O Pentecostes Joanino e o Pentecostes Lucano

No Novo Testamento, temos relatos de dois Pentecostes, e não de apenas um. Além do Pentecostes descrito por S. Lucas no capítulo 2 dos Atos dos Apóstolos, encontramos também o Pentecostes descrito no Evangelho segundo S. João (João 20: 22), em que nos é contado que Jesus soprou sobre os Apóstolos, dizendo: “recebei o Espírito Santo”.

Este Pentecostes joanino acontece no próprio dia de Páscoa, no cenáculo, após a Ressurreição; antecipa, assim, o Pentecostes relatado por S. Lucas nos Atos, ocorrido cinquenta dias depois, no dia de Pentecostes judeu.

Desde muito cedo, este facto das duas descrições sobre a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos foi notado pelos Padres da Igreja. Santo Agostinho refere-se a ele, e dá-lhe uma explicação. O dom do Espírito Santo, no dia da Páscoa, foi como que uma primícia, um dom parcial e restrito aos Apóstolos. O dom mais completo e universal teria sido concedido cinquenta dias depois.

Desta dupla descrição, também há hoje quem dê uma outra explicação. Os dois relatos correspon­deriam a dois modos diversos de conceber e apresentar o dom do Espírito Santo (…). Lucas e João descrevem, de dois ângulos diferentes e com duas preocupações teológicas diferentes, o mesmo e fundamental evento da história da salvação, isto é, a efusão do Espírito Santo tornada possível pela Ressurreição de Cristo.

Sobre tudo isto, poderemos fazer uma breve meditação.

Antes de mais, o reconhecimento claro destas duas ocasiões temporais distintas, em que os Apóstolos receberam o Espírito Santo (João 20,22 e Act 2,1-4), não deve constituir qualquer embaraço para o conceito essencial de Pentecostes como baptismo do Espírito. A verdade é que nos Actos se descrevem também dois Pentecostes, e não apenas um.

Com efeito, logo depois do primeiro Pentecostes universal, de Act 2, 1-4, se relata inequivocamente, em Act 4,31, um segundo Pentecostes: “tinham acabado de rezar, quando o lugar em que se encontravam reunidos estremeceu e todos ficaram cheios do Espírito Santo, começando a anunciar a palavra de Deus com desassombro” – e, depois desta, ainda outras descrições de baptismos do Espírito Santo se encontram em Actos, já não sobre os Apóstolos, mas sobre outros, por exemplo: o baptismo da Samaria, Act 8,17; o baptismo de Cornélio, Act 10,44-46; o baptismo de Éfeso, Act 19,6.

É contudo muito interessante à interpretação (aceite, por exemplo, pelo Padre Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia de João Paulo II), acerca dos dois modos diferentes, usados por S. João e por S. Lucas, para nos apresentarem o baptismo do Espírito. O primeiro, joanino, visando à vida nova conferida pela Páscoa de Cristo: renovação espiritual, renascimento, vivificação. De facto, no Evangelho segundo S. João, o Espírito é apresentado e prometido insistentemente como o Espírito de vida, de renovação, de renascimento, de santificação. Por sua vez, a descrição de S. Lucas nos Atos acentua a dimensão carismática do baptismo do Espírito: voltada para a missão, acentuando o poder do Espírito.

O Padre Cantalamessa vê nesta dualidade de expressões uma relação com a história e a liturgia da Igreja, pois que existiram, nos primeiros séculos da Igreja, dois modos de entender a festa de Pentecostes: num deles, o mais antigo, o Pentecostes era a festa dos cinquenta dias sucessivos à Páscoa, e comemorava a presença espiritual (segundo o Espírito) de Jesus com os seus; no outro, o Pentecostes era a festa da descida do Espírito Santo aos cinquenta dias depois da Páscoa. Assim, segundo a tradição joanina, o dom do Espírito Santo inaugurava o Pentecostes; enquanto que, na tradição lucana, o concluía.

Interpretando a Escritura de acordo com um método de sobreposição, Cantalamessa reencontra aqui as duas, por assim dizer, dimensões do baptismo do Espírito: a dimensão da vida nova e da santificação, em João, e a dimensão da missão ou da evangelização, em Lucas. Para S. João, o Espírito é um princípio interior que age “em” aquele que o recebe, e não apenas opera “através dele”. S. João, que escreveu depois dos sinópticos e talvez sem os conhecer, aprofunda a visão dos sinópticos, visto que ele também apresenta a concessão do Espírito em tensão com a missão: “como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós. Depois de ter dito isto, soprou sobre eles e disse: ‘recebei o Espírito Santo’” (Jo 20,21-22).

Eis, pois as duas dimensões da acção do Espírito Santo: a vivificante e a profética, que a Igreja incluiu no Credo: “creio no Espírito Santo, Senhor que dá a Vida; foi Ele que falou pelos profetas”.

É verdade que, quando estudamos a acção do Espírito Santo, a teologia ensina-nos sobre a graça santificante, que nos confere a vida nova, com as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo para a nossa santificação pessoal; e depois distingue os carismas, que são dons já não dirigidos directamente à nossa santificação pessoal, mas sim à missão, à evangelização, ao anúncio, à acção apostólica. E até pode suceder que os carismas se manifestem, e poderosamente, em alguém que não exercita ou acolhe as virtudes e dons de santificação pessoal: um profeta pode não ser um santo (é isto o que S. Paulo, em 1Cor 13,2, parece admitir, quando diz que se pode ter o dom da profecia e não ter caridade, que é o vínculo da perfeição: “ainda que eu tivesse o dom da profecia (…) se não tiver caridade, de nada me valeria”.

Mário Pinto

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