4° Domingo de Páscoa (A)
João 10,1-10
Domingo do Bom Pastor


good-shepherd

Referências bíblicas:

  • 1ª leitura: Atos 2,14.36-41:
    No dia de Pentecostes, Pedro, de pé, com os onze Apóstolos, ergueu a voz e falou ao povo: «Saiba com absoluta certeza toda a casa de Israel que Deus fez Senhor e Messias esse Jesus que vós crucificastes».
  • Salmo 22:
    O Senhor é meu pastor: nada me faltará.
  • 2ª leitura: 1 Pedro 2,20-25:
    Vós éreis como ovelhas desgarradas,
    mas agora voltastes para o pastor e guarda das vossas almas.
  • Evangelho: João 10,1-10:
    Em verdade, em verdade vos digo: Eu sou a porta das ovelhas… Eu vim para que as minhas ovelhas tenham vida e a tenham em abundância.

EU SOU A PORTA
Marcel Domergue

Passar pela porta

Que porta é essa, pela qual o «bom pastor» entra no redil das ovelhas? Impossível não pensar em Mateus 7,13-14, que nos fala da porta estreita que conduz à vida. Passagem obrigatória a ultrapassagem das portas da morte. O que aconteceu? Bom pastor, o Cristo veio até o cerco fechado em que éramos prisioneiros. Atravessou a porta estreita para vir compartilhar as nossas sujeições. Em seguida, ele saiu. Foi o primeiro a sair, abrindo-nos a porta da vida. E somos chamados a segui-lo, em direção às verdes pastagens da liberdade. Não há qualquer outra porta além da porta pascal. As outras saídas todas são ilusórias e os que nos convidam a pular o muro a fim de evitá-la são «ladrões e assaltantes» que buscam tomar para si as nossas vidas, fazendo de nós os seus discípulos e clientes. Depois que saímos do cerco da morte e da servidão, somos convidados a voltar aí de novo. Não para reencontrar as nossas antigas escravidões, mas para fazer nosso o caminho do Cristo que, de condição divina, escolheu vir fazer-se nosso escravo, para nos fazer sair das nossas sujeições (ver Filipenses 2,5-11). Este voltar-se para as necessidades dos nossos irmãos é o ato de liberdade o mais perfeito que existe. É nada mais que o amor em ato. O amor é de fato o cume da liberdade, uma vez que consiste em dispor de si mesmo para se tornar totalmente dependente da vida de um outro.

“Eu sou a porta das ovelhas”

Depois de ter-nos sugerido ser o pastor que atravessou a porta da morte e que nos faz atravessá-la, Jesus precisa que é ele mesmo a porta. O que isto quer dizer? Não só que é ele quem nos faz passar (versículos 3 e 4), mas que é por ele e nele que passamos à vida. Assim se faz a diferença ou mesmo se corrige uma imagem de chefe autoritário que governa um «rebanho» e o domina. Um pastor, por melhor que seja, vive da carne e da lã das suas ovelhas. Pois, agora temos um pastor paradoxal: que dá a sua vida para as suas ovelhas e que faz de si mesmo o seu alimento (versículos 10 e 11, fora da leitura). Mas o percurso não para por aí: alimentadas com a carne do pastor, portadoras da sua vida e detentoras do seu Espírito, estas ovelhas irão sem dúvida reproduzir o seu comportamento. Todas as nossas ações são normalmente obras de aliança; são o fruto da nossa unidade com o Cristo: «Todas as nossas ações tu as realizas para nós» (Isaías 26,12). «As nossas ações»: elas são muito nossas e, no entanto, são ao mesmo tempo ações divinas. Quando Pedro escrever que nos tornaremos «participantes da natureza divina» (2 Pedro 1,4), estará confirmando esta unidade. Com certeza, isto é algo a se escolher sempre e a sempre se recomeçar: temos de passar, sem cessar, por esta porta da vida que é o Cristo.

“Ele chama cada um pelo seu nome”

Para significar o que se passa em nossa relação com Deus e com a vida, através do Cristo, a imagem do rebanho, assim como a do pastor, deve ser corrigida. «Rebanho» faz pensar numa coletividade anônima, obediente e uniforme. Por isso o evangelho se apressa em precisar que o pastor de que se trata conhece cada ovelha e que, reciprocamente, as suas ovelhas o conhecem (versículo 3). Os versículos 14 e 15 (fora da leitura) explicitam que este conhecimento mútuo está calcado no conhecimento que existe entre o Pai e o Filho. Estamos aqui, assim, em participação com a Unidade do Deus Pai, Filho e Espírito. Lembremos que, na Bíblia, o verbo «conhecer» diz muito mais do que em nossas línguas usuais; é usado até mesmo para nomear o ato conjugal. Quando dizemos «Igreja», devemos nos guardar de pensar em «massa», em «multidão» e até mesmo, no limite, em «povo», quando esta palavra é tomada no sentido de coletividade indistinta. «Igreja» significa antes de tudo convocação, chamado dirigido a cada um «pelo seu nome». As ovelhas, à primeira vista, reúnem-se todas. Mas não é assim com os crentes. Daí a necessidade de uma grande tolerância quanto aos modos de crer e de se comportar. A nossa unidade, para ser verdadeira, deve ser conjugação de diversidades. Isto já vale para o casal humano, mas não é assim tão fácil. Por isso Paulo sentiu necessidade de explicá-lo longamente em todo o capítulo 12 da primeira carta aos Coríntios. Uma última observação: o que nos faz existir é justamente que o Cristo nos chama cada um pelo seu nome.

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JESUS, O PASTOR BELO E BOM
Enzo Bianchi

No tempo de Jesus, os pastores estavam presentes por toda a parte na Palestina e eram encontrados nos campos e nas cidades, nas planícies e nas montanhas. A figura do pastor era conhecida, e se conheciam os lugares nos quais, de dia ou de noite, ele estava com as ovelhas, que forneciam leite, carne e queijo.

Na Bíblia, a figura do pastor está muito presente não só como protagonista da narrativa, mas também como parábola e tipologia. Como Deus, o Senhor, é chamado e reconhecido como “Pastor de Israel” (Sl 80, 2), o seu povo é chamado de “seu rebanho” (cf. Sl 78, 52; 95, 7; 100, 3), ovelhas que são a sua propriedade. As diversas situações em que podem vir a ser encontrados o pastor e o rebanho, portanto, servem para descrever condições históricas concretas, como leitura das relações entre Deus e o seu povo.

Deus é o Pastor, mas, para que essa sua qualidade seja reconhecida pelos crentes, ele envia ao seu rebanho pastores, escolhidos “para que a comunidade do Senhor não seja um rebanho sem pastor” (Nm 27, 17). Mas esses pastores, às vezes, tornam-se infiéis à sua missão, tornam-se “maus pastores”; ao mesmo tempo, outros que não foram enviados por Deus “fazem-se pastores”, assumindo uma função de serviço voltada, na realidade, à busca dos próprios fins. Os profetas repetidamente denunciaram essas situações, nas quais o povo do Senhor geme e sofre, mas também anunciaram a vinda de Deus e do seu Messias como pastor das suas ovelhas (cf. Jr 23, 1-6; 31, 10; Ez 34, 1-31).

No quarto Evangelho, enquanto Jesus se encontra em Jerusalém para celebrar a festa da Dedicação do templo, é descrito um debate entre o próprio Jesus e alguns fariseus, depois da cura por parte dele no dia de sábado de um cego de nascença (cf. Jo 9). Graças à fé em Jesus, o cego passa a ver, enquanto os guias religiosos parecem cegos, incapazes de reconhecer nele a missão de Deus. Jesus, portanto, afirma ter vindo para abrir um processo que manifestará quem é cego e quem, ao invés disso, vê; quem permanece na incredulidade e quem, ao invés disso, chega à luz (cf. Jo 9, 40-41).

Mas isso constitui um êxodo, uma saída do sistema religioso judaico rumo à comunidade que adere a Jesus. A pretensão de Jesus é gritante e escandalosa, como nos é apresentada pelas expressões que a comunidade joanina forjou a partir das suas palavras e ações, contempladas, meditadas e interpretadas.

O discurso de Jesus é organizado em torno da formulação de uma paroimía (Jo 10, 6), ou seja, de um enigma construído por imagens (cf. Jo 10, 1-6), ao qual se segue a explicação que o resolve em mistério de fé (cf. Jo 10, 7-18) e, por fim, uma conclusão (cf. Jo 10, 19-21).

Eis, portanto, o enigma: “Em verdade, em verdade vos digo, quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante”. As solenes palavras de Jesus põem em relevo uma oposição: há aqueles que entram no redil das ovelhas não através da porta, que é vigiada, mas pulando a cerca. Estes são os ladrões e assaltantes: as ovelhas não pertencem a eles, mas eles querem se apossar delas. São ladrões porque roubam e são assaltantes que podem entrar no redil apenas com o engano; na realidade, são lobos (cf. At 20, 28-30), falsos pastores que não se importam com as necessidades das ovelhas, mas pensam apenas em si mesmos.

Ao contrário, “quem entra pela porta é o pastor das ovelhas”, e o guardião posto na entrada do redil o reconhece e abre para ele; então, “as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora”.

Jesus é esse pastor, e o Pai é o guardião que abre para ele. De fato, é o Pai que lhe deu as ovelhas (cf. Jo 17, 6-8), que o enviou (cf. Jo 8, 16.42), que colocou todas elas nas suas mãos (cf. Jo 3, 35; 5, 22). Portanto, o Pai reconhece Jesus como pastor único do rebanho, e assim também fazem as ovelhas: elas reconhecem a sua voz, escutam-na e exultam, sentindo-se por ele chamadas, cada uma, com o próprio nome.

Jesus tem uma tarefa específica: chamando as ovelhas pelo nome, faz com que elas “saiam”, faz com que elas façam um êxodo do redil às pastagem abertas, à liberdade. Essa ação é mais do que o “fazer sair” de Moisés do Egito rumo à terra prometida, porque é um “fazer sair” da escravidão à liberdade, da morte à vida para sempre.

Nessas poucas palavras, é delineado todo o caminho do discípulo, ovelha do rebanho de Jesus: ele deve escutar a voz do pastor, deve reconhecê-la como palavra para si, deve, portanto, conhecer o pastor e, assim, segui-lo rumo às pastagens da liberdade, em vista a uma “vida em abundância”.

O pastor, depois, também se define como “porta”. O enigma, assim, é explicado mediante duas afirmações: “Eu sou a porta” (Jo 10, 7.9) e “Eu sou o bom pastor” (Jo 10, 11.14). Atenção: Jesus não diz que é a porta do redil, mas a porta das ovelhas! Ele não é uma porta que dá acesso a um recinto, a uma instituição, mas uma porta a serviço das ovelhas.

No Antigo Testamento, a imagem da porta é reveladora de uma passagem para o céu (cf. Gn 28, 17), de uma passagem para ter acesso à presença do Senhor, à sua Shekinah, ao templo (cf. Is 60, 11; Sl 118, 19-20); mas aqui é Jesus que se torna porta pequena e estreita (cf. Mt 7, 13-14; Lc 13, 24), única via de entrada e de saída a Deus, o Pai.

Tendo vindo a plenitude dos tempos, quando “se adora a Deus em Espírito e Verdade” (Jo 4, 23-24), Jesus é agora o único acesso a Deus, a única via para fazer parte do rebanho do Senhor: é uma porta aberta a um espaço sem limites.

Nos últimos discursos aos seus discípulos, ele dirá: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6), palavras que explicitam a afirmação: “Eu sou a porta”, que expressam e são o caminho que conduz ao conhecimento de Deus e, portanto, à vida para sempre (cf. Jo 17, 3).

Essas palavras de Jesus podem nos surpreender e até mesmo desestabilizar: como é possível que um homem tenha se vangloriado de tais pretensões? No entanto, João põe na boca de Jesus tais revelações porque assim quer a fé naquele que é o Filho de Deus, o Messias que veio ao mundo.

Eis, então, o pedido de discernimento sobre aqueles que vieram antes de Jesus, com a pretensão de serem pastores enviados por Deus: muitos já têm vindo, mas eram ladrões, assaltantes, estranhos “que vieram para roubar e sacrificar” (Jo 10, 10) como diz literalmente o texto (verbo thýo). Jesus certamente não deslegitima os “pastores” enviados por Deus – de Abraão até os profetas –, mas os falsos Messias, como Inácio de Antioquia já tinha bem entendido: “Cristo é a porta do Pai, através da qual entraram Abraão, Isaac, Jacó, os profetas, os apóstolos e a Igreja” (Ai filadelfesi, 9).

Em todos os tempos, aparecem no mundo e também na Igreja supostos “ungidos”, falsos enviados que Deus não mandou, homens e mulheres que imputam ao Senhor as suas elucubrações, mas são sempre reconhecíveis por aqueles que são crentes atentos em Jesus: não estão no meio do rebanho, mas acima; não conhecem as ovelhas pelo nome, mas só querem comandá-las; não protegem a ovelha fraca, mas a abandonam; não vão em busca da ovelha perdida, mas preferem estar com as outras dentro do redil.

Portanto, Jesus é a porta a se atravessar em liberdade para ir e vir, para ir rumo às pastagens do céu e voltar para o abrigo quando sobrevier a ameaça. É uma porta de salvação, que dá uma salvação não transitória, como a que, às vezes, os seres humanos se dão na história. Consequentemente, é também o pastor que deseja para as ovelhas uma coisa só: “a vida em abundância”. Por isso, faz com que elas saiam em liberdade, para caminhos de êxodo nos quais se abrem horizontes novos e se conhecem novas pastagens. Eis a liberdade dos filhos de Deus, na qual há também proteção, porque – diz Jesus – “ninguém pode roubar as minhas ovelhas da minha mão” (Jo 10, 28).

A outra explicação do enigma consiste na autorrevelação de Jesus como “pastor belo e bom”: “Eu sou o pastor belo e bom (kalós), que dá a própria vida por suas ovelhas” (Jo 10, 11). A manifestação da vinda “pastoral” de Jesus não consiste nas ideias, na doutrina, apenas no ensinamento, mas em dar e gastar a vida pelas ovelhas.

Se Deus era cantado no Salmo como Pastor do crente ao qual não falta nada (cf. Sl 23, 1), Jesus diz de si que ele mesmo dá a sua vida pelas ovelhas. E se nos Evangelhos sinóticos o pastor da parábola estava cheio de amor, até ir procurar a ovelha perdida para trazê-la novamente para casa (cf. Mt 18, 12-14; Lc 15, 4-7), aqui o pastor dá a sua vida tanto pela ovelha perdida, quanto por aquela que permanece no redil.

Assim, é identificada a relação entre o pastor e as ovelhas: um conhecimento recíproco que se torna amor, um conhecimento penetrante através do qual o pastor conhece as ovelhas em profundidade, na qual elas mesmas não chegam a se conhecer; e as ovelhas chegam a reconhecer o pastor como aquele que cuida delas porque as ama.

Experiência indizível, porém autêntica, na qual se escuta a voz do pastor, chega-se a discernir a sua presença fugaz, mas, sobretudo, sentimo-nos amados, compreendidos, perdoados por um amor que também é sempre misericórdia.

Mas, ao lado do bom pastor, aparece também “o pastor assalariado” (Jo 10, 12), que desempenha a sua tarefa e realiza o seu trabalho apenas pelo salário. Muitos eram os pastores desse tipo no tempo de Jesus, e muitos ainda o são hoje: não são maus, não fazem mal, não roubam o povo de Deus nem o maltratam, mas são meros funcionários! Se a Igreja fosse uma máquina, poderia até seguir em frente assim; mas a Igreja é o rebanho do Senhor, é uma realidade viva, um corpo no qual, se não existe o amor gratuito, ocorre uma triste desfiguração.

O pastor assalariado cumpre o seu ofício por aquilo que foi pago; por isso, se vê o lobo chegar, pensa em salvar a si mesmo, não as ovelhas (cf. Jo 10, 12-13). Mas Jesus não! A sua missão de pastor é motivada apenas pelo amor, e o Pai o ama justamente por isso: porque ele sabe dar a vida pelas ovelhas, para depois recebê-la novamente dele (cf. Jo 10, 14-15.17-18). A sua missão de dar e gastar a vida é dirigida a todos os seres humanos, até mesmo àqueles que pertencem a outros redis, não só ao de Israel.

Virá o dia em que até mesmo essas ovelhas provenientes dos gentios poderão escutar a voz de Cristo e, assim, tornar-se ovelhas do rebanho que é seu (cf. Jo 10, 16): dele, o único pastor da humanidade, de toda a criação.

Tradução de Moisés Sbardelotto
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«O SENHOR É O MEU PASTOR»
José Tolentino

Queridos Irmãs e Irmãos.
Celebramos hoje a festa do Bom Pastor. Quando nós pensamos nas primeiras representações da figura de Jesus, esta imagem do Bom Pastor é certamente aquela mais utilizada, pelos cristãos, desde o início.

Quando entramos nas catacumbas, nesses lugares onde os cristãos se reuniam às ocultas e ao mesmo tempo preservavam a memórias dos seus mortos, nós encontramos, em muitas delas, quer em escultura, quer gravada na própria pedra, a imagem de Jesus, o Bom Pastor.

Perguntamos, porque é que esta imagem, de certa forma, se sobrepõe às outras? É porque esta imagem é, de facto, muito completa.

Diz muito do modo como Jesus é, na nossa vida. Porque Jesus é o Pastor, no sentido de que Ele vive connosco, vive para nós, vive nesse cuidado, nesse acompanhamento. Nós somos o objeto do seu cuidado, do seu amor, da sua disponibilidade. E, como tantas vezes acontece, o Pastor conhece cada ovelha pelo seu nome, não as confunde, sabe a história de cada uma delas. Percebe como cada uma está, em cada dia, em cada momento.

Depois, há aquela maravilhosa parábola que o próprio Jesus contou de si mesmo: o Bom Pastor é aquele que é capaz de deixar as 99 ovelhas no redil e partir pelos montes à procura da ovelha perdida. Quando a encontra, coloca-a aos seus ombros, faz o caminho e diz: Alegrai-vos comigo porque encontrei a minha ovelha perdida.

Os símbolos, as imagens, nós sabemos, valem por mil palavras. Porque não falam apenas à nossa cabeça, ao nosso pensamento, falam também ao nosso coração. As imagens são uma forma muito especial de comunicação, precisamente porque elas cabem e não cabem nas palavras. Dizem de outra forma. Comunicam connosco de uma outra maneira.

Esta imagem de Jesus Bom Pastor sem dúvida que é uma imagem inspiradora daquilo que somos. É importante que Jesus seja o nosso Bom Pastor, que seja Ele o nosso Bom Pastor.

Hoje nós líamos este Salmo 22 ou 23, segundo a numeração quer grega quer hebraica, e deste Salmo que diz «O Senhor é o Meu Pastor», que é um dos mais conhecidos, nós podemos fazer dele a oração quotidiana e encontrar nele o consolo e a força de que precisamos.

O grande filósofo Henri Bergson dizia que rezar o salmo 23 era para ele sempre o momento mais fundo da sua espiritualidade.

Porque é a certeza não de um Deus distante e indiferente à nossa história, um Deus que paira filosoficamente sobre a nossa existência. Mas é um Deus que verdadeiramente está implicado na nossa situação.

Aliás, é interessante recordar que este salmo 23 foi um salmo muito discutido na tradição judaica. Porque alguns diziam, isso é uma heresia, é uma blasfémia. O que esse salmo diz é impossível porque atenta contra a omnipotência e a impassibilidade de Deus. Porquê? Porque a dada altura o salmo diz : «Ainda que eu ande por vales tenebrosos, de nenhum mal terei medo porque Tu estás comigo».

E então os Mestres perguntavam-se: Mas então Deus está no vale da sombra, quer dizer, no vale da morte, no vale da infâmia, no vale da vulnerabilidade, no vale do pecado. Deus está na nossa lama?

Nesse aberto implacável onde parece que a vida se dispersa? Deus está aí?

Como é que isso é possível? Isso põe em causa a fé no Deus único, no Deus absoluto.

A verdade é que ninguém nunca se atreveu a retirar este salmo 23 do conjunto dos salmos. E mais, ele é uma espécie de joia, é uma espécie de Santo dos Santos, no interior do saltério que é composto por 150 salmos. Este é, sem dúvida, o salmo mais lido, o salmo mais usado.

E, contudo, até parece uma heresia. Mas o amor tem que ter alguma coisa de heresia, tem que ter alguma coisa de sobressalto, de excessivo, de ir além das medidas, de ir além da própria razoabilidade. E o amor de Deus é isto. Deus parece que se nega a si mesmo para nos amar, e nos amar sempre e nos amar até ao fim.

Este é o mistério do amor de Deus. O Senhor torna-se escravo para poder estar junto de nós.

Queridos irmãos, é muito importante perguntarmo-nos se, de facto, Jesus é o Pastor das nossas vidas. Perguntarmos quem é que apascenta a nossa vida, às vezes no seu lugar, às vezes ocupando o próprio lugar de Deus.

Numa parede de uma prisão do Harlem em Nova Iorque foi descoberto um poema, escrito por um toxicodependente que estava ali preso. É um poema que é uma paráfrase do Salmo 23. E é verdadeiramente impressionante. Diz assim:

“A heroína é o meu pastor, ela sempre me faltará
Ela faz-me dormir debaixo das pontes e conduz-me a uma doce demência
Ela destrói a minha vida e conduz-me pelo caminho do inferno
por amor do seu nome
Mesmo se eu caminhasse pelo vale da morte
Não temerei nenhum mal porque a heroína está comigo
A minha seringa e a minha agulha dão-me conforto”

É um poema que é um grito, mas nós podemos perguntar: o que é que colocamos no lugar do nosso Pastor? Este homem colocou a heroína. Nós o que é que colocamos?

Podemos colocar o dinheiro. Podemos colocar a ambição. Podemos colocar a nossa satisfação pessoal. O nosso prazer. O nosso individualismo. Podemos colocar tantas coisas.

Rezar o Salmo 23 é também purificar o nosso coração. Desses falsos ídolos que nós colocamos no lugar de Deus a apascentar a nossa vida, a cuidar da nossa vida, a velar por aquilo que somos.

Neste domingo do Bom Pastor nós celebramos também o dia dos seminários, o dia das orações pelas vocações consagradas, no fundo, pela dimensão do pastoreio do povo de Deus.

É muito importante que peçamos ao Senhor que envie, em cada tempo, à sua Igreja, pastores dedicados à maneira de Jesus. Pastores dedicados ao seu rebanho, capazes de expressar na sua vida, nas suas atitudes, a própria imagem de Cristo, o Bom Pastor.

Vamos rezar pelos ministérios na Igreja e, de forma particular, por aqueles que têm esta missão junto dos irmãos, este encargo de apascentar, para que o Senhor também os conforte para que eles encontrem em Cristo também o Pastor previdente e possam traduzir na sua vida esse sentido.

Vamos rezar pelas vocações sacerdotais, para que o Senhor continue a despertar no coração dos jovens, mulheres e homens um grande desejo, de uma forma radical, também ela excessiva, também ela extravagante na sua radicalidade. Que o Senhor possa atrair jovens para se dedicarem às vocações que se ligam de uma forma mais íntima com pastoreio da própria Igreja.

Mas também é verdade que no seu conjunto, a própria Igreja, formada pelos pastores e pelos leigos, fazem um único povo de Deus, nós todos temos a responsabilidade ser pastores, de apascentar. Isto é, somos responsáveis por um ministério, que é um ministério de compaixão. Compaixão pela humanidade. Tantas vezes Jesus olhando para a multidão enchia-se de compaixão dela, porque eram como ovelhas sem pastor.

Às vezes nós, com uma grande facilidade, julgamos os outros e remetemos para o vale da morte, para o vale da sombra e somos implacáveis e castigamos, quando aquilo que nos é pedido, é essa grande vocação de misericórdia: o pastor é aquele que tem um olhar de misericórdia.

É isso que é pedido a cada cristão. Que possa exercer e ser servidor da misericórdia, servindo a humanidade frágil, a humanidade vulnerável. Que é humanidade, no fundo, que existe em cada homem, porque todos, todos, somos feridos pela fragilidade.

Pe. José Tolentino
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O BOM PASTOR CHAMA OUTROS
PARA SEREM PASTORES
P. Romeo Ballan

O quarto Domingo de Páscoa é chamado o «Domingo do Bom Pastor» pela passagem do Evangelho de João «o Bom Pastor» (o Belo Pastor) que a Igreja nos faz ler neste domingo. A imagem do Bom Pastor é a primeira imagem usada pelos cristãos nas catacumbas para representar Jesus Cristo, muitos séculos antes do uso da imagem do crucifixo. A razão desta antiguidade reside na riqueza bíblica da imagem do «pastor» já no Antigo Testamento (Êxodo, Ezequiel, Salmos, etc). Jesus identificou-se com o «pastor» e o evangelista João apresenta uma re-leitura da imagem em chave messiânica, com uma abundância de expressões que sublinham a relação vital entre o «pastor» (Jesus) e as ovelhas: entrar-sair; abrir; chamar-escutar; conduzir; caminhar-guiar; conhecer, apascentar… Até à identificação de Jesus também com a «porta» (versos 7.9): porta de salvação, que significa «vida em abundância». Jesus, de facto, define-se como Bom Pastor que «oferece a vida pelas ovelhas» (verso 11). Note-se que o texto grego usa um sinónimo: o pastor «belo» (v 11.14); isto é, bom, perfeito, que une em si a perfeição ética e estética.

O «pastor belo» oferece a sua vida por todos: tem também outras ovelhas para atrair ao seu rebanho, para se formar um só rebanho com um só pastor (v 16). Ele não renuncia a nenhuma das ovelhas, mesmo que não o conheçam ou se encontrem longe: todas elas devem entrar pela porta que é Ele mesmo, porque é o único salvador. A missão da Igreja move-se nestes parâmetros de oblação e de universalidade: vida oferecida por todos, o caminho para o único rebanho, a vida em abundância… Mesmo que o rebanho seja numeroso, ninguém se perde no anonimato, ninguém está de sobra. As relações são íntimas e pessoais: o pastor conhece as suas ovelhas, «chama as suas ovelhas, cada uma pelo seu nome» e leva-as às pastagens» (v 3).

A intensidade e o amor com que o Bom Pastor oferece a sua vida pelas ovelhas estão descritos tanto na pregação de Pedro no dia de Pentecostes (I leitura), que convida à conversão, ao baptismo e ao acolhimento do dom do Espírito Santo; como na carta do mesmo apóstolo Pedro (II leitura), que aparece como uma «cópia» do quarto canto do Servo de Deus, que encontramos em Isaías 53. Cristo aparece aqui descrito com as atitudes do Servo Sofredor: sofreu por nós, deixando-nos o exemplo a seguir (v 21), curou-nos com as suas chagas. A família humana, dispersa e errante, por causa do pecado, encontra salvação e unidade em Cristo pastor e guardião da vida de todos (v 25). Seguir as pegadas de Cristo Bom pastor é o convite que a Igreja também nos faz neste domingo em que se celebra a Jornada Mundial de Oração pelas Vocações: O Senhor continua a chamar outros, homens e mulheres, para partilharem o seu destino e a sua missão para a vida da humanidade inteira. O Papa pede a cada comunidade cristã que assuma esta responsabilidade de promover as vocações de consagração.

A vocação de especial consagração (sacerdócio, vida consagrada, vida missionária, serviços laicais…), encontra solidez, alegria e liberdade interior na experiência pessoal de sentir-se amado e chamado por Alguém que existe antes de ti. É uma experiência fundamental, que o teólogo protestante K. Barth, superando o idealismo cartesiano, exprime assim: “Cogitor, ergo sum” (alguém pensa em mim, portanto existo). O Salmo 22 exprime, com linguagem de alta poesia, a segurança e a tranquilidade interior  de quem põe a sua confiança plena no Senhor, Bom Pastor. É este o caminho para uma vocação segura, radical e duradoira, “na casa do Senhor para sempre” (v. 6).