Meditação – Solenidade do Sagrado Coração de Jesus
Meditação do Pe. Alexandre Palma
ao Presbitério do Patriarcado de Lisboa
Texto PDF:

Com demasiada frequência vamo-nos tornando cegos para aquilo que habitualmente temos diante dos nossos olhos. É como se estes – os nossos olhos – tomados pela rotina, se fossem tornando insensíveis àquilo que se nos dá a ver todos os dias, durante meses, anos, durante uma vida. Parece que o instinto da nossa atenção se activa com o novo, o desconhecido, o inesperado. Talvez seja este um resquício ou vício que a evolução da nossa espécie e a necessidade de sobrevivência tenham deixado em nós. O costumeiro, ao invés, de tão familiarizado e garantido, perde esse interesse espontâneo e, assim, vai-se-nos tornando transparente, invisível, arriscando mesmo tornar-se insignificante.
Todos nós convivemos quotidianamente, de uma forma ou de outra, com a presença do Sagrado Coração de Jesus. O mais provável é que isso ocorra, de uma forma ou de outra, há uma vida. De facto, a espiritualidade associada ao Sagrado Coração de Jesus tem uma forte componente estética, imagética, plástica, simbólica. A sua figura, mais que outra coisa, habita o nosso imaginário crente. A sua imagem ocupa, com frequência, um lugar de destaque nas nossas igrejas. O Sagrado Coração de Jesus, seja como imagem seja como convite à identificação com Cristo, tornou-se algo de sempre, de todos os dias, meses e anos. Tornou-se familiar, como alguém de casa. Daí a interpelação: ainda o vemos?…
As reflexões que agora partilho convosco nascem precisamente daqui: do esforço de rever, isto é, do esforço de voltar a ver o Sagrado Coração de Jesus. Queria eu tal que pudesse suceder com aquela simplicidade no olhar próprio das crianças, modelos do Reino (cf. Mt 19, 4). São elas os grandes mestres da curiosidade e do encantamento. Queria eu que tal pudesse acontecer com aquela «pureza de coração» que Jesus não só manifesta, mas que também propõe como bem-aventurança. Com efeito, são esses, os «puros de coração» que vêem; são esses que «verão a Deus» (cf. Mt 5, 8). O que vemos no Sagrado Coração de Jesus? O que se nos dá a ver?
1. «Está fora de si» (Mc 3, 21)
Primeira observação: Jesus tem o seu Sagrado Coração sobre o peito, ou seja, no exterior do seu corpo. De repente, ganha sentido novo aquela observação dos familiares de Jesus: «Está fora de si» (Mc 3, 21). Este versículo é uma legenda exacta do que se percebe de Jesus no seu Sagrado Coração. Claro está que se trata de uma forma plástica de representar o seu coração, que de outra forma permaneceria invisível aos nossos olhos, escondido na cavidade torácica. A piedade precisa de ver. Eis porque se tornou necessário trazer o coração do interior do tórax para o exterior do seu peito. Mas, para lá destas ou quaisquer outras justificações, o facto permanece: Jesus tem o seu coração fora de si próprio.
Viajando pelo Evangelho, percebemos que é mesmo assim: Jesus tem fora de si o seu centro de gravidade. A massa ou o peso do seu ser está, por assim dizer, externalizada. Isto no-lo diz o seu Sagrado Coração. Fora de si significa aqui, em primeiro lugar, que tem o seu coração no Abba, seu Pai. Em segundo lugar, que o tem naqueles a quem o Pai o enviara: em nós. Jesus está pois longe daquela crise de identidade, tão tipicamente moderna (ou seja, nossa), de quem tem de se garantir para poder ser. Ao invés, o centro de tudo o que Ele é e vive (aquilo que genericamente se simboliza com o coração) está garantido fora de si, activado fora de si e, portanto, encontrado fora de si. Não é ausência de centro. Este está lá. É que esse centro se situa fora de si, o projecta para fora de si. E aí, Ele próprio se encontra. A identidade de Jesus não é pois uma defesa, mas uma exposição. Note-se a simbologia desta anatomia espiritual. A cavidade torácica é, desde logo fisiologicamente, um lugar de defesa. É uma cavidade particularmente bem resguardada pela estrutura óssea: esterno, costelas, vértebras. Mas não é nesse espaço natural de defesa que pulsa o coração de Jesus. É antes fora dele. Intencionalmente fora dele. Manifestamente fora dele. Não há alternativa para quem se quer dar, com Jesus e como Jesus. De facto, não há dom sem exposição.
2. O coração chega primeiro
Segunda observação: se assim é, então o seu coração chega primeiro. O coração assim exposto antecipa-se a tudo o mais no seu corpo. Segue à frente de tudo o mais em Jesus. É o primeiro elemento do seu corpo, parábola de todo o seu ser, a chegar a todo e qualquer lugar. Talvez se pudesse dizer antes assim: o Sagrado Coração antecipa-se. Será esta uma outra característica sua. Com esta observação quero, uma vez mais, explorar a força simbólica de como o Sagrado Coração se nos dá a ver. Porque esta antecipação do coração de Jesus não é tanto uma questão anatómica. Ela é antes uma outra janela para o ser e o viver de Jesus. Assim postas as coisas, haveria que dizer – e julgo que o podemos fazer com toda a propriedade – que o coração de Jesus encontrou os seus discípulos muito antes de da sua boca ter saído o chamamento: «Segue-me» (cf. Mc 1, 16-20); que o coração de Jesus acolheu a pecadora que lhe banhava os pés, muito antes de lhe ter declarado: «Estão perdoados os teus pecados» (Lc 7, 48); que o seu coração estremeceu com Lázaro muito antes de vislumbrar Betânia ou de se comover com as lágrimas de Marta e Maria (cf. Jo 11, 33); que o coração de Jesus chegou a Jerusalém muito antes de ali terem chegado os seus pés: ainda longe da cidade santa, indica Lucas, «Jesus tomou a firme decisão de ir para Jerusalém» (Lc 9, 51); que o seu coração se crucificou muito antes de subir à cruz, como se narra no contexto do Getsémani: «a minha alma está profundamente entristecida até à morte» (Mc 14, 34); que o seu coração se dera já todo muito antes de expirar na cruz: «Eu dou a minha vida, para de novo a tomar. Ninguém ma tira, mas Eu por mim mesmo a dou» (Jo 10, 17-18); que o seu coração se antecipou à ressurreição muito antes de ter sequer habitado e esvaziado aquele sepulcro: «Eis que subimos para Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue […] três dias depois, ressuscitará» (Mc 10, 33-34). No fundo, o Sagrado Coração de Jesus pulsa em êxodo, como o do Antigo Israel. Talvez seja mesmo isto e apenas isto: o coração de Jesus é desde sempre pascal, profundamente pascal. Ir à frente, antecipar-se é a sua marca.
3. Não esconde a vulnerabilidade
Terceira observação: este coração é e está vulnerável. Com efeito, não defendido nem resguardado, mas exposto e acessível, o Sagrado Coração não é impassível. Tal seria até uma contradição: um coração impassível. Bem pelo contrário, este Coração não esconde que pode ser ferido. Sinalizam-no ora os espinhos que o envolvem ora a ferida que o atravessa. A associação que a imagética faz à sua Paixão é clara. Mas a contemplação do Sagrado Coração faz-nos intuir que a paixão é, n’Ele, não um evento transitório, mas uma autêntica forma de ser, estável e consistente. Claro está que tudo isto nos desvia de uma visão de Jesus como herói guerreiro imune a todos os golpes. Ao contrário destes, Ele não exibe uma armadura, mas um coração. A ferida, aliás, é uma abertura, uma porta, uma ponte, um caminho – para que a vida corra: do seu lado «imediatamente correu sangue e água» (Jo 19, 34); para que a luz entre e saia, como sucedeu no sepulcro ferido, o sepulcro vazio.
A alternativa a um Jesus (e Deus) assim teria um altíssimo custo, custo esse que já o profeta Ezequiel denunciara (cf. Ez 36, 26). Sim, a alternativa a ter um coração assim exposto, dado e por isso vulnerável, seria um coração de pedra. Este, sim, seria impassível, inatacável, imutável. Mas seria também um coração pesado, fechado, impermeável, frio. A via do Sagrado Coração é a da assunção, descomplexada, da própria vulnerabilidade. Não como défice, contra o qual se deva lutar. Mas como abertura que torna possível a relação; como fragilidade que, segundo a necessária metanóia do Evangelho, é afinal a autêntica força de Deus. «Quando sou fraco, então é que sou forte» (2Cor 12, 10). Não saberia dizê-lo melhor que Paulo.
4. «Amou-os até ao fim» (Jo 13, 1)
Quarta observação: o Sagrado Coração mostra que prioritário é o amor. Digo prioritário no sentido daquilo que vem em primeiro lugar. Como aquilo que está à frente de tudo o mais. É certo que o coração no mundo bíblico não é exactamente, como se veio a tornar depois, o órgão símbolo dos sentimentos, da vida afectiva, ou melhor dizendo, da dimensão afectiva da vida. Isso explica que ao longo do Novo Testamento, se fale do coração como sede do pensamento, sede das intenções, sede de um monólogo interior (o servo desonesto de Mt 24, 48, por exemplo, «diz em seu coração»), sede da obstinação, sede da meditação (Maria meditava e guardava no coração todas aquelas palavras – Lc 2, 19.31), sede da fé (em Lc 24, 25, Jesus ressuscitado admoesta os discípulos de Emaús por serem «lentos de coração para acreditar»), até mesmo sede da visão (a Carta aos Efésios fala dos «olhos do coração», cf. Ef 1, 18). Claro está que o coração, na Escritura, é também sede do amor, ou não fosse ele a chave para ter como herança a vida eterna assim apresentada pelo próprio Jesus: «Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração» (Lc 10, 27). O coração é, pois, segundo a mais genuína intuição bíblica o lugar de uma síntese de ser e de viver a que me referirei um pouco mais à frente.
Mas prioritário é o amor. O Sagrado Coração exibe um Jesus afectuoso, um Jesus que não precisa de ser a-sentimental ou insensível para não ser sentimentalista. No fundo, porque Jesus é também afecto, como o somos nós também. Tem coração. Descontemos os eventuais excessos de um pietismo católico do Sagrado Coração tomado, por vezes, pelos excessos próprios do romantismo. Subjaz a estes excessos uma legítima reacção a um Jesus apenas ensino e discurso, ideia e doutrina. Demasiado geométrico, não apenas para as aspirações crentes, mas sobretudo para quem Ele efectivamente mostrou ser. O Sagrado Coração é também (não apenas, mas também) sede do amor, sede da afectividade.
Tenha-se presente um elemento concreto do agir de Jesus (apenas um, entre outros possíveis): para ele, prioritário, foi e é a misericórdia, esse amor praticado. A misericórdia está, com efeito, estreitamente associada ao coração, seja pela etimologia (misere + cordis) seja pela própria narrativa evangélica. Sintomaticamente, Jesus precipita-se a misericordiar cegos, paralíticos e outros miraculados antes mesmo de neles operar qualquer cura física (cf. Mc 2, 1-12). Estranha prioridade para os critérios da nossa mente. Prioridade absoluta para os critérios do seu Sagrado Coração.
5. «Não ardia o nosso coração?» (Lc 24, 32)
Quinta observação: há um fogo no Sagrado Coração. Assim é representado, com umas chamas que se levantam do coração de Jesus, frequentemente envolvendo uma cruz que nele se acha cravada. Desse Coração assim em fogo se alarga um resplendor de luz. Ele próprio no-lo havia prevenido: «Vim lançar fogo sobre a terra e que desejo Eu, senão que já estivesse ateado!» (Lc 12, 49).
Este fogo, podemos conjecturar, é o Espírito Santo que nesse Coração habita e que desse Coração se irradia. Desde sempre esse Coração se pautara pela moção do Espírito: da estação inicial no deserto (cf. Mc 1, 12) ao seu definitivo expirar sobre a cruz (cf. Jo 19, 30). Este fogo é aquele Baptismo novo do qual o Baptismo de João fora apenas profecia: «Ele baptizar-vos-á no Espírito Santo e no fogo» (Lc 3, 11). Este fogo é a paixão de quem ama. Este fogo é a pena que sempre padece quem ama. Este fogo é a alegria de quem sente o coração abrasar-se-lhe no peito: «Não ardia o nosso coração» (Lc 24, 32). Este fogo é a sua energia, a sua força, a sua motivação para fazer acontecer, em tudo e até ao fim, o Reino de Deus. Isto nunca faltou a Jesus: um fogo a arder no peito, um fogo a movê-lo na vida. Como indica o autor da Carta aos Hebreus: «Deus é um fogo abrasador» (Hb 12, 29).
6. Coração nas mãos – mãos no coração
Sexta observação: este coração tem mãos; aquelas mãos têm um coração. Há um movimento de mãos em torno do Sagrado Coração. Estabelece-se, deste modo, uma relação entre mãos e coração. Por norma, a mão esquerda conduz o olhar para o Sagrado Coração, ao passo que a mão direita oferece-o a quem observa (variantes nesta representação, aparentam colocar esta mão direita a abençoar quem observa). Num duplo movimento, portanto, centrípeto e centrífugo, para o Coração e a partir do Coração.
Definitivamente, o Coração de Jesus não se encerra num calor sentimental. Ele tem mãos. Faz-se acção. É caridade. É caridade operativa.
Dir-se-ia que as mãos de Jesus têm um coração. A ele conduzem. Para ele apontam. Por ele se movem. Dir-se-ia também que Jesus tem o coração nas mãos. Esta expressão pode assumir, na nossa linguagem corrente, dois sentidos. Um é o de ansiedade. O Sagrado Coração não tem o coração nas mãos neste sentido. Tudo o mais nele, desde logo a serenidade espelhada no rosto, negam tal possibilidade. Outro sentido é o de autenticidade, sinceridade, franqueza. É assim que Jesus se oferece. Com o coração posto na palma das suas mãos. Como quem no-lo dá, em toda a sua integridade e de forma franca. Talvez para que o seu Coração possa também pulsar no nosso peito. Talvez para que o seu Coração, todo dado, possa passar de mão em mão. Das suas para as nossas. Das nossas para as do mundo inteiro.
7. Síntese de um todo
Sétima e última observação: o Sagrado Coração dá unidade à figura de Jesus. Como referi anteriormente, o coração é na Bíblia o lugar da síntese de vida, o órgão em que simbolicamente se integra e harmoniza o tanto que o Homem é, o tanto que o compõe. Posto ao centro, equidistante de tudo o mais na representação de Jesus; irradiando a sua luz em todas as direcções, a 360 graus; insinuando-se como lugar de convergência e de difusão, o Sagrado Coração mostra-se o foco de uma vida unificada, coerente, equilibrada. O Coração parece operar nele o que Paulo descreveu do corpo eclesial, mas mesmo então falando de Cristo: «O corpo é um e, não obstante, tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo. Assim também acontece com Cristo» (1Cor 12, 12). Com efeito, tudo aqui passa através do Coração, tudo parece polarizado pelo Coração: o gesto de cada mão; a profundidade do olhar; o movimento do dorso; o ligeiro inclinar da cabeça. Como maestro do corpo, o Coração harmoniza o que há em Cristo e no seu corpo.
Até aqui procurei partilhar o que vi e vejo na figuração do Sagrado Coração de Jesus, tentando explorar aonde nos leva a forte carga simbólica da sua representação. Mas, claro está, não estou já a falar apenas de Jesus. Estou a falar também de nós, padres. Ou melhor, estou já a falar de nós padres, falando ainda de Jesus. E este postulado gostava de sublinhar: a identificação com Cristo é o nosso caminho. Genericamente como baptizados, mas ainda especificamente como padres. Não uma identificação abstracta, mas real. Não apenas uma identificação do quê, mas também do como. Com frequência nos perguntamos, no decurso do exercício do nosso ministério e como presbitério, não apenas o que devemos fazer, mas também como devemos fazer. Por vezes divergimos entre nós na resposta a dar a uma e outra questão. À partida nada haverá de mal nisso. Mas para nos encontrarmos, não somente com as nossas ideias, mas com o próprio Cristo, deveremos sempre voltar à pergunta que para nós deveria ser sempre o critério de acção: como é que Jesus fez? Foi o próprio Jesus que no-lo estabeleceu como critério: «assim como Eu vos fiz, fazei-o vós também» (Jo 13, 15). Tomo a liberdade de sublinhar o «como» desta citação. Não se trata apenas de fazer o que Jesus fez. Mas trata-se ainda de o fazer «como» Jesus fez (do seu jeito, como se diria no Brasil). Não será essa uma inevitável consequência de quem age in persona Christi, de quem é um alter Christus?
Se assim é, se assim for, então tudo quanto se poderá dizer sobre o Coração de Jesus se torna indicação preciosa acerca de «como» ser padre. É, então, que as sete observações que aqui propus poderão ajudar-nos a este encontro/confronto orante com Cristo no seu Sagrado Coração.
Desejo a todos um tempo fecundo de oração. E que cada um possa escutar Jesus dizer-lhe: «Bem-aventurado és tu, puro de coração, porque vês a Deus».