.
Com aquele “pecado que habita em mim”, Paulo tocou a profunda miséria do homem, difícil de compreender, mas experimentável nos efeitos, nas consequências, nas situações históricas.
O pecado estrutural
É a condição do homem histórico que, de facto, nas durezas da vida se concentra em si mesmo e, sem querer, se torna ávido, injusto, defensor do próprio bem a todo custo. Evidentemente, não é apenas o fruto da malícia individual, mas é a condição cultural no sentido amplo da palavra, social, do homem histórico. É o pecado inserido nos sistemas de vida, na mentalidade, nas ideias recebidas; é um modo de ser e de viver que a Escritura chama “mundo”, em sentido negativo, no qual, para além das belas palavras, prevalece a vantagem, a necessidade de se impor aos outros, de contra-atacar, de ser o primeiro a travar a polémica para não ser passado para trás. Não fomos nós que escolhemos esta realidade conflitual e poderíamos, como dom Abbondio, pensar que não nos diz respeito. Contudo, permanece o facto de não podermos evitá-la.
Não podemos alegar que essa condição humana, dramaticamente analisada por Paulo, não seja verdadeira; se reflectirmos com atenção veremos que nós mesmos estamos condicionados por ela. Não poucas das ideias recebidas como óbvias são fruto desta mentalidade, não poucas das nossas escolhas instintivas são devidas a esta mentalidade. Quando examinamos a história do passado e nos admiramos de que tenham sido feitas certas escolhas, também na história da Igreja – como a tortura e a guerra – deveríamos compreender que aquela gente vivia segundo as ideias recebidas. Era praticamente impossível subtrair-se a certa mentalidade que podia levar a cometer injustiças. Faz parte do caminho histórico do homem viver dentro da mentalidade do próprio tempo e fazer escolhas inadvertidas que talvez dentro de um ou dois séculos se apresentarão como erradas, mas que hoje, instintivamente, realizamos.
Este pecado estrutural, inserido na vida social, económica e na mentalidade, é denunciado por Paulo e é um aspecto da realidade porque, enquanto o denuncia, afirma que no mais profundo do coração do homem há uma mentalidade oposta: a abertura a Deus.
O homem é mais aberto a Deus do que fechado; mas historicamente o fechamento frente a Deus é o facto que irrompe e se manifesta em determinadas circunstâncias.
A salvação que Deus oferece ao homem é o reencontrar, o reviver pela graça e pela misericórdia, na plenitude do encontro com Cristo, a potencialidade daquela abertura originária que cria a mentalidade do bem, a cultura positiva.
O homem não pode reconhecer tudo isto se antes não tem a percepção do mal. Tal conhecimento do mal não deve ser fonte de pessimismo sistemático; ela é um facto que nos permite um juízo verdadeiro sobre a realidade.
Um exemplo da vida de Jesus pode explicar melhor o que acabei de dizer sobre o pecado estrutural e sobre a maneira como ele nos envolve. É o episódio que antecede a paixão: “Quando Jesus estava sentado à mesa, em Betânia, na casa de Simão, o leproso, veio uma mulher trazendo um jarro de alabastro com perfume de nardo puro e muito caro. Quebrando o vaso, derramou o perfume sobre a cabeça de Jesus. E alguns dos presentes davam sinais de indignação, comentando entre si: ‘Para que este desperdício? Podia ter sido vendido este perfume por uma boa quantia para dar aos pobres’. E reprovavam severamente a mulher. Mas Jesus disse: ‘Deixai-a! Por que a incomodais? Foi uma boa obra que ela fez em relação à minha pessoa”’ (Mc 14,3-6).
Trata-se de um julgamento sobre uma acção particular. Jesus e a mulher encontram-se sozinhos e aqueles que os cercam, agindo por motivos instintivos, condenam aquele gesto, não sabem compreendê-lo. É um caso típico da força da mentalidade que se comunica de um a outro e não permite a abertura à verdade de um gesto que tem um significado profético. Agindo com as convicções habituais, com aquilo que parece ser o bom senso comum, todos se colocam contra Jesus que fica sozinho.
Paulo vive em si mesmo, e com o mundo com o qual se sente solidário, toda a realidade desta mentalidade comum quando diz: “Como sou infeliz! Quem me libertará deste corpo destinado à morte?” (Rm 7,24). Em outras palavras: para mim, não há jeito de escapar diante da realidade desta situação. E logo acrescenta: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor!” (Rm 7,25).
Na sua cegueira, o Apóstolo penetrou até ao fundo – para além daquilo que é dado ao homem normal – no mistério das trevas do homem e assim pôde compreender o poder da luz de Cristo e das suas capacidades de refazer um mundo novo. Na experiência das trevas percebeu o poder da iluminação baptismal, à qual então se submeteu de boa vontade pelas mãos de Ananias, recebendo na Igreja e da Igreja o poder de salvação.
A encíclica Dives in misericordia, falando da inquietação e das fontes de inquietação, diz: “Evidentemente, uma falha fundamental, ou antes, um complexo de falhas e um mecanismo defeituoso está na base da economia contemporânea e da civilização materialista, que não permite à família humana afastar-se das situações tão radicalmente injustas” (n. 11). O Papa aplica à realidade da família humana aquela capacidade que Paulo aplicava ao homem: vejo, quero e não posso. É estendida a uma situação de estrutura a realidade que o homem já experimenta no fundo de si mesmo, no pecado estrutural que está nele.