AS CONFISSÕES DE PAULO
Carlo Maria Martini

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I – NO CAMINHO DE DAMASCO

Nestas meditações sobre as confissões de Paulo procederemos segundo o método da alternância. Inicialmente nos deteremos num episódio de conversão, procurando repensá-lo e revivê-lo. Na meditação seguinte, passaremos ao aprofundamento doutrinal e espiritual dos temas que emergiram do episódio, assim como Paulo os propõe nas suas cartas.

O primeiro episódio de conversão é o acontecimento de Damasco. Com efeito, se perguntássemos a Paulo, que se prepara para sofrer o martírio, qual o facto determinante da sua vida, não há dúvida de que responderia: o encontro de Damasco.

A vida inteira do Apóstolo é marcada por esse acontecimento. É-nos difícil compreender isto porque, na realidade, o próprio Paulo só no momento da morte compreende o que significou para ele aquele episódio. Provavelmente também nós compreenderemos o que foi para nós o baptismo e a ordenação sacerdotal somente no termo do nosso caminho.

De outro lado, se é difícil partir de Damasco, porque é o episódio que encerra tudo e que só pode ser compreendido no exame das conversões sucessivas, contudo é certo que para Paulo tudo começa ali. Antes, tudo era diferente; depois, tudo será diferente.

Falsas Interpretações

1. Comecemos pondo de lado antes de tudo algumas ideias falsas que podemos ter com relação a este episódio.

É um relato tão batido e repetido na catequese, na liturgia, na arte – os quadros sobre Paulo geralmente representam a cavalo, a queda, a luz – que é facilmente banalizado e compreendido de maneira redutiva, com consequências graves para o nosso modo de compreender o caminho de Deus no homem.

• Uma primeira ideia falsa, ou incompleta, é pensar em Damasco somente sob a óptica de uma conversão moral: Paulo era um grande pecador e, a certa altura, compreendendo o mal que estava fazendo, muda a sua maneira de viver. A conversão em nível de mudança ética, que denota a tenaz vontade de Paulo, assinala uma profunda transformação e um caminho interior.

Nesta óptica, tudo se concentra naquilo que Paulo era, naquilo que faz para mudar, naquilo que Paulo se torna.

• Outra interpretação redutiva é a de pensar em Paulo como o homem que muda de bandeira. Um zeloso observador da Lei que, a partir de certo ponto, põe o seu zelo, a sua habilidade oratória, a sua incansável actividade ao serviço da nova bandeira de Cristo.

Aqui há só mudança de objecto, mudança de igreja: antes servia a Sinagoga, depois a Igreja de Cristo que ele viu como o caminho vencedor. Também na história cristã repete-se aquilo que chamamos conversões e que na realidade são mudanças de bandeira; às vezes verifica-se até uma passagem ulterior para uma terceira bandeira.

Entra-se na dinâmica em que o vulcão das próprias energias, colocado numa coisa, se desloca para outra que parece melhor. Possível que acabe voltando para a primeira coisa, gerando inquietação em muitos que não compreendem mais o que está acontecendo. Por isso não se trata de uma conversão, mas simplesmente de uma mudança de campo.

Se interpretamos a conversão de Paulo desta maneira, a consequência é que aplicamos à nossa conversão ou à conversão dos outros estes modelos interpretativos, reduzindo muito a acção de Deus.

2. Além disso, procuremos afastar aquilo que atribuímos a Paulo ou que pensamos que ele disse da sua conversão.

A primeira é precisamente a palavra “conversão”.

Pergunto-me se é correcto falar de “conversão de Paulo”, mesmo porque ele nunca usa esse termo para o evento de Damasco. Talvez não tenhamos compreendido muito daquilo que aconteceu: nós classificamo-lo de certa maneira, reduzindo-o a uma categoria simples, mas não exaustiva.

Sabemos que o termo “conversão” é típico do Novo Testamento: hoje, nas nossas traduções, lemos “conversão” onde as traduções mais antigas, que reflectiam sobretudo a Vulgata, falam de “penitência”. Evidentemente houve uma mudança de linguagem.

Em tempos passados, o primeiro anúncio de Jesus que se encontra em Mc 1,15 era traduzido: “Fazei penitência e crede no Evangelho”. Era um decalque do latim paenitemini. Hoje traduzimos “convertei-vos” A palavra conversão tomou mais exactamente o lugar de “arrependei-vos” ou “fazei penitência”.

Portanto, no Novo Testamento há um vocabulário especifico da conversão que convém lembrar, porque nos faz compreender coisas não totalmente exactas.

O termo “Conversão” é típico da Bíblia em que se usa o verbo hebraico “sub” que quer dizer “retornar”. Conversão é exactamente aquela manobra pela qual se vai numa direcção, a certa altura se dá uma brecada e se volta atrás.

No Novo Testamento a ideia de retorno é expressa sobretudo com dois verbos que encontramos nos sinópticos e nos Actos: “metanoéin”, que significa mudança de mentalidade; “epistréfo”, que indica mais propriamente o “retornar”.

Em Mc 1,15: “Completou-se o tempo. Chegou o Reino de Deus. Convertei-vos e crede no Evangelho”, o verbo é “metanoéite”. Mas em At 3,19 (o segundo discurso de Pedro) encontramos tanto “metanoéin” como “epistréfo”: “Arrependei-vos pois, e mudai de vida, para que sejam cancelados os vossos pecados”. Volta a tradução “arrependei-vos” por ter uma variedade de termos com relação à outra “mudai de vida”, mas o sentido é este: mudança de mentalidade; é o retorno.

Também a palavra “arrepender-se” tem um significado preciso; refere-se tanto à dor interior por aquilo que se fez como às formas penitenciais que se tomam como símbolo da mudança verificada. Portanto, todos os vocábulos devem ser tomados juntamente, e o tema fundamental é o do “retorno”. Segundo os actos dos Apóstolos, o próprio Paulo usa esta linguagem quando resume a sua pregação: “Preguei aos pagãos para que se convertessem e voltassem a Deus, realizando obras de verdadeira conversão” (At 26,20); os dois verbos são “metanoéin” e “epistréfein”; e fala também de obras de “metanoias”.

Precisamente por isso nos espantamos de que o Apóstolo nunca tenha descrito o próprio evento com a palavra “conversão”. Não diz ter feito uma acção que define com “metanoéin” ou com “epistréfein”.

Paulo compreendia muito bem o que era uma conversão e sabia que a sua tinha todas as características de uma conversão. Contudo, o evento por ele vivido tinha modalidades maiores e mais profundas. É preciso também dizer que, enquanto os sinópticos e os actos usam com frequência o vocabulário da conversão, João jamais o usa. Isto demonstra que no Novo Testamento há diferentes pontos de vista para captar a complexidade do fenómeno do caminho do homem para Deus. João prefere dizer: vir a Jesus, vir a ele, ir a ele. A ideia fundamental da conversão – que é profundamente bíblica – é expressa no quarto Evangelho em termos de relação pessoal com Jesus, em termos de seguimento. Isto já está mais próximo da leitura que Paulo fez da própria conversão.

O mistério de Damasco

Esplanado o caminho de interpretações falsas e redutivas, vejamos como o Apóstolo descreve o evento de Damasco.

A primeira surpresa é que o descreve pouco. Quase cala aquele evento fundamental para ele e por ele desenvolvido em todas as suas cartas. Penso que é este o episódio que no momento da morte ele tem claramente diante dos olhos; contudo, embora sendo tão autobiográfico, quase nunca fala disto directamente. Talvez para Paulo tenha sido mais importante a integração de Damasco na sua vida, como a viveu e como a introduziu na teologia.

Quais são os poucos textos em que fala disto?

a) Nas grandes cartas, o único texto fundamental em que descreve o encontro de Damasco é a carta aos Gálatas: “Mas, quando aquele que me escolheu desde o seio da minha mãe, e me chamou pela sua graça, achou bom revelar o seu Filho em mim, para que o anunciasse aos pagãos…” (Gl 1,15-16). Os verbos que usa para falar disto são quatro: me escolheu.., me chamou... Achou bom revelar… para que anunciasse. Destes verbos, somente o terceiro se refere directamente à conversão. Os outros colocam a conversão num quadro de providência: escolheu-me, achou bom, isto é, decidiu, quis revelar a mim. Portanto, a experiência é descrita essencialmente como revelação do Filho a ele (segundo o texto grego “nele”) e como missão.

b) Numa passagem da carta aos Romanos, Paulo transfere para um quadro de descrição geral o que ele mesmo experimentou: “Os que ele conheceu previamente, também os predestinou a reproduzir a imagem do seu Filho, para que ele seja o primogénito entre os muitos irmãos. E aqueles que ele predestinou também os chamou, e aos que chamou também os justificou, e aos que justificou também os glorificou” (Rm 8,29-30).

c) Na primeira carta aos Coríntios há um brevíssimo aceno, num contexto polémico: “Eu não sou livre? Não sou apóstolo? Não vi Jesus, nosso Senhor?” (lCor 9,1): Damasco foi um “ver o Senhor”. E mais adiante, na mesma carta: “E por último apareceu também a mim como um filho abortivo, porque eu sou o menor dos apóstolos; não mereço o nome de apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus” (lCor 15,8-9). Aquele que perseguia a Igreja define o evento de Damasco como aparição “a mim que não mereço”. Existem os elementos de conversão moral; mas o facto é este: Jesus apareceu.

d) Há outra passagem importante porque, embora não falando do evento, descreve a maneira pela qual Paulo a viveu: “Com efeito, se alguém pode depositar a sua confiança na carne, eu posso muito mais! Fui circuncidado no oitavo dia. Sou da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu descendente de hebreus. Fui fariseu quanto à lei, levado pelo ciúme da lei, um perseguidor da Igreja e, no que toca à justiça da lei, sempre irrepreensível. Mas essas que eram vantagens para mim, as considero desvantagens por causa de Cristo. Sim, considero tudo isso uma perda em comparação com a sublime vantagem de conhecer a Cristo Jesus, meu Senhor. Por ele, renunciei a tudo, e passei a considerar tudo como uma imundície, para ganhar a Cristo. E para estar unido a ele, não mais com a minha justiça, aquela que vem da lei, mas com a justiça que vem pela fé em Cristo, aquela que é dom de Deus e está fundada na fé” (Fl 3,4-9).

O antes e o depois é em termos de posse e pobreza (nova posse de Cristo). Mas a descrição de todas as coisas que tinha antes deve fazer-nos pensar. Na carta aos Coríntios escreveu: “Sou o menor” (nós diríamos pecador); agora se define “sempre irrepreensível no que toca à justiça da lei”. Eis por que não é fácil usar a categoria do pecador e do blasfemador quando se fala de Paulo.

Se ele é irrepreensível, o que mudou nele? “Por ele, renunciei a tudo, e passei a considerar tudo como uma imundície, para ganhar a Cristo”. Nele se realizou uma reavaliação total de todo o seu mundo; o que antes considerava importante agora fica reduzido a zero, não dá mais importância a isto. O que antes para ele seria irrenunciável agora tornou-se imundície, porque o conhecimento de Cristo assumiu um primado absoluto, é a capacidade de preencher tudo. O encontro, o conhecimento, a plenitude de Cristo faz empalidecer os seus julgamentos e as suas avaliações.

e) Outro texto importante: “Pois o Deus que disse: ‘Das trevas brilhe a luz’, é quem faz brilhar a luz nos nossos corações, para manifestar a luz do conhecimento da glória de Deus, que se reflecte na face de Cristo” (2Cor 4,6). Aqui se faz referência a todo apóstolo, mas tem uma força particular se o aplicamos à conversão de Paulo. O Deus da criação brilha no seu coração e o ilumina para fazer-lhe compreender a riqueza de Cristo, a sua vida.

f) A última passagem é a que mais facilmente nos faz interpretar moralmente a conversão de Paulo. Seria injusto deixá-la de lado, embora apresente problemas do ponto de vista da linguagem: “Dou graças a quem me deu forças, a Cristo Jesus, nosso Senhor, porque me considerou digno de confiança, pondo-me ao seu serviço, a mim que antes fui blasfemo, perseguidor e ofensor insolente” (lTm 1,12-13).

Mas, então, era um blasfemo e um insolente? Era irrepreensível – como escreve aos Filipenses – ou era um pecador também moralmente?

Prossegue: “Mas alcancei misericórdia, porque eu ainda não tinha abraçado a fé. E a graça de nosso Senhor se manifestou com grande riqueza, juntamente com a fé e a caridade, que provém da união com Cristo Jesus. Esta palavra merece crédito e toda a aceitação: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro. E se a misericórdia me foi dada, foi para que Jesus Cristo manifestasse primeiro em mim toda a sua generosidade, para que eu servisse de exemplo aos que devem crer a fim de conseguir a vida eterna” (lTm 1,13-16). Eis todo o incompreensível e riquíssimo mistério desta conversão.

Portanto, o evento de Damasco é muito mais complexo do que um simples episódio de uma conversão moral, de uma mudança de mentalidade.

É algo tão rico que devemos aproximar-nos com muita humildade e reverência, convencidos de que compreendemos pouco, que sabemos pouco com relação a isto, mas que poderemos conhecer muito mais pela graça de Deus. Então compreenderemos melhor a nós mesmos, o caminho da nossa vida e as nossas conversões.

As perguntas para nós

Terminemos fazendo-nos uma pergunta fundamental, de acordo com a meditação: quando foi que me converti?

Existe na minha vida um “quando” da conversão ao qual posso referir-me como momento histórico? Mesmo que não tenha havido um “quando” temporal, certamente aconteceram momentos de mudança, de transformação, de crise que nos levaram a uma nova compreensão do mistério de Deus.

Se nunca realizamos a fundo esta mudança de mentalidade que é essencial para a vida cristã, ainda não chegamos a compreender o que é a novidade do caminho cristão, voltar atrás. Se não compreendo bem as coisas ditas sobre Paulo, provavelmente é difícil que compreenda o que aconteceu em mim. Neste caso devo entregar-me à oração e dizer assim:

Senhor, faz-me compreender a minha vida. Faz que, como diz Jeremias, eu possa colocar no meu passado balizas: “Revede os caminhos do passado, colocai balizas de referência”. Ajuda-me a compreender as etapas, o teu desígnio, os momentos de luz e os momentos de sombra, de provação, talvez até ao limite da tolerância. Dá-me conhecer em que ponto estou neste caminho e onde me encontro. Peço isto por Jesus Cristo Senhor nosso. Amém.