AS CONFISSÕES DE PAULO
Carlo Maria Martini

Texto pdf:

SUMÁRIO

  • Prefácio
  • Introdução
  • I. No caminho de Damasco
  • II. O conhecimento de Jesus
  • III. As trevas do homem Paulo
  • IV. Conversão e desilusão
  • V. Exame de consciência pastoral
  • VI. Conversão e ruptura
  • VII. A transfiguração de Paulo
  • VIII. Passio Pauli, Passio Christi
  • IX. Deus é misericórdia

PREFÁCIO

Na história das origens do cristianismo, a conversão de são Paulo deve ser colocada entre os factos mais importantes. A poderosa figura do Apóstolo sobressai entre os outros apóstolos e discípulos. As suas palavras foram luz no sinuoso caminho dos homens de todas as épocas.

Também os que escutaram estas meditações chegaram à convicção profunda de que um conhecimento mais íntimo de Paulo e um aprofundamento do seu pensamento leva inevitavelmente a Cristo.

Tudo nele produz fascínio: o evento de Damasco, o amor apaixonado por Jesus e o desejo ardente de viver nele e para ele, o caminhar indefeso pelo mundo, tangido e consumido pela caridade, a incansável e febril paixão pela Igreja, o ímpeto da sua ternura pelos irmãos.

Com espanto o vemos açoitado, surrado, náufrago, abandonado pelos amigos, humilhado e, por fim, prisioneiro em Roma.

Pálido, doente e acabado, é levado a um vale solitário, a cerca de três milhas da cidade, num lugar chamamento naquela época Aquae Salviae, hoje Tre Fontane. O seu corpo é açoitado pela última vez. Inclina a cabeça à espera da espada que o conduzirá ao martírio: a cabeça cai, bate três vezes no chão e pára.

Realiza-se o único desejo da sua vida: Paulo está com o seu Senhor e Mestre Jesus Cristo.

Dom Martini – como dirá ele mesmo na introdução – foi muitas vezes rezar e reflectir junto às antigas Aquae Salviae.

Lentamente, a partir daquele lugar, amadureceu nele, até exigir uma resposta, a pergunta: naquele quarto de hora antes de morrer, como é que Paulo captou numa visão de conjunto o significado da sua densa e sofrida existência?

Daqui nasceu o desejo de dar um Curso de Exercícios Espirituais para induzir o Apóstolo a fazer as suas “confissões”.

Os Exercícios Espirituais não são capítulos de um livro e nem um curso de estudos bíblicos. Mais do que isto, para quem os dá e quem os faz, são um episódio da história da própria salvação.

Sem dúvida, as meditações mostram o profundo conhecimento que dom Martini tem dos Actos dos Apóstolos e das cartas paulinas. Mas é importante sublinhar o facto de que se aproxima de Paulo até identificar-se com ele.

Comunica a quem lê o mesmo amor apaixonado por Cristo que Paulo tinha, o seu desejo de servi-lo muito antes de servir a Igreja de Cristo, a sua tensão espiritual que o leva a olhar para ele sempre, a buscá-lo em tudo e, sobretudo, a viver dele.

Em tom simples e modesto, com palavras cheias de humanidade, o arcebispo revela mais uma vez um pouco de si mesmo e o comunica deixando no coração o desejo de aprender.

É possível que estas páginas possam suscitar no homem de hoje, destruído pela ansiedade frenética do nosso tempo, a necessidade de percorrer o único caminho no qual todo homem pode andar com segurança: Jesus Cristo. De voltar a ele, Filho de Deus, na oração, na estima renovada pela Cruz e, sobretudo, na sede de ouvir a sua Palavra e contemplar o seu Rosto.

* Este curso de Exercícios foi dado aos sacerdotes da diocese de Milão, em Rho, em setembro de 1981. O texto, transcrito de gravação, não foi revisto pelo autor.

INTRODUÇÃO

Nós te agradecemos, Pai, por ter-nos reunido no nome do teu Filho. Foi ele quem nos trouxe aqui, e nós obedecemos à voz do seu Espírito, mais profunda do que todas as outras razões humanas. Estamos diante de ti para dizer a tua Palavra e para escutá-la. Desperta no nosso coração o dom que nos deste pela imposição das mãos, desperta em nós o dom do baptismo e do crisma, desperta a plenitude dos dons que nos levaram até este momento para que, agradecendo-te na alegria, possamos conhecer agora a tua vontade. Nós te pedimos por Cristo, Senhor nosso. Amém.

Encontramo-nos juntos pelas necessidades de todo o povo de Deus: queremos santificar-nos por tantas intenções e por tantos sofrimentos que cada qual traz no próprio coração.

Podemos resumi-los na palavra exortadora que Paulo dirigia à comunidade da Ásia Menor, reanimando os discípulos e exortando-os a permanecer firmes na fé porque “precisamos passar por muitos sofrimentos para poder entrar no Reino de Deus” (At 14,22).

É a repetição daquilo que Jesus disse aos discípulos de Emaús: “Não era preciso que Cristo sofresse essas coisas para entrar na glória?” (Lc24,26).

A correspondência verbal entre Jesus e Paulo é significativa: o Apóstolo reencarna, para as comunidades, a mensagem do Ressuscitado.

O tema dos Exercícios

O tema deste curso de Exercícios quer partir precisamente da experiência de Paulo.

O lugar tradicional do seu martírio é Tre Fontane, em Roma. Chega-se lá através de uma longa alameda que convida ao silêncio; entra-se no átrio da igreja cisterciense; indo em frente, chega-se a uma igreja redonda (a escada do Paraíso). Mais adiante, a igreja de Tre Fontane, assim chamada como recordação da cabeça de Paulo que por três vezes bateu no terreno antes de parar no instante dramático da morte.

Fui para lá muitas vezes quando estava em Roma, sobretudo nos momentos de obscuridade ou de confusão espiritual. Esforçava-me por imaginar como Paulo teria percorrido aquele último trecho da sua vida: despojado da clâmide, agarrado pelos soldados. Como terá ele revisto a sua existência, a sua conversão, as dificuldades, os litígios com Barnabé e Pedro, as depressões, os momentos de solidão, os catorze anos de deserto, o sentir-se rejeitado pela comunidade? Como terá repensado as alegrias vividas, as grandes cartas, a actividade intensa?

Quais os elementos que lhe terão parecido válidos e importantes diante da morte, quando o homem é totalmente verdadeiro, sem nenhuma possibilidade de retórica ou ocultamento?

Mais de uma vez pensei que seria interessante fazer um curso de Exercícios reflectindo juntamente com Paulo sobre o seu apostolado e revivendo-o com o olhar com que ele o reviveu no último quarto de hora da sua vida terrena.

Eis como nasceu o tema dos Exercícios deste ano.

Por isso, com fraternidade e amizade, procuremos fazer com que Paulo confesse a sua vida, um pouco à maneira das confissões de Agostinho ou de Jeremias.

Naturalmente, será preciso relacionar a experiência de Paulo com a experiência da Igreja e com a de cada um de nós, de modo a responder à pergunta fundamental: qual é o desígnio de Deus sobre mim? De que maneira posso vislumbrar na minha vida, assim como a vejo agora e com a ajuda das confissões de Paulo, um desígnio de misericórdia? As confissões de Paulo, de outro lado, são também a história das suas conversões.

A primeira foi tão grande, impressionante e violenta que somente nos anos seguintes pôde integrar o seu significado em níveis sempre mais profundos.

Também para nós a conversão inicial do baptismo e o evento fundamental que é o chamamento à ordenação presbiteral são tão impressionantes que somente aos poucos, através de sucessivas conversões, conseguimos aprofundar e verificar o poder transformador da graça.

O trabalho fundamental

Num curso de Exercícios, porém, o mais importante não é o tema, porque o trabalho fundamental é aquele que cada um deve realizar seguindo uma linha que tem os seguintes pontos fundamentais:

escuta da Palavra de Deus proclamada na proposta de meditação, na liturgia, no ofício divino, na celebração eucarística;

leitura de alguns textos da Escritura sugeridos em cada meditação;

reflexão meditativa, segundo diversos métodos e modos que vão da reflexão directa sobre as coisas lidas e ouvidas, ao exame da própria vida diante de Deus;

oração: oração de adoração, de louvor, de agradecimento, de penitência e petição;

comunicação na fé: é um elemento não necessário, mas útil para quem o deseja. Depois das Completas é possível encontrar-se para trocar ideias sobre o que ouvimos como particularmente importante para nós e que pode ser útil também para os outros.

Dificuldades e modos de superá-las

O hábito: não é a primeira vez que fazemos os Exercícios e precisamente por isso há o perigo de começar sem esperar muito, sem empenhar-se, e talvez até de não lembrar-nos bem do objectivo dos Exercícios.

O número:somos muitos, demais para um curso de Exercícios. O ideal, para um curso, é que seja possível um intercâmbio e certa atenção de quem propõe as meditações ao caminho de cada um. Quando há muita gente, a proposta fica mais genérica, com o risco de ser mais anónima. Por isso, convém que eu proponha dois pontos práticos para que se possam evitar as dificuldades.

Máximo cuidado com a solidão interiorpara que cada um possa sentir-se só com Deus. Isto não exclui a comunicação com os outros, a qual deve acontecer em nível profundo, na comunhão de oração. Solidão com Deus como raiz de comunhão.

A solidão não é isolamento, mas imersão na misericórdia de Deus, base da verdadeira comunhão entre os homens. Por isso vos convido a evitar tudo o que possa perturbar os outros, de modo que cada qual viva a experiência dos Exercícios como se estivesse sozinho.

Fixar o tempo ou os tempos. Alguns tempos são fixados por um ritmo necessariamente comum: as meditações diárias, a liturgia eucarística, alguns momentos da liturgia das horas, algum momento de adoração. Mas é importante também que cada um fixe os seus tempos pessoais, respondendo a três perguntas:

a) Quanto e que tempo pretendo dar à reflexão, à oração contemplativa propriamente dita. É preciso evitar deixar-se guiar pelo arbítrio do momento, pelo humor, pelo cansaço ou pelo entusiasmo.

b) Quanto e que tempo pretendo dar à leitura bíblica. Faremos parte dessa leitura já durante o almoço e o jantar: serão leituras da vida de Paulo, dos actos dos Apóstolos, do cap. 9, a primeira conversão, e depois passando ao cap. 13 até ao fim do livro.

Como leitura recomendada seria conveniente reler atentamente algumas das maiores cartas de Paulo, que talvez nunca tivemos ocasião de ler por inteiro, num momento de calma, dedicado precisamente a isto. O não-conhecimento das cartas de Paulo leva-nos a não compreender o evangelho a fundo.

Sugiro cinco leituras fundamentais:

1Tessalonicences, Gálatas, 2Coríntios, Filipenses, Colossenses. Com estas cinco cartas temos todos os temas de Paulo:

• os temas escatológicos, na 1Tessalonicenses;
• os temas da presença da salvação em Gálatas;
• os problemas eclesiológicos fundamentais na 2Coríntios (a 1Coríntios também os desenvolve com bastante amplidão, mas a 2Coríntios apresenta alguns pontos essenciais da eclesiologia em luz autobiográfica);
• a carta aos Filipenses, que é um resumo da experiência de Paulo;
• e uma carta típica da concepção cósmica da salvação do mundo e da história, que é a carta aos Colossenses.

c) Que fruto desejaria obter dos Exercícios? O que é que neste momento é mais importante na minha vida? O fruto fundamental poderia ser o de compreender o desígnio de Deus, agora, para mim. Nós o compreendemos quando nos preparamos para a ordenação, mas agora talvez seja o momento providencial para refazer todo o caminho da ordenação até hoje e procurar compreender o desígnio de Deus sobre nós. Falei do fruto fundamental, mas evidentemente cada um pode propor aquele que lhe parece mais importante.

Peçamos a Maria, que compreendeu sempre mais profundamente o desígnio de Deus sobre si, que nos faça compreender o que intuímos, no Espírito, desde o nosso baptismo e, com consciência mais madura, na nossa ordenação.