O binômio luzes e sombras remete ao contexto simbólico do Quarto Evangelho e das cartas do apóstolo Paulo, ambos com uma elaborada teologia. Mas aparece também, com relativa frequência, nos escritos da Doutrina Social da Igreja.

Em termos mais amplos, é assaz familiar ao universo da linguagem religiosa em geral. Naturalmente as sombras expressam o mundo do mal e do pecado, da injustiça e da violência, do erro e da mentira. Ali dominam as forças das trevas, com todas as suas implicações e consequências. As luzes, por sua vez, refletem o brilho do bem e da graça, da justiça e da paz, da retitude e da verdade. A escuridão cede lugar à transparência.

Entre o espectro desses dois pólos – luzes e sombras – existem evidentemente inúmeras posições intermediárias de penumbra, numa enorme variedade de graus e tonalidades. Ninguém é somente luz, ninguém somente sombra; ninguém se mantém luz por todo tempo, ninguém por todo tempo se mantém sombra. Em tudo e em todos, luzes e sombras se mesclam, se confundem e se alternam de acordo com uma série de fatores e circunstâncias.

Formam uma combinação intrincada que entrelaça, simultaneamente, escuridão e luminosidade, da mesma maneira que o lusco-fusco do amanhecer ou do entardecer. Nos seres humanos, porém, o processo de crescimento pessoal, comunitário, social, político e cultural faz com que cada pessoa, família, grupo, comunidade ou sociedade se aproximem de um ou outro pólo do espectro.

Como será fácil imaginar, semelhante processo é sempre ambivalente, podendo ser evolutivo ou involutivo. No movimento evolutivo, percorre-se o espectro na direção da sombra para a luz. No sentido involutivo, ao contrário, caminhamos do pólo da luz para o pólo da sombra.

Em chave bíblico-teológica, o primeiro caso explica a superação do pecado pela graça, da escravidão pela liberdade, do erro pela verdade, da violência pela paz – numa palavra, da morte pela ressurreição. Já o segundo caso implica regressão ao estado primitivo de trevas.

Protótipos de ambos podem ser, para o primeiro, a libertação e êxodo da terra do Egito, e, para o segundo, a recaída na armadilha da opressão e sujeição no período da monarquia.

Reino das trevas

Todos o conhecemos. Tem suas raízes profundamente mergulhadas no coração, na mente e na alma de cada ser humano, bem como nas relações interpessoais, familiares e comunitárias, sociopolíticas e culturais. Neste reino primário, primordial e animalesco prevalecem, de forma nua, crua e brutal, os instintos e paixões, os desejos e interesses, os impulsos e aptidões, sejam eles individuais ou de caráter sociohistórico.

O terreno é inculto e selvagem, propício à erva daninha da mesquinhez e do egoísmo, da inveja e do ódio, do rancor e da vingança. O “eu” e o “meu” se impõem, deixando pouco ou nenhum espaço para o “nós” e o “nosso”. Os “de dentro” protegem-se de forma segura e hermética do assédio dos que estão do lado “de fora”. O outro, estranho e diferente representa uma ameaça à sobrevivência e coesão interna, devendo, por isso mesmo, ser mantido à distância. Instala-se um egocentrismo pessoal, familiar, grupal, corporativo, partidário, nacionalista

Reino escuro da luta sem trégua de todos contra todos, onde “o homem é lobo do próprio homem”, como advertia o filósofo T. Hobbes. À medida que se sobe na escala social e se ganha importância política, porém, crescem inevitavelmente as consequências negativas de tais atitudes. Cultiva-se, assim, a cobiça que leva ao acúmulo de dinheiro, poder e influência; à busca de títulos, prestígio e projeção da própria celebridade; às injustiças, desigualdades e assimetrias, ao escândalo que justapõe, lado a lado, uma minoria rica e poderosa e uma imensa maioria pobre e marginalizada.

De tudo isso resulta a teoria de C. Darwin, em que, no processo de seleção natural aplicado à sociedade, os fortes sobrevivem e se tornam sempre mais fortes, ao mesmo tempo que os fracos são eliminados. Ergue-se, de forma irremediável, a pirâmide social: uma ampla base de trabalhadores sistematicamente explorados sustenta os que habitam os andares superiores.

Esse mundo das trevas, como se vê, comporta uma espiral corrosiva que se amplia de acordo com a posição social de cada pessoa ou grupo social. Em nível interpessoal e familiar, é capaz de criar, cultivar e nutrir rancores malignos e ressentimentos venenosos – violência oculta e silenciosa, que no limite desencadeia as tragédias passionais. Em nível político e sociocultural, tende a abrigar o vírus da corrupção e do uso incorreto da rex publica, podendo causar enormes danos e destruição. Basta ver os conflitos e guerras – a violência aberta e armada, que tudo varre e tudo devasta. Resultado disso são os crescentes e dramáticos deslocamentos humanos de massa: multidões errantes em busca de um solo ao qual possam dar o nome de pátria.

Reino da luz

Opõe-se ao mundo das sombras. Na teologia do prólogo ao Quarto Evangelho, a Palavra, que “se faz carne”, é sinônimo da “luz verdadeira, aquela que ilumina todo homem”. De fato, “a Palavra estava no mundo, o mundo foi feito por meio dela, mas o mundo não a reconheceu”. Palavra e mundo se excluem, tal como o reino da luz se contrapõe ao reino das trevas. No final das contas, porém, “essa luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguirão apagá-la” (Jo 1,1-18).

Entretanto, convém estar atento para não confundir, no universo simbólico e teológico do Quarto Evangelho, o “mundo” com a sociedade em que vivemos, com o contexto histórico em que somos chamados a agir. O termo mundo, na teologia do quarto evangelista, designa o universo do pecado, do mal, do erro e da violência, ao passo que a Palavra/luzreflete o universo da graça divina, do bem, da verdade e a da paz. Ambos – reino das trevas e reino da luz – encontram-se misturados e entrelaçados na história, no coração de cada pessoa e de cada cultura, bem como nas relações que vamos tecendo nos mais diversos níveis e instâncias.

Nas cartas dos apóstolos Pedro e Paulo, os cristãos das primeiras comunidades são convidados a abandonar as coisas da terra, “os bens materiais”, e buscar as coisas do alto, “os bens espirituais”. Os primeiros são provisórios e se corrompem, enquanto estes últimos permanecem “incorruptíveis”. O que faz lembrar as palavras de Jesus:

Não ajuntem riquezas aqui na terra, onde a traça e a ferrugem corroem, e onde os ladrões assaltam e roubam. Ajuntem riquezas no céu, onde nem a traça nem a ferrugem corroem, e onde os ladrões não assaltam nem roubam. De fato, onde está o seu tesouro, aí estará também o seu coração” (Mt 6,19-21).

Não se trata de buscar o “reino da luz” fugindo da sociedade e do convívio com os outros, e sim superando a influência nefasta do “mundo”, entendido aqui como esfera do mal. Inseridos no meio social como “fermento e sal” no meio da massa (não fora, nem acima ou além da história), somos convidados a romper essa órbita maligna, em vista de construir o “reino da luz”, aspirando à esfera do bem.

Em outras palavras, a tarefa é a de romper com a espiral de violência através de uma prática que visa superar o vingativo “olho por olho, dente por dente”, cultivando o perdão e o amor, a compaixão e a misericórdia.

A partir do brilho da face divina e da luminosidade da casa de Deus, os “bens terrestres e materiais” revelam toda sua provisoriedade e transitoriedade. Tornam-se relativos, efêmeros e negociáveis, diante daquilo que é único, absoluto e inegociável. Passamos de um comportamento centrado sobre si mesmo, egoísta e egocêntrico – “humano, demasiado humano” – a uma atitude humano divina, que tem como centro o projeto do Pai, o que leva a superar e libertar-se de uma série de sentimentos e ações mesquinhos.

A luz divina ilumina as trevas da condição humana, ajudando a discernir e separar o que é essencial daquilo que é secundário.

Pe. Alfredo J. Gonçalves
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