Festa da Anunciação do Senhor
25 de Março
Lucas 1,26-38
O anjo anuncia: a Vida virá até ti
Ermes Ronchi
A incarnação do Verbo é como uma semente lançada ao sulco do solo. A semente cai e leva para dentro da terra uma energia de vida. A terra à sua volta envolve-a e alimenta-a, cede-lhe os seus elementos químicos inertes, e a semente transforma-se numa dimensão superior: do frio escuro da terra extrai cor, perfume e sabor, que se manifestam na mais pequena flor ou na árvore secular (G. Vannucci).
A nossa fé começa por uma anunciação: um anjo afirma que o Omnipotente se faz criança, frémito no ventre de Maria, desejo de leite e carícias.
A anunciação é o ponto de êxtase da história humana, a fresta por onde entra a água de uma outra fonte, a abertura através da qual o divino se enxerta, como um ramo de oliveira no velho tronco, que reaprende a florir. Esse anúncio é uma fenda de luz pela qual a nossa história respira, abre as asas, levanta voo.
A primeira palavra do anjo a Maria, “chaire”, não é uma simples saudação; dentro dela vibra aquela coisa boa e rara que todos nós, todos os dias, procuramos: a alegria – “sê feliz”. Não exige: “reza, ajoelha-te, faz isto ou aquilo”. Mas simplesmente: abre-te à alegria, como uma porta se abre ao sol. Deus aproxima-se e cinge-te num abraço, Ele vem e traz uma promessa de felicidade.
A segunda palavra revela o porquê da alegria: és cheia de graça. Uma palavra nova, nunca antes soletrada na Bíblia ou nas sinagogas, literalmente inaudita, que faz tremer Maria: Deus inclinou-se sobre ti, enamorou-se de ti, deu-se a ti, e tu transbordas de Deus. O teu nome é: amada para sempre. Ternamente, livremente, sem arrependimentos, amada.
E anuncia que Deus escolhe um ventre de mulher, que entra na nossa corrente de santos e pecadores, nesta corrente grávida de lama e ouro; que se espalha por todas as veias do mundo, até aos últimos ramos da criação. Percebe-se que Maria fique sem palavras e que responda primeiro com o silêncio, e depois com uma pergunta: como é possível?
A vocação de Maria é a nossa própria vocação: todos somos chamados a ser mães de Jesus, a torná-lo vivo, presente, importante neste caminho, nesta casa, nas nossas relações.
O anjo Gabriel é novamente enviado a cada casa para anunciar a cada um: «Sê feliz, também tu és amado para sempre, a Vida virá até ti». Eu acredito num anjo que tem a semente de Deus na voz; acredito num Menino, do ventre de uma mulher, que é a história da ternura de Deus, imagem alta e pura do rosto do ser humano.
Ermes Ronchi, In “Avvenire” Trad. / edição: Rui Jorge Martins http://www.snpcultura.org 20.12.2014
Deixar o céu falar… e adorar
D. António Couto
O Evangelho neste dia proclamado (Lucas 1,26-38) é um tecido sublime, que as Igrejas do Ocidente conhecem por «Anunciação», e as do Oriente por «Evangelização». Do céu chega a Alegria incandescente a casa de Maria: «Alegra-te, Maria» [= «Chaîre Maria»; «Ave Maria»], «o Senhor está contigo» (Lc 1, 28), não tenhas medo» (Lc 1,30), diz a Maria o anjo enviado por Deus. Alguns anos mais tarde, as mulheres que vão ao túmulo de Jesus ouvirão também a mesma música divina: «Alegrai-vos» (Mt 28,9), «não tenhais medo» (Mt 28,5). E nós, Assembleia Santa que hoje se reúne para celebrar os mistérios do seu Senhor e também de Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, estamos também permanentemente a ouvir esta divina melodia. Portanto, irmãos amados em Cristo, Alegrai-vos, não tenhais medo, o Senhor está no meio de nós!
O centro da cena é de Maria, que podemos ver em alta sintonia com a Palavra de Alegria que lhe chega de Deus. Ao contrário da nossa muito ocidental maneira de ver e de sentir, note-se bem que Maria não esboça qualquer reação à presença do anjo, que tão-pouco é narrada. Ela fica perturbada é com a Palavra que lhe cai nos ouvidos e no coração (Lc 1,29). «Conceberá no ventre» o Filho de Deus (Lc 1,31-33). «Conceber no ventre» é um pleonasmo intencional só dito de Maria por duas vezes (Lc 1,31 e 2,21), claramente para a pôr em pura sintonia com o Deus do «ventre das misericórdias» (Lc 1,78). Note-se como, na sequência do texto, de Isabel só se diz que «concebeu» (Lc 1,36). Surge então a esperada objeção de Maria: «Como será isso, se não conheço homem?» (Lc 1,34). O anjo explica que essa conceção terá a ver com a intervenção de Deus, pois se trata do Filho de Deus (Lc 1,35). Já atrás Maria tinha sido apresentada como «virgem casada» (“parthénos emnêsteuménê”) (Lc 1,27). Não se trata de uma subtileza, mas de um estatuto jurídico em que as pessoas consagravam a Deus a sua virgindade e se dedicavam completamente a Deus. Casavam-se, não em ordem à procriação, mas à proteção mútua. Este estatuto jurídico, não sendo usual no mundo judaico do seu tempo, está, porém, solidamente documentado nos últimos séculos antes de Cristo e depois de Cristo.
Ultrapassada a objeção, Maria responde: «Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua Palavra» (Lc 1,38). Na Bíblia, apenas os grandes chamados (Moisés, Josué, David) são denominados «Servos do Senhor», sendo Maria a única mulher assim denominada. Deus chama, mas não impõe. A Maria, e a cada um de nós. Podemos sempre aceitar Deus ou esconder-nos de Deus. Deixar Deus entrar ou fechar-lhe a porta. Maria aceitou, e, por isso, todas as gerações a proclamarão bem-aventurada. É o que estamos hoje e aqui a fazer: Feliz és tu, Maria, pioneira de um mundo novo, porque acreditaste em tudo quanto te foi dito da parte do Senhor! Feliz também aquele que ouve a Palavra de Deus e a põe em prática!
Memorial desta beleza incandescente é a Basílica da Anunciação, em Nazaré. Esta grandiosa basílica, em três planos, foi inaugurada a 25 de março de 1969 e foi visitada, ainda as obras estavam em curso, em 1964, pelo Papa Paulo VI. Escavações feitas antes desta grandiosa construção puseram a descoberto, e podem ver-se ainda hoje, os majestosos pilares de uma catedral levantada em 1099 pelo príncipe cruzado Tancredo, bem como o pavimento em mosaico de uma igreja bizantina, que pode ser datada do ano 450. Mas, descendo mais fundo, até às entranhas da atual basílica, acede-se à Gruta da Anunciação, sob cujo altar se lê a inscrição “Verbum caro hic factum est” [«Aqui o Verbo se fez carne»], e a outros lugares de culto antigos, talvez já do século II. Numa grafite antiga foi encontrada a gravação XE MAPIA, abreviação de Chaîre Maria, a primeira Ave-Maria da história.
António Couto, bispo de Lamego