5° Domingo de Páscoa (ciclo A)
João 14,1-12


Gv 14

Referências bíblicas

  • 1ª leitura: «Eles escolheram sete homens cheios do Espírito Santo» (Atos 6,1-7)
  • Salmo: Sl. 32(33) R/ Sobre nós venha, Senhor, a vossa graça, da mesma forma que em vós nós esperamos!
  • 2ª leitura: «Vós sois a raça escolhida, o sacerdócio do Reino» (1 Pedro 2,4-9)
  • Evangelho: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» (João 14,1-12)

“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”
Marcel Domergue

 Após os três domingos que nos mostraram em grandes traços retratos do Ressuscitado (2º, 3º e 4º), temos agora três domingos para as despedidas (5º, 6º e Ascenção), referindo-se todos à hora em que Jesus deixou este mundo e foi para o seu Pai. Cristo dá então aos seus discípulos as suas últimas recomendações.

Rumo à fonte

«Ninguém vai ao Pai senão por mim.» Mas por que é preciso ir para o Pai? Há muita gente que não sente esta necessidade. Muitos se contentam com viver o dia a dia, sem se preocuparem com esta Presença que nos conclama a nos movermos e a nos abrirmos para o Outro, para outro lugar.

Simplificando, podemos dizer que, sem escolher dirigirmo-nos a este encontro, estaríamos jogados no mundo sem nenhum referencial verdadeiro, e contando somente com a certeza da morte que virá bloquear toda saída. «Aqui estamos nós de volta em círculo para lugar nenhum.»

Ir para o Pai é buscar reunir-se à fonte inesgotável de toda a vida, de tudo o que vive. Todos os textos bíblicos que nos falam da sede, do desejo das águas vivas, do Salmo 42 ao encontro de Jesus com a Samaritana, em João 4, têm por objeto este desejo de viver, de se reunir ao Ser, lugar do perpétuo nascimento e renascimento.

Alguns chamam isto de buscar a felicidade, mas vê-se imediatamente a ambiguidade desta forma do desejo fundamental. De fato, ao que parece, a felicidade pode consistir no acesso à posse disto ou daquilo ou de tal ou qual situação.

Em «coisas», portanto. Ora a nossa verdade não pode ser encontrada em «alguma coisa»; necessita de alguém. Não de qualquer um, mas d’Este que funda todos os outros e que, através deles, vem nos encontrar. É preciso, portanto, «passar por», por todos os outros, próximos ou distantes, para que se possa ir rumo ao Todo-Outro que nos funda.

Jesus, aliança entre o Pai e o mundo

Jesus, o Cristo, não foi nomeado nem uma vez no parágrafo anterior. Esteve subjacente, no entanto, em cada linha. Quem nos prepara um lugar, uma «morada», lá onde está a fonte de onde jorra a vida? Jesus recapitula todos os «outros» pelos quais temos de passar, pois eles são a sua presença sensível.

Pensemos no «a mim o fizestes» de Mateus 25. Todos, de fato, viemos ao mundo nele, por ele e para ele (João 1,1-5 e Colossenses 1,15-17). Ele é, portanto, o único mediador entre nós e o invisível, porque recapitula tudo o que nos fala em nome de Deus, tudo em que Deus investiu-se a Si mesmo, inclusive o mundo mineral, o vegetal e o animal (ver o Salmo 19).

Tudo pode tornar-se caminho para Deus, porque tudo está n’Ele. A palavra ‘mediador’ deve ser bem compreendida. Jesus não é um intermediário, no sentido de alguém neutro entre as duas partes que cuidam de se acordar: nele estão as duas partes. Ele é a aliança entre elas. É preciso citar aqui mais uma vez Santo Irineu (Contra as Heresias 4,6): «O que era invisível do Filho era o Pai, e o visível do Pai era o Filho

Conforme Jesus havia dito: «Quem me viu, viu o Pai». Quando pronunciou estas palavras, estava no limiar da sua Paixão, da sua passagem deste mundo para o seu Pai. Ele, em si mesmo, é esta passagem que se realiza sem cessar. E nós somos assumidos neste movimento, que nos transporta de uma só vez para Deus e para nós próprios: para o lugar de repouso do nosso desejo.

O caminho, a verdade, a vida

Notemos que Jesus não diz que está a caminho, no ato de percorrê-lo. Ele, em si mesmo, é o caminho. Não está a caminho da verdade: ele é a verdade. E a vida está aí, nele. Estes três termos são no fundo equivalentes. A verdade da nossa vida é estar a caminho, em Cristo.

Para onde? Para a nossa entrada em Deus, a título de filhos; o caminho percorrido no Filho e com o Filho faz de nós filhos de Deus, na hora da finalização completa da nossa criação. Daqui até lá, estamos na mesma situação de São Paulo: «Não que eu já o tenha alcançado ou que já seja perfeito, mas prossigo para ver se o alcanço, pois que também já fui alcançado por Cristo Jesus» (Filipenses 3,12).

Sabemos que a imagem do caminho a ser percorrido marca todo o relato bíblico, tendo como centro o Êxodo de Israel. Mas este percurso começa bem mais cedo, com Noé ou Abraão. Da nossa parte, isto supõe uma abertura constante para o novo, para a mudança. O que é difícil, porque não se trata de mudar por mudar, mas de um crescimento na qualidade da nossa relação com os outros e, portanto, da nossa relação com Deus.

Conforme escreve Paulo aos Filipenses (2,5), temos de fazer nossas as atitudes que foram as do Cristo. Quais atitudes? Os Evangelhos nos mostram o amor de Cristo para com as pessoas com quem se encontrou, culminando este amor ao manifestar-se aos olhos de todos na hora pascal. Olhemos para Jesus: quem o vê, vê o Pai.

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“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”
José Tolentino Mendonça

(…) Hoje o Evangelho de S. João nos oferece como proposta: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.”

Às vezes nós vivemos situações da nossa vida completamente bloqueados, em que perdemos a esperança, em que achamos que já não há remédio, não há solução, que já não vamos ou já não estamos a tempo. E a experiência do caminho é a experiência de um desbloqueador interno. É a grande surpresa que o peregrino faz na sua viagem – é, a dada altura, ele compreender que há um caminho, que há um caminho. E esta palavra, só por si, é uma boa-nova, é uma palavra transformadora. É preciso dizer aos sem esperança que há um caminho, é preciso dizer àqueles que acham que chegaram ao fim, que não há nada a fazer se não o desalento das mãos caídas que há um caminho. E a experiência da peregrinação, faça-se ela onde fizer, nos caminhos de Fátima, nos caminhos de Santiago mas sobretudo nos caminhos quotidianos da nossa vida é esta certeza de que há um caminho e de que esse caminho nos fala. Esse caminho diz coisas ao nosso coração na medida em que damos tempo, na medida em que nos entregamos, na medida em que nos expomos radicalmente, em que nos entregamos. Porque a experiência do peregrino é entregar, é confiar. Ele não pode ficar parado num ponto da estrada, não, ele tem de confiar, tem de se atirar mais para longe e nas coisas da nossa vida também é assim. Não podemos ficar parados num tempo a marcar passo, ou numa situação, temos de caminhar, temos de caminhar. E é na medida em que fazemos esse caminho que descobrimos que o caminho se torna significativo, que o caminho fala e percebemos isto que Jesus diz: “Eu sou o caminho, Eu sou o caminho.”

A experiência do peregrino não é só chegar a um ponto, porque um peregrino não chega a um ponto visível, chega sempre a um ponto invisível, chega sempre a um centro espiritual, a um centro interior. E ele percebe que a experiência do próprio caminho é a experiência da revelação do próprio Jesus. Uma das coisas mais extraordinárias da homilia do Papa Francisco (em Fatima) foi quando ele se dirigiu aos doentes, que no fundo somos todos nós – podemos não ser doentes físicos, mas dentro de nós estamos cheios de amolgadelas e disto e daquilo e coisas por curar e tratar. E ele disse: “Pensem nisto: quando subirem a uma cruz, Eu já lá estive primeiro. Quando passarem por um sofrimento pensem: Eu já estive aí. Quando passarem por um inferno, lembrem-se que Eu primeiro desci a ele e desci bem fundo para ser solidário convosco, para antecipar a vossa solidão, a vossa vinda a estes lugares.” Por isso, cada um de nós tem de se sentir acompanhado, na experiência de um Jesus completamente companheiro da nossa vida. E fazer do sofrimento, sofrimento físico e do sofrimento espiritual, um património, fazer desse sofrimento não apenas aquela fragilidade, aquele grito de socorro que precisa de ser ajudado (e que precisa mesmo) mas, ao mesmo tempo, perceber que esse é um património humano, que esse é um lugar, que esse é uma possibilidade ainda de oferecer, de encontrar outro sentido, de encontrar Jesus crucificado. (…)

Por isso, nós compreendemos tão bem aquilo que diz esta Epístola do apóstolo Pedro. É uma carta interessante do final do primeiro século, é atribuída ao apóstolo S. Pedro mas, porventura, não terá sido ele mas um autor que se reportou à autoridade de Pedro. Mas, o que importa é isto: esta carta é dirigida aos cristãos que estão na diáspora. Reparem, nós estamos a falar de meia dúzia de mulheres e de homens ali na Ásia Menor, que não têm importância nenhuma e começam a ser perseguidos pela sua fé. O autor cristão escreve esta carta que é uma carta de conforto, mas também é uma carta para que os cristãos compreendam. E não é por acaso que nós lemos no tempo pascal esta Primeira Carta de Pedro. Porquê? Porque o tempo pascal é um tempo de autocompreensão para a Igreja, a partir daqui nós temos de nos compreender. Primeiro queremos compreender quem é este Jesus, morto e ressuscitado, quem é Ele. Mas depois também temos de compreender quem é que somos nós, quem somos nós este povo de batizados. Quem sou eu, homem que acredito em Jesus? Qual é o meu lugar? O que é que eu tenho a fazer? São as perguntas da Igreja neste tempo pascal. E é interessante a resposta que dá o autor da Primeira de Pedro, ele diz: “Substituí os sacrifícios materiais, pelos sacrifícios éticos, espirituais.”

O Cristianismo vem declarar o fim dos sacrifícios. Nós não somos uma religião ritualista, para nós o importante não é o rito, não é fazer isto, não é fazer aquilo. Não é matar um carneiro, não é ter de acender mesmo uma luz. Porque o Cristianismo vem declarar o fim do Templo, o fim do sacrifício, e vem falar da transformação dessa lógica tipicamente religiosa, a exterioridade, a ritualidade como fundamento. O Cristianismo critica e afasta-se disso para dizer o quê? Que agora o sacrifício é espiritual, o Templo é existencial e cada um de nós é uma pedra viva a construir um Templo.

Ora, isto parece que diminui a religião e ao mesmo tempo é o contrário, isto amplia a dimensão religiosa. Porque a dimensão religiosa agora hipoteca a minha vida. Eu sou, como cristão, uma mulher e um homem hipotecado ao Evangelho. Já não me pertenço a mim mesmo. S. Paulo há de repetir isto várias vezes: “Cristo comprou-te, tu és comprado, tu és pertença de Cristo.” E Paulo diversas vezes nas suas cartas se apresentava como escravo de Cristo. Porquê? Porque a sua liberdade e a sua vida ele entendia como liberdade e vida hipotecadas ao projeto de Cristo. Por isso, cada um de nós também se sinta uma pedra viva deste Templo em construção. Palavras tão extraordinárias aquelas! Imaginem este grupo de perseguidos, de descamisados, de gente que sofria nas cidades da Ásia Menor e a Carta de Pedro vem em sua consolação e diz estas palavras tão extraordinárias: “Vós sois geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus para anunciar os seus louvores.” E é isso que nos é dito hoje, nós que andamos às vezes tão frágeis, tão limitados, tão coartados, tão suspensos, tão indecisos, tão dilemáticos. “Vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido por Deus para anunciar os seus louvores.”

… Cada um de nós se sinta verdadeiramente precioso, cada um de nós sinta que Deus não nos descarta nem nos descartará nunca. Cada um de nós se sinta abraçado e amado pelo próprio Deus, por este Deus que é paternal e maternal, por este Deus que nos dá Jesus que visitou cada lugar, cada situação antes de nós para poder dizer ao nosso coração: “Tem força, acredita porque Eu já estive aí, Eu já passei por aí.” (…)

http://www.capeladorato.org

Do medo à coragem de anunciar Cristo ressuscitado
Romeo Ballan mccj

As palavras do Evangelho têm o sabor e a emoção de um testamento, que Jesus confia aos discípulos depois da última ceia, nas horas prolongadas do adeus (Jo 13,31-17,26). São a herança que Jesus deixa aos seus discípulos como ensinamento precioso, poucas horas antes de entrar no seu caminho (v. 4.6): o caminho da cruz-morte-ressurreição. Testamento e herança que, comummente na vida de todos, tornam-se efectivos só depois da morte do testador. No caso de Jesus é diferente: não é o testamento de um morto, mas de um vivente. Com razão, portanto, a liturgia nos revela este testamento nos domingos depois da Páscoa de Jesus, fazendo assim com que o saboreemos como palavra viva do Ressuscitado. Em primeiro lugar, é uma palavra de conforto e de esperança para a comunidade dos crentes, para que não se deixem perturbar mas sejam fortes na fé (v. 1) e dispostos a seguir os passos do Mestre no mesmo caminho: o caminho em direcção à Páscoa, em direcção à casa do Pai. A casa do Pai, porém, não é imediatamente o paraíso, mas é antes de mais a comunidade dos crentes: onde há «muitas moradas»; onde Jesus nos precedeu e nos preparou um lugar (v. 2-3); onde os lugares, as funções e os serviços a desenvolver são muitos; onde o melhor lugar é aquele que permite servir mais e melhor os outros.

Ajudar-se uns aos outros como irmãos, lavar os pés uns aos outros (Jo 13,14), sem títulos de classe, honra, prestígio… Era esse o ideal e o firme testemunho da comunidade primitiva, na qual havia uma diferença, a única, reconhecida por todos desde o início: a diferença com base no serviço (ou ministério) requerido e prestado à comunidade. É um apaixonante tema missionário. A mensagem do Evangelho deste domingo e as experiências da primeira comunidade cristã (I e II leituras) contêm luzes preciosas para a missão da Igreja. O livro dos Actos (I leitura) apresenta um quadro de dificuldades missionárias concretas e frequentes: dizem respeito ao crescimento numérico, à pluralidade cultural da comunidade (v. 1: conflito entre helenistas e hebreus, com contornos sociais e económicos), a organização da assistência aos necessitados… Para a solução são empregues critérios que são fundamentais para o desenvolvimento da missão: ampla consultação no seio do grupo (v. 2), procura de pessoas cheias do Espírito e de sabedoria (v. 3.5), definição de ministérios (v. 3.4.6) dos diáconos (serviço das mesas) e dos Doze Apóstolos (oração e serviço da Palavra).

Hoje diríamos que a solução foi encontrada graças a um exercício sinodal e plural da autoridade: na colegialidade e na ministerialidade, que permitiram actuar com pluralismo cultural e com descentralização. A Igreja de Jerusalém saiu daquele incidente mais amadurecida, enriquecida de novas forças para o apostolado, mais aberta às exigências culturais dos vários grupos. Foi uma solução exemplar, que teve imediatos efeitos de irradiação missionária: «e a Palavra de Deus ia-se divulgando», com crescentes adesões à nova fé (v. 7).

Soluções daquela natureza destinam-se a um povo que São Pedro (II leitura) chama real, santo, eleito de Deus (v. 9), chamado a aproximar-se do «Senhor, pedra vida», e portanto, um povo formado por «pedras vivas» (v. 4.5). Voltamos aqui ao tema das funções ou serviços na casa de Deus: não é importante que se trate de pedras de fachada ou de pedras escondidas nos alicerces. São Daniel Comboni recomendava aos seus missionários para a África: «O missionário trabalha numa obra de altíssimo mérito, sim, mas muito árdua e laboriosa, para ser uma pedra escondida debaixo da terra que talvez nunca apareça à luz e que entra a fazer parte do cimento de um novo e colossal edifício, que só os vindouros verão despontar do solo» (Regras de 1871, Escritos, n. 2701). O que importa é ser parte da comunidade dos discípulos e ser activos no serviço à missão de Cristo Salvador, acolhedores e solidários para com as pessoas distantes, estrangeiras, sós…

Jesus não veio evitar-nos o sofrimento, mas dar-nos força para enfrentar os medos profundos da doença, do futuro, da solidão, da morte… «Deus não veio explicar o sofrimento; veio enchê-lo da sua presença» (Paul Claudel). No diálogo com os discípulos (Evangelho), Jesus convida-os a não se deixarem perturbar pelo medo (v. 1). Exorta-os a acreditar nele, que é «o caminho, a verdade e a vida» (v. 6). Fala da sua unidade com o Pai, a ponto de dizer que quem o vê, vê o Pai (v. 9). Jesus é o primeiro missionário do Pai: revelou-o e anunciou-o com as palavras e as obras (v. 11). Surge aqui a pergunta fundamental para a missão de todos os tempos: hoje, a quem cabe revelar o Pai e revelar Jesus, que o Pai enviou como Salvador do mundo? O desafio permanente do cristão é poder dizer: quem vê a minha vida e ouve as minhas palavras, vê o Pai, vê Cristo! É aqui que se encontram as raízes e extensão da missionaridade de cada baptizado.