Domingo de Pentecostes (A)
João 20,19-23

  • 1ª leitura: Atos 2,1-11
    «Todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas»
  • Salmo: Sl 103(104)
    R/ Enviai o vosso Espírito, Senhor, e da terra toda a face renovai.
  • 2ª leitura: 1 Cor 12,3-7.12-13
    «A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum»
  • Sequência:
    Espírito de Deus, enviai dos céus um raio de luz!
  • Evangelho: João 20,19-23
    «Como o Pai me enviou, também eu vos envio: e, tendo dito isto, soprou sobre eles»

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A linguagem do Espírito Santo

Queridos irmãs e irmãos,
Há uma sabedoria muito grande nas imagens que a Bíblia utiliza. Uma das imagens iniciais tem a ver com a criação do Homem, do primeiro Adão, do primeiro terrestre. Conta-se que Deus, à maneira de um escultor, construiu um ser de barro e olhou para ele. Era um ser que tinha uma perfeição material mas que lhe faltava vida. Então, Deus insuflou as narinas daquele ser para que ele pudesse se tornar, não apenas matéria, mas vida, um ser vivente sobre este mundo, com tudo o que isso significa.

Sem cair em dicotomias fáceis, nós próprios sentimos na nossa experiência de viventes isso. Sentimos que há uma materialidade na vida, no corpo que somos, no que necessitamos para a vida. Há uma materialidade, nós somos matéria. Mas, ao mesmo tempo, não somos apenas isso, somos um não-sei-quê, um sopro vital. Somos um hálito, somos um mistério, somos um enigma que para lá da matéria é espiritual, é puramente espiritual, é puramente vida. E é esse sopro associado à matéria que faz o milagre espantoso, essa coisa espantosa que é o mistério da vida, que é o ser humano que não deixa nunca de espantar. Como se diz naquele início da Antígona de Sófocles: “Há muitas coisas espantosas no mundo mas nada há mais espantoso do que o ser humano.”

E, de facto, este espanto por descobrirmos em nós, não apenas uma matéria que tem a ver com este mundo, que é terrena, que é terrestre, que é material mas redescobrirmos em nós um sopro espiritual. E a mesma coisa em relação à Igreja. A Igreja o que é? Nós podemos descrevê-la de fora, sociologicamente, e dizer: a Igreja é uma sociedade. Nós aqui somos parte de uma pequena sociedade, de pessoas que se reconhecem, que têm vínculos entre si, que mantêm entre si umas ritualidades, em que há uma hierarquia que acaba por dar uma unidade, uma orientação e uma doutrina a esta própria sociedade. Vista de fora, muitas vezes a Igreja é analisada sobretudo assim, a nível institucional e como uma estrutura de poder na sociedade com uma influência capaz de organizar a moral, as convicções de um determinado grupo humano.

Mas dizer isso da Igreja é dizer que ela é só matéria, que ela é só a terra, que ela é só o barro. Porque a Igreja tem uma dimensão institucional, claramente, porque é feita de mulheres e de homens, mas a Igreja tem prioritariamente uma natureza carismática. Quer dizer, a Igreja não é só esta associação e a visibilidade sociológica que somos capazes de descrever, mas a Igreja é este mistério de relação, de revelação, de caminho, de peregrinação que cada um de nós está a fazer assistido pelo Espírito Santo. E o que é a Igreja ninguém sabe, ninguém sabe. Porque é preciso ouvir o que o Espírito Santo diz, a partir de cada um. A Igreja tem de ser um grande ouvido, uma grande antena daquilo que o Espírito Santo, mesmo a partir do seu próprio seio, está neste momento a dizer. Porquê? Porque em cada um de nós o Espírito Santo suscita, com uma fantasia, com uma imaginação divina, com uma criatividade de amor suscita um impulso, um desejo, um desassossego, uma intranquilidade, uma vontade de fazer coisas, uma vontade de criticar, de transformar, uma vontade de arriscar, de ir mais longe. Isso é o Espírito a impelir-nos, a falar dentro de nós. E em cada um de nós o Espírito fala, o Espírito fala.

Por isso, as imagens eclesiológicas que Paulo utiliza vão todas nessa linha. Ele diz: “A Igreja é um corpo e o corpo tem muitos membros, e todos os membros são necessários. E a mão não pode dizer ao pé: «Não preciso de ti.»” Não, precisamos de todos. E precisamos de todos porquê? Porque somos uma realidade pneumática, somos uma realidade carismática, somos uma realidade que é uma associação de dons. Nós estamos aqui, é uma associação de dons, de carismas em que recebemos uns dos outros, fortalecemo-nos uns aos outros neste caminho que é um caminho que é movido pelo Espírito Santo. Nós precisamos ouvir o Espírito Santo, precisamos de dizer ao Espírito: Vem, vem. Precisamos contar com a Sua ajuda. S. Paulo diz, por exemplo: “Nós não sabemos rezar, é o Espírito Santo que vem em socorro da nossa fragilidade, e Ele grita dentro de nós, com suspiros inefáveis, Ele grita: «Abbáa, ó Pai!» ” Então, quando eu rezo, não sou eu que rezo sozinho, é o Espírito Santo que em mim se une à minha fragilidade para com gemidos inefáveis, chamar Deus “Pai”. E nas outras dimensões da nossa vida nós somos uma consequência do Espírito Santo. Um cristão é uma criação do Espírito Santo.

Por isso, nós não podemos ser como aqueles cristãos de Samaria. Quando Pedro chegou lá perguntou-lhes. “Que batismo recebestes? O batismo só de água ou o do Espírito Santo?” E eles responderam: “Mas nós nem sabemos que havia um Espírito Santo, que há um Espírito Santo.” E a verdade é que muitas vezes nós nem sabemos que há um Espírito Santo. Há um Espírito Santo, e o Espírito Santo é a vida espiritual, é a vida de Cristo, é o Espírito de Cristo em cada um de nós que nos faz ser, que nos faz ser cristãos. Ser cristãos não é uma coisa de assinarmos o nome ou partilharmos apenas um conjunto de convicções externamente, ser cristão é sentir o coração a arder, é sentir dentro de si o templo do Espírito Santo, o lugar do Espírito Santo. É sentir que esse Espírito uno e múltiplo, esse Espírito que converge e nos projeta, esse Espírito que está dentro da Igreja mas que é maior do que a Igreja, esse Espírito que é derramado sobre cada um, não apenas sobre alguns, é derramado sobre cada um. E por isso, cada um de nós é uma expressão do Espírito Santo. Só há Igreja porque há esta descida sobre cada um de nós que nos faz ser, que nos faz ser.

Queridos irmãs e irmãos, ativemos o Espírito Santo em nós. Ele às vezes está presente na nossa vida mas desativado, como se não fosse, como se não estivesse, como se não nos movesse. É importante cada um de nós ouvir o que é que o Espírito Santo lhe diz, porque a cada um de nós Ele diz uma coisa diferente, mas a cada um de nós Ele fala e a cada um de nós Ele reforça, a cada um de nós Ele conforta, a cada um de nós Ele exorta, a cada um de nós Ele pacifica, a cada um de nós Ele reconcilia, porque Ele é o Espírito do amor, é o Espírito do amor de Deus derramado em nossos corações. Sintamos este amor dentro de nós e aqui em comunidade.

É muito belo o primeiro Pentecostes, quando os discípulos estavam reunidos, todos com medo, sem saber. E agora? Jesus morreu, ressuscitou, mas agora é a nossa vez. Como é que vai ser? Nós temos os pés atados pelo medo, nós não sabemos nada, nós não podemos nada, nós temos mais inquietação do que certeza, temos mais dúvida que fé. O que é que vai ser agora? O agora só é possível porque o Espírito Santo desce. E, quando o Espírito Santo desceu sobre cada um deles, eles começaram a falar línguas, línguas. E aqueles que os ouviam que eram de nacionalidades diferentes, de línguas diferentes, ouviam-nos todos falar na sua própria língua. O Espírito Santo faz-nos falar línguas. Nós podemos interpretar assim: o Espírito Santo faz-me falar uma linguagem nova. Não apenas uma língua nova mas uma linguagem nova. E que linguagem é a do Espírito Santo?

É a linguagem dos Seus dons, é a linguagem do amor que é a uma linguagem universal, é a linguagem da alegria que é uma linguagem universal; é a linguagem da fortaleza que é uma linguagem universal; é uma linguagem da ajuda, da compaixão, que é uma linguagem universal; é a linguagem da visita, da dádiva, que é uma linguagem universal; é a linguagem do bom conselho, da exortação, do amparo, do abraço que é uma linguagem universal. A linguagem do Espírito Santo não é como o português ou o francês ou o chinês, não, é uma linguagem universal que todos entendem, e nós temos a capacidade de falar essa língua. Às vezes falamo-la pouco mas temos a capacidade de falar essa língua, que todos entendem porque é a língua do amor, é a língua da dádiva, é a língua de um coração desarmado, é a língua do dom, a língua do dom.

Queridos irmãs e irmãos, que o Espírito Santo venha sobre nós. Vamos pedir do fundo do nosso coração: Vem, vem! Vem à terra árida da minha vida, vem à minha solidão, vem à minha dúvida, vem ao meu silêncio, vem à minha fragilidade, vem. Vem e faz-me Teu instrumento, faz-me Teu canal, faz-me o Teu artesão, o Teu anunciador. Vamos agora estar uns minutos em silêncio e vamos rezar: Vem, vem!

José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org

A última palavra

O dom do Espírito é a última palavra, o coroamento do percurso pascal de Cristo. Após este dom, começa a longa caminhada dos discípulos e da humanidade rumo à perfeição da criação, o “Tempo Comum”. Este é um tempo cheio do Espírito. E, pelo Espírito, o Cristo se torna interior a nós, a tal ponto misturado conosco que dificilmente é identificável: mais íntimo a nós do que a nossa própria intimidade. Temos aqui, a seguir, alguns temas e imagens escriturais que podem nos permitir progredir na inteligência do Espírito.

Primeiro, as línguas

Um fogo que se repartiu em línguas (Atos 2,3): a unidade fez-se diversidade. Isto quer dizer, sem dúvida, que a Unidade divina é rica por demais, para exprimir-se conforme um modelo só. É como o corpo humano: o homem novo é um organismo, é a organização e unificação de uma multiplicidade. Um só é o Espírito, e as línguas todas, uma diversidade. Uma só, a equipe apostólica, e a totalidade das nações. Tem-se observado com frequência que Pentecostes anula a divisão provocada em Babel pela vontade humana do poder (1ª leitura da Vigília). Estamos sempre convidados a passar do regime de Babel ao regime do Espírito pela constituição deste Corpo de que nos fala a segunda leitura do dia. O espetáculo é com certeza menos grandioso do que o do dom da Lei, em Êxodo 19. O texto de Atos fala, no entanto, de «um barulho como se fosse uma forte ventania» e de «línguas como de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles». É que passamos do estado de submissão à Lei, ao estado de liberdade no Espírito. A nova Babel faz-se acompanhar de um novo Sinai. Daí em diante, seremos movidos pelo Amor que é o liame da Trindade. A Lei será então perfeitamente observada e cumprida, mas não mais em nome da Lei, e sim pela força do amor.

O vento violento

No 2º capítulo do Gênesis, vemos o homem feito de argila ser animado pelo próprio sopro de Deus, sopro que significa a respiração, mas também a vida. Sopro de Deus que pode tornar-se vento violento, para secar as águas do dilúvio ou separar em dois o Mar Vermelho; ou então um sopro novo, para uma vida nova (Ezequiel 36,26-27); ou a leve brisa que revela a presença divina para Elias (1 Reis 19,12). Jesus irá dizer que os que nasceram do Espírito são como o vento, que sopra onde quer (João 3,8). No evangelho de hoje, Jesus repete o mesmo gesto com que Deus animou Adão: comunica o seu sopro aos discípulos. Os Atos contentam-se com falar de um «barulho como se fosse uma forte ventania». Todas estas figuras querem significar: vida, mobilidade extrema, liberdade.

A alegria

A “Sequência”, localizada entre a 2ª leitura e o evangelho, apresenta-nos o Espírito como sendo a luz e o operador de tudo o que Deus realiza em nós e por nós. Este texto termina falando na «alegria eterna». No discurso após a Ceia, o Espírito é chamado muitas vezes de defensor, de advogado de defesa que é quem sustenta, encoraja e assiste o seu cliente no decurso de um processo. Tudo isso nos diz que a vinda do Espírito se manifesta por uma inundação de alegria, o que os autores espirituais chamam de «consolação». Muitas vezes falamos de Deus como de um juiz, que retribui a cada um conforme as suas obras, mas esquecemos facilmente o fato de ser este mesmo Deus o nosso defensor.

Marcel Domergue
http://www.ihu.unisinos.br

Espírito de misericórdia, paz, unidade e missão
Romeo Ballan mcci

O Pentecostes é uma festa de maravilhas! «Ouvimo-los proclamar nas nossas línguas as maravilhas de Deus». A surpresa impressiona a gente de Jerusalém e os próprios Apóstolos, naquela manhã de Pentecostes (I leitura). Tantos povos diversos (são nomeados bem 17 povos), com línguas diferentes, falam uma linguagem comum: estão todos sintonizados na proclamação das grandes obras de Deus (v. 8-11). O Espírito Santo, que acaba de descer sobre a comunidade reunida no Cenáculo, é o autor desta maravilha: isto é, a superação da Babel e a passagem a uma vida de comunhão fraterna. De facto, em Babel a confusão das línguas tinha provocado a dispersão dos povos que, com atitude orgulhosa e egoísta, queriam construir para si uma cidade e tornar-se famosos (Gn 11, 1-9); ao passo que em Jerusalém, quando o Espírito desce, povos diferentes conseguem compreender-se e comunicar as grandes obras de Deus. Em Babel falavam todos a mesma língua, mas ninguém conseguia compreender o outro. No Pentecostes falam diversas línguas, e no entanto todos se compreendem como se falassem uma única língua. O Espírito desloca o centro de interesse, no coração das pessoas: já não é mais a procura egoísta de si mesmos ou de tornar-se famosos, mas é o viver em Deus e narrar as suas obras, em benefício de toda a família humana.

A festa hebraica do Pentecostes tornou-se progressivamente um memorial das grandes alianças de Deus com o seu povo (com Noé, Abraão, Moisés, Jeremias, Ezequiel…). Agora, no cume do Pentecostes (v. 1) está o dom do Espírito, que nos foi dado como definitivo princípio de vida nova: é Espírito de unidade, de fé e de amor, na pluralidade de carismas e de culturas. A I e a II leitura conjugam muito bem a unidade e a diversidade, que são dois dons do próprio Espírito: povos diversos que compõem o mapa do mundo entendem uma linguagem comum a todos. S. Paulo atribui claramente ao Espírito a capacidade de tornar a Igreja unida e multíplice na pluralidade de carismas, ministérios e serviços (v. 4-6). O Espírito quer uma Igreja rica de dons diferentes, mas unida; uma Igreja que não anula, mas sabe valorizar as diferenças. Porque são uma riqueza! O Espírito torna possível a coexistência das diferenças: não as anula e não as corrobora, mas purifica-as, enriquece-as, harmoniza-as, conserva-as.

O Espírito Santo é o fruto maior da Páscoa na morte (Jo 19,30) e ressurreição de Jesus (Evangelho), que O sopra sobre os discípulos: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados serão perdoados» (v. 22-23). É o Espírito da misericórdia de Deus para o perdão dos pecados. E portanto é o Espírito da paz: com Deus e com os irmãos. É o Espírito da unidade na pluralidade. É o Espírito da missão universal, melhor, é o protagonista da missão que Jesus confia aos apóstolos e aos seus sucessores (cf. RM cap. III; EN 75s): «Como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós» (v. 21). São palavras que vinculam para sempre a missão dos apóstolos e dos fiéis cristãos com a vida da Trindade, porque o Filho é o primeiro missionário enviado pelo Pai a salvar o mundo, pelo amor (Jo 15,9). (Sobre estes aspectos, podem ver-se também os comentários dos domingos II e VI de Páscoa).

O sopro de Jesus sobre os Apóstolos na tarde da Páscoa (v. 22) é já, para João, o Pentecostes, e evoca a nova criação que é obra do Espírito, como explica um conhecido exegeta: «O gesto da insuflação simboliza o surgimento de uma humanidade nova; todavia os apóstolos, para os quais o gesto é dirigido, são considerados por Jesus não como ponto de partida desta nova criação, mas sim como cooperadores de Cristo e do Espírito Santo na realização deste plano grandioso: é normalmente através da sua mediação que os homens são arrancados do domínio do pecado e recebem a vida nova» (A. Feuillet). De maneira autêntica, ainda que por caminhos a nós invisíveis, o Espírito dispõe o coração das pessoas, mesmo não cristãs, para o necessário encontro salvífico com Cristo, como ensina o Concílio.

Estreitamente unida à obra criativa e renovadora do Espírito é também a Sua acção capaz de corrigir e curar a alma e o corpo das pessoas. Trata-se de uma energia real e eficaz, face à qual existe uma particular sensibilidade no mundo missionário, embora nem sempre fácil de discernir. A acção curativa atinge por vezes também o corpo, mas muito mais frequentemente toca o espírito humano, curando as suas feridas interiores e derramando o bálsamo da reconciliação e da paz. Num campo tão sensível, a acção missionária da Igreja deveria mover-se com mais ímpeto e criatividade. Deixando de lado medos excessivos, confiando mais no Espírito.