Domingo de Ramos (ciclo A)

Referências bíblicas
- Evangelho (proclamado no exterior da igreja): Entrada messiânica (Mateus 21,1-11)
- Missa da Paixão: 1ª leitura: Não desviei o rosto dos ultrajes… Porque sei que não serei humilhado. (Isaías 50,4-7)
- Salmo: Sl. 21(22) – R/ Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?
- 2ª leitura: Humilhou-se a si mesmo… Por isso Deus o exaltou… (Filipenses 2,6-11)
- Evangelho: Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo (Mateus 26,14-75; 27,1-66 ou 27,11-54, mais breve)
“É em tua casa que Eu quero celebrar a Páscoa”
Queridos irmãs e irmãos,
Nós acabámos de ler a grande narrativa da Paixão de Jesus. Hoje nós sabemos que a primeira parte dos Evangelhos a ser escrita foi a Paixão de Jesus. Quando olhamos para os quatro evangelhos juntos (Mateus, Marcos, Lucas e João) nós percebemos que aquilo que eles têm de mais próximo, aquilo que é mais comum entre eles é a narrativa da Paixão. Quer dizer que a primeira coisa a ser escrita, aquilo que foi conservado na palavra, no relato, no testemunho, na conversa dos cristãos, aquilo que foi segredado ao ouvido, aquilo que iniciou cada cristão fazendo-o discípulo e discípula de Jesus foi o contacto com esta narrativa da Paixão.
Nós hoje entramos na Semana Maior, na mais santa das semanas do ano. É uma semana para nós muito significativa porque temos oportunidade na liturgia de reviver o mistério pascal do Senhor, sentindo que este relato é a nossa coluna dorsal, que este relato é a nossa arquitetura íntima, que nós somos moldados por este relato, que ele é confiado a cada um de nós como se Jesus viesse bater à nossa porta.
É muito interessante que logo no início do relato aparece-nos uma figura anónima. Os discípulos vêm perguntar a Jesus “Senhor, onde é que queres celebrar a Páscoa este ano?” e Jesus diz “Ide dizer a casa de tal pessoa: o Senhor mandou dizer «Este ano é em tua casa que Eu quero celebrar a Páscoa.»” Nós não sabemos que pessoa é essa, é um anónimo. Seria com certeza conhecido de Jesus e dos outros discípulos. Mas o facto de na narrativa permanecer anónimo permite hoje que cada um de nós, leitores auscultadores desta narrativa, sintamos, porque é mesmo assim, que o Senhor diz ”Olha, este ano é em tua casa que Eu quero celebrar a Páscoa.”
Cada um de nós sinta esta Palavra como uma palavra a si dirigida e, por isso, procuremos viver o mistério desta semana em intimidade com Jesus, em união espiritual com Ele. Tentando perceber o que é esta narrativa, tentando perceber como é que ela pode ser nossa, que mistério extraordinário é este da solidariedade de Jesus que desce ao fundo do abismo, da solidão, do silêncio de Deus, do abandono, do sofrimento de uma vítima, de um justo inocente. Ele desce até aos fundos abissais do sofrimento humano para me abraçar, para me resgatar, para dizer a cada momento da nossa vida: “Tu não estás só. Eu já estive aí, eu já estive aí.” No lugar da nossa dor, do nosso dilema, do nosso impasse, da nossa miséria, do nosso sofrimento, do que nós não conseguimos aceitar nem compreender. Jesus pode dizer com verdade ao nosso coração: “Eu já estive aí, Eu já estive aí.” Ele esteve em todos os lugares onde o homem é vítima, onde a nossa humanidade é crucificada. “Eu já estive aí. Por isso, eu posso estar contigo a cada momento da tua vida.” Sintamos que este relato hoje nos é confiado, confiado a cada um de nós. E o que vamos fazer com isto? O que vamos fazer com esta história?
Dois mil anos depois, num ponto do Ocidente distante da Palestina mas marcado de uma forma indelével por esta história, são os nossos ouvidos que escutam esta história, são os nossos ouvidos que ouvem esta notícia, somos nós que recebemos este apelo e somos nós que temos de sair destas portas e anunciar ao mundo que há um homem crucificado que diz que é o Salvador.
José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org
Eis que o teu Rei vem a ti
A tomada do poder
A Paixão-Ressurreição de Jesus é a sua exaltação, sua elevação acima de tudo, sua tomada de posse do Reino. O 4º evangelho investe na imagem de Jesus «levantado da terra», na cruz, que se torna assim o trono da glória. Os outros evangelistas mostram a entrada triunfante de Jesus em Jerusalém.
Esta cena dá o sentido dos acontecimentos que se seguirão, fosse qual fosse o seu conteúdo histórico. Não está aí para nos mostrar a versatilidade da multidão, que num dia aclama e no outro condena. Não. O que ela nos quer dizer é que Jesus veio «tomar o poder», que ele é o Messias filho de Davi que era esperado e que as antigas promessas vão ser cumpridas.
Temos, pois, de superpor, temos de ler em impressão sobreposta as profecias do Reino de Deus por meio do «ungido», do Cristo, na cena dos ramos, da elevação na cruz, da Ressurreição e também do anúncio da volta do Cristo, a recapitulação final.
Obediência à Palavra
Temos o hábito de considerar o Cristo como a Palavra. De fato, as Escrituras o mostram como quem as profere como quem instrui. Mas Jesus mesmo, recebendo e acolhendo a Palavra, esta imagem nos é menos familiar. E, no entanto, ele cumpre ativa e voluntariamente as Escrituras, decifrando na Palavra o que deve ele ser e fazer.
Particularmente nas profecias do Servo, em Isaías, capítulos 42, 49, 50 (a 1ª leitura), 52 e 53. Ver também (1º domingo da Quaresma) como Jesus fez suas as palavras do Deuteronômio. A Epístola aos Hebreus retoma este tema da obediência de Cristo, primeiro em 5,7-9 e, sobretudo, em 10,7, que cita o Salmo 40,7-9: «Eis-me aqui – no rolo do livro está escrito a meu respeito – eu vim, ó Deus, para fazer tua vontade».
Por ter-se deixado instruir por Deus, por ter recebido a Palavra, é que Cristo pode tomar a palavra; mas, então, sua palavra é a Palavra de Deus. Em João, Jesus diz que não cumpre a sua vontade, mas a vontade daquele que o enviou; que as suas obras não são suas, mas do Pai; e que as suas palavras, ele não as diz de si mesmo, mas são as palavras de quem o enviou. Daí a primeira frase de nossa primeira leitura: «Deus me deu língua de discípulo (…)», ou seja, de quem se deixa instruir. Jesus “fez-se obediente até a morte, e morte de Cruz”.
Face de luz e face de trevas
Esta obediência de Jesus tem algo de luminoso. Se, com efeito, tudo o que ele faz e o que diz não é dele, mas do Pai, então, através dele o Pai se torna visível e acessível. Deus está bem aí, entre nós. Este Jesus é a sua imagem perfeita e, a justo título, é chamado de «o Filho».
Se ser Pai significa tão somente dar-se a si mesmo em alimento, a fim de que os filhos vivam; fazer-se desaparecer (deixar-se ir, passar), a fim de deixar lugar aos outros; não se subtrair à maldade e à loucura, «não proteger a sua face dos ultrajes»…
Então, o Filho, Imagem perfeita, exata, deve passar pela cruz, pois que os homens estão por todo o tempo erguendo cruzes pelas quais, ao crucificarem os seus irmãos, estão crucificando o próprio Deus. Resumindo, ser Filho consiste em despojar-se de si mesmo, porque o Pai se despojou (2ª leitura). Mas isto passa por uma libertação.
Quero dizer que Jesus teve de superar a sua vontade de viver, o seu desejo de não sofrer, para escolher e querer aquela atitude. O que não acontece por si mesmo. Ele teve de se ajustar a isso. E o Getsêmani mostra que para ele não foi tão mais fácil do que para nós.
Das trevas à luz
Na hora das trevas, só há uma coisa a fazer: «conservar o rosto impassível como pedra» (1ª leitura), quer dizer, «receber os golpes», deixar-se rolar como um seixo, num silêncio «mineral» («Jesus se calava»). Mas por trás desta espécie de passividade inabalável, uma certeza: «sei que não serei confundido».
O segredo confiado por Deus a este a quem «abriu-lhe os ouvidos» a fim de que se «deixasse instruir como um discípulo», é que, fazendo-se por sua Paixão semelhante a Deus, tornou-se realmente em tudo semelhante a Ele e, encontrando-O ali onde Ele está, recebeu o Nome que está acima de todo nome.
Marcel Domergue
http://www.ihu.unisinos.br