VIGÍLIA PASCAL
Mateus 28,1-10
e DOMINGO de PÁSCOA
João 20,1-9

VIGÍLIA PASCAL
Não coloquemos uma pedra sobre a esperança!
«Terminado o sábado» (Mt 28, 1), as mulheres foram ao sepulcro. O Evangelho desta santa Vigília começa assim: com o sábado. Este é o dia do Tríduo Pascal que mais descuramos, ansiosos de passar da cruz de sexta-feira à aleluia de domingo. Este ano, porém, damo-nos conta, mais do que nunca, do sábado santo, o dia do grande silêncio; podemos rever-nos nos sentimentos que tinham as mulheres naquele dia. Como nós, tinham nos olhos o drama do sofrimento, duma tragédia inesperada, que se verificou demasiado rapidamente. Viram a morte e tinham a morte no coração. À amargura, juntou-se o medo: acabariam, também elas, como o Mestre? E depois os receios pelo futuro, carecido todo ele de ser reconstruído. A memória ferida, a esperança sufocada. Para elas, era a hora mais escura, como o é hoje para nós.
Contudo, nesta situação, as mulheres não se deixam paralisar. Não cedem às forças obscuras da lamentação e da lamúria, não se fecham no pessimismo, nem fogem da realidade. Realizam algo simples e extraordinário: nas suas casas, preparam os perfumes para o corpo de Jesus. Não renunciam ao amor: na escuridão do coração, acendem a misericórdia. Nossa Senhora, no sábado – dia que Lhe será dedicado –, reza e espera. No desafio da tristeza, confia no Senhor. Sem o saber, estas mulheres preparavam na escuridão daquele sábado «o romper do primeiro dia da semana» (Mt 28, 1), o dia que havia de mudar a história. Jesus, como semente na terra, estava para fazer germinar no mundo uma vida nova; e as mulheres, com a oração e o amor, ajudavam a esperança a desabrochar. Quantas pessoas, nos dias tristes que vivemos, fizeram e fazem como aquelas mulheres, disseminando rebentos de esperança com pequenos gestos de solicitude, de carinho, de oração!
Ao amanhecer, as mulheres vão ao sepulcro. Lá diz-lhes o anjo: «Não tenhais medo. Não está aqui; ressuscitou» (cf. Mt 28, 5-6). Diante dum túmulo, ouvem palavras de vida… E depois encontram Jesus, o autor da esperança, que confirma o anúncio dizendo-lhes: «Não temais» (28, 10). Não tenhais medo, não temais: eis o anúncio de esperança para nós, hoje. Tais são as palavras que Deus nos repete hoje, na noite que estamos a atravessar.
Nesta noite, conquistamos um direito fundamental, que não nos será tirado: o direito à esperança. É uma esperança nova, viva, que vem de Deus. Não é mero otimismo, não é uma palmadinha nas costas nem um encorajamento de circunstância, com o aflorar dum sorriso. Não. É um dom do Céu, que não podíamos obter por nós mesmos. Tudo correrá bem: repetimos com tenacidade nestas semanas, agarrando-nos à beleza da nossa humanidade e fazendo subir do coração palavras de encorajamento. Mas, à medida que os dias passam e os medos crescem, até a esperança mais audaz pode desvanecer. A esperança de Jesus é diferente. Coloca no coração a certeza de que Deus sabe transformar tudo em bem, pois até do túmulo faz sair a vida.
O túmulo é o lugar donde, quem entra, não sai. Mas Jesus saiu para nós, ressuscitou para nós, para trazer vida onde havia morte, para começar uma história nova no ponto onde fora colocada uma pedra em cima. Ele, que derrubou a pedra da entrada do túmulo, pode remover as rochas que fecham o coração. Por isso, não cedamos à resignação, não coloquemos uma pedra sobre a esperança. Podemos e devemos esperar, porque Deus é fiel. Não nos deixou sozinhos, visitou-nos: veio a cada uma das nossas situações, no sofrimento, na angústia, na morte. A sua luz iluminou a obscuridade do sepulcro: hoje quer alcançar os cantos mais escuros da vida. Minha irmã, meu irmão, ainda que no coração tenhas sepultado a esperança, não desistas! Deus é maior. A escuridão e a morte não têm a última palavra. Coragem! Com Deus, nada está perdido.
Coragem: é uma palavra que, nos Evangelhos, sai sempre da boca de Jesus. Só uma vez é pronunciada por outros, quando dizem a um mendigo: «Coragem, levanta-te que [Jesus] chama-te» (Mc 10, 49). É Ele, o Ressuscitado, que nos levanta a nós, mendigos. Se te sentes fraco e frágil no caminho, se cais, não tenhas medo; Deus estende-te a mão dizendo: «Coragem!» Entretanto poderias exclamar como padre Abbondio: «A coragem, não no-la podemos dar» (I promessi sposi, XXV). Não a podes dar a ti mesmo, mas podes recebê-la, como um presente. Basta abrir o coração na oração, basta levantar um pouco aquela pedra colocada à boca do coração, para deixar entrar a luz de Jesus. Basta convidá-Lo: «Vinde, Jesus, aos meus medos e dizei também a mim: “coragem!” Convosco, Senhor, seremos provados; mas não turvados. E, seja qual for a tristeza que habite em nós, sentiremos o dever de esperar, porque convosco a cruz desagua na ressurreição, porque Vós estais connosco na escuridão das nossas noites: sois certeza nas nossas incertezas, Palavra nos nossos silêncios e nada poderá jamais roubar-nos o amor que nutris por nós».
Eis o anúncio pascal, anúncio de esperança. Este contém uma segunda parte, o envio. «Ide anunciar aos meus irmãos que partam para a Galileia» (Mt 28,10): diz Jesus. Ele «vai à vossa frente para a Galileia» (28, 7): diz o anjo. O Senhor precede-nos, precede-nos sempre. É bom saber que caminha diante de nós, que visitou a nossa vida e a nossa morte para nos preceder na Galileia, isto é, no lugar que, para Ele e para os seus discípulos, lembrava a vida diária, a família, o trabalho. Jesus deseja que levemos a esperança lá, à vida de cada dia. Mas, para os discípulos, a Galileia era também o lugar das recordações, sobretudo da primeira chamada. Voltar à Galileia é lembrar-se de ter sido amado e chamado por Deus. Cada um de nós tem a sua própria Galileia. Precisamos de retomar o caminho, lembrando-nos de que nascemos e renascemos a partir duma chamada gratuita de amor, lá, na minha Galileia. Este é o ponto donde recomeçar sempre, sobretudo nas crises, nos tempos de provação: na recordação da minha Galileia.
Mais ainda. A Galileia era a região mais distante de Jerusalém, onde estavam. E não só geograficamente: a Galileia era o lugar mais distante do caráter sacro da Cidade Santa. Era uma região habitada por povos diferentes, que praticavam vários cultos: era a «Galileia dos gentios» (Mt 4, 15). Jesus envia para lá, pede para recomeçar de lá. Que nos diz isto? Que o anúncio da esperança não deve ficar confinado nos nossos recintos sagrados, mas ser levado a todos. Porque todos têm necessidade de ser encorajados e, se não o fizermos nós que tocamos com a mão «o Verbo da vida» (1 Jo 1, 1), quem o fará? Como é belo ser cristãos
que consolam, que carregam os fardos dos outros, que encorajam: anunciadores de vida em tempo de morte! A cada Galileia, a cada região desta humanidade a que pertencemos e que nos pertence, porque todos somos irmãos e irmãs, levemos o cântico da vida! Façamos calar os gritos de morte: de guerras, basta! Pare a produção e o comércio das armas, porque é de pão que precisamos, não de metralhadoras. Cessem os abortos, que matam a vida inocente. Abram-se os corações daqueles que têm, para encher as mãos vazias de quem não dispõe do necessário.
No fim, as mulheres «estreitaram os pés» de Jesus (Mt 28, 9), aqueles pés que, para nos encontrar, haviam percorrido um longo caminho até entrar e sair do túmulo. Abraçaram os pés que espezinharam a morte e abriram o caminho da esperança. Hoje nós, peregrinos em busca de esperança, estreitamo-nos a Vós, Jesus ressuscitado. Voltamos as costas à morte e abrimos os corações para Vós, que sois a Vida.
Papa Francisco
Sábado Santo, 11 de abril de 2020
DOMINGO DE PÁSCOA
Aprender a acreditar
Queridos irmãs e irmãos,
Aleluia! Esta palavra hebraica que significa “adorai, louvai, enchei de glória, enchei de louvor” é aquela palavra que habita hoje o nosso coração. Hoje é mais verdade que cada um de nós foi criado para adorar, foi criado para louvar, foi criado para dançar. Tudo o que existe bate palmas, tudo o que respira louva. Porque a vida que nós vimos tão ameaçada, tão retida pelos laços da morte, essa vida soltou-se.
A ressurreição é a reviravolta de Deus. A história escreve-se de outra maneira, não há uma fatalidade. Na Sexta-feira Santa nós sentimos o peso da fatalidade, que tantas vezes é a palavra que nós temos de mastigar devagar ao longo do tempo. Tem de ser, temos de nos conformar, temos de aceitar, temos de viver o vazio, temos de viver essa redução a cinzas, a nada, temos de ver o fogo apagar-se e compreender que é assim, que não há mais nada a fazer. E, quando os discípulos rolaram a pedra sobre o sepulcro, era como se um ponto final tivesse de ser colocado naquela história.
A espiritualidade de Sexta-feira Santa é a espiritualidade de uma vida adulta como a nossa. De uma vida inacabada, de uma vida dilacerada, presa nos seus conflitos, nas coisas irresolúveis da nossa história, sentindo que aquilo que temos de fazer ou que teríamos de fazer é tão superior às nossas possibilidades. Então, o que nós sentimos é as mãos vazias, o que nós sentimos é a conformação de abanar os ombros e dizer “é assim”, de encolher a vida e de aceitar que no fundo a morte ganha sempre. A morte e o que ela significa, porque a morte significa muitas coisas, não é apenas o fim desta vida terrena, é também a pequena morte que nos insinua a morte que é o egoísmo, a morte que é a maldade, a morte que é a violência, a morte que é a indiferença. No fundo, olhamos para o mundo, olhamos para nós próprios e dizemos: tarde ou cedo a morte ganha sempre. E a nossa vida torna-se uma vida ferida, uma vida marcada cada vez mais por uma nudez, vamos ficando cada vez mais vazios, cada vez mais ocos, se calhar cada vez mais conformados com a nudez de Cristo que está pregada naquela cruz.
E há a manhã de Páscoa, três dias depois, quando as coisas são levadas ao limite, quando já não há mais esperança alguma, quando tudo começa a entrar num processo de decomposição e de fim, aquela Madalena vai ao sepulcro e descobre que ele está vazio. Vem a correr doida de alegria, intrigada, dizer aos discípulos e eles põem-se a correr ao sepulcro. Hoje é o dia em que os cristãos correm, correm. Porquê? Porque o sepulcro vazio é inacreditável, é inacreditável! O que nós celebramos na Páscoa é inacreditável, é a verdade mais inacreditável. E ao mesmo tempo é a reviravolta, é o levantamento, é a insurreição, é a história como nós não a tínhamos pensado. E isto para cada um de nós, e isto para o destino do mundo.
Por isso, hoje é o dia de celebrar aleluia, de levantar a cabeça. Hoje é o dia de sentir a leveza, sentir a esperança como um sopro que nos refaz, que nos anima, que coloca um sorriso no fundo da nossa alma porque Ele ressuscitou. Aquele que desceu mais fundo do que se pode descer, Aquele que foi até à aniquilação para abraçar toda a minha ferida, toda a minha fragilidade, toda a minha miséria, levantou-Se. E, quando Ele Se levanta, ele leva-nos aos Seus ombros de bom-pastor; quando Ele Se levanta, Ele leva-nos, segura-nos nas suas mãos de misericórdia; quando Ele se levanta também coloca a minha vida de pé.
O verbo “ressuscitar” quer dizer: ficar de pé, levantar-se. Levantemo-nos! Este é o levantamento mais fácil, mas há um profundo dentro de nós, esse é o verbo “ressuscitar”. Podemo-nos sentar. Para compreender a ressurreição é preciso fazer um caminho. Nós perguntamos: quem foram as primeiras testemunhas da ressurreição? E a quem custou mais não acreditar na ressurreição?
As primeiras testemunhas da ressurreição foram as mulheres. Foram as mulheres porque elas não largavam o sepulcro, porque elas choravam, elas precisavam chorar, porque elas levavam perfumes, porque elas cuidavam, elas queriam cuidar na morte e para lá da própria morte, porque elas queriam ficar ali, porque não tinham nada a perder. Não tinham medo que lhes dissessem: “Tu és Dele, tu és Daquele.” Elas não tinham nada a perder. E, ao mesmo tempo, o testemunho das mulheres também não era válido num tribunal judaico. Então, reparem, aquelas que amam, aquelas que não têm medo de correr o risco de amar, aqueles e aquelas que cuidam, aqueles que permanecem são os primeiros a testemunhar o mistério da ressurreição.
Como é que nós vamos tatear a verdade da ressurreição? Se nos colocarmos na fronteira do amor, na fronteira do cuidado, na fronteira do serviço, se permanecermos fiéis à memória do amor e habitarmos esse lugar continuamente, se perdermos o medo de amar então nós vamos ser os primeiros testemunhas da ressurreição. E são elas, como diz o Papa Francisco, Madalena, seguindo a tradição dos Padres da Igreja, “Madalena, a apóstola dos apóstolos”, vai chamar Pedro e João e eles vêm a correr. E eles também têm de fazer o caminho para compreender. Então, há dois verbos. Há o verbo “ver”, e o que é que eles vêm? Veem o sepulcro vazio, vêm as ligaduras caídas, vêm o sudário dobrado. Este é o primeiro verbo, o verbo “ver”.
Os nossos olhos também veem e veem o vazio, veem o silêncio, veem esse lugar refulgente da ausência, veem o invisível, mas esta visão é para podermos acreditar. E o grande trabalho da ressurreição é acreditar, acreditar. Quem ama, quem cuida, quem permanece fiel, quem perfuma a vida dos outros, quem não abandona, quem habita o lugar da vizinhança, o lugar da proximidade acredita, acredita, aprende a acreditar. E é isso, queridos irmãos, que a Páscoa pede de cada um de nós: que aprendamos a acreditar. A acreditar que a vida é maior do que a morte, a acreditar que Deus repara as feridas, que Deus é capaz de salvar o insalvável, que para Deus não há o irrecuperável, que Ele é capaz de fazer e recriar e reconstruir, porque Ele é o Deus da vida. A ressurreição, o sepulcro vazio, é essa irrupção de vida – torna-se fonte, manancial, surto. É dessa fonte que nós temos de nos alimentar para encher a nossa vida de gestos, de olhares, de caminhos, de viagens, de projetos, de pactos. Porque a ressurreição tem de ser vida que nos atravessa.
S. Paulo na Carta aos Colossenses tem uma das mais belas formulações da Igreja antiga, ele diz: “Vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus para que ela, com Cristo, se possa manifestar.”
Queridos irmãos, nós celebrámos o Tríduo Pascal e o que é que fizemos? Morremos com Cristo. E nesta Eucaristia nós morremos com Cristo, o homem velho, a mulher velha que subsiste dentro de nós, nós queremos deixar com Cristo o homem da impureza, queremos que morra com Cristo para que possamos renascer com Ele para a vida. Os cristãos sentiram uma coisa quase insolente, pelo menos muito insólita, eles acreditavam que o Espírito do Ressuscitado estava com eles. Nós aqui, não estamos apenas a celebrar um facto de há dois mil anos. Não, nós estamos a estremecer, como a haste de uma flor estremece ao vento. Nós estamos a brilhar, como quando uma luz se acende no interior. Porquê? Porque já não somos só nós, já não contamos apenas com as nossas forças, já não vivemos apenas a nossa pequena história, o Ressuscitado está connosco, o espírito do Ressuscitado hoje desce sobre nós. E Ele também nos transforma, Ele também opera a grande reviravolta, a grande transformação na nossa vida. Hoje, quando nos voltarmos a levantar seremos mulheres e homens novos.
José Tolentino Mendonça
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