5° Domingo da Quaresma (ciclo A)
João 11,1-45
Referências bíblicas
- 1ª leitura: “Porei em vós o meu espírito e vivereis” (Ez 37,12-14)
- Salmo: Sl.129(130) – R/ No Senhor, toda graça e redenção!
- 2ª leitura: “O Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos mora em vós” (Rm 8,8-11)
- Evangelho: “Eu sou a ressurreição e a vida” (João 11,1-45)
Viver segundo o Espírito
Queridos irmãs e irmãos,
Na Carta de S. Paulo que hoje nós lemos ele fala de dois princípios que servem de bússola para a nossa vida. Muito na linguagem paulina nós temos de um lado a lei da carne, o caminho da carne, o princípio da carne e o princípio do espírito.
S. Paulo desafia os cristãos, os da sua comunidade e os de cada tempo, a viverem segundo a lei do espírito. Isto é, desobedecendo à lei da morte que se insinua em nós, desobedecendo à escravidão, à dependência que limita a nossa liberdade e atrofia a nossa vida; e estimula-nos, inspira-nos para acolhermos uma vida segundo o espírito. Isto é, uma vida em que, a cada momento, nós estamos conscientes de que somos filhos e filhos amados de Deus, que somos cuidados e encaminhados pela Sua misericórdia, que somos divinizados pelo Seu amor. E por isso, a nossa vida tem de ter o sentido, tem de ter a expressão desta vida divina aqui na terra. Viver segundo o Espírito é viver nesta relação permanente com Deus, nesta consciência a cada momento de que estamos perante Ele, perante o Seu amor.
Por isso, as pequenas coisas da vida não são pequenas, são o nosso modo de relação, são a oportunidade, a oportunidade de uma relação. Viver segundo o Espírito é considerar sagrado cada momento, é considerar uma grande oportunidade tudo aquilo que nos é dado, mesmo aquilo que a gente não espera ou aquilo que a gente não quer mas que está para ser vivido. Aceitar isso como oportunidade, como lugar de encontro, como via, como estrada, como caminho que nos conduz até Deus e viver isso segundo o Espírito. Isto é, numa atitude profunda, filial, de confiança. Como um filho pequenino se abandona no colo da mãe, no abraço do pai, nós somos chamados a viver essa entrega da nossa vida, essa confiança, repetindo continuamente: “Eu sou Teu. Eu quero ir para Ti. Ajuda-me a permanecer em Ti.” Libertar-se de um princípio da carne que é uma vida autocentrada, uma vida muito egoísta, uma vida à procura do próprio prazer, à procura daquilo que é o nosso eu para viver uma vida segundo o Espírito, experimentando essa liberdade, essa confiança, essa certeza do amor de Deus e sermos capazes de experimentar o desprendimento. Desprendimento de tudo aquilo que nos aprisiona, de tudo aquilo que nos prende.
A Quaresma é uma máquina de produzir desprendimento, de produzir desapego, é uma máquina de fazer liberdade, de fazer mulheres e homens livres que na oração, no jejum e na esmola encontram formas de se libertar, de pensar no outro, de sentir que a nossa vida é maior do que aquilo que nós somos capazes de construir, que a nossa vida não está apenas ao nosso serviço mas que é um caminho que tem de transbordar. É uma fonte, é uma cisterna que tem de espalhar vida em redor de si. Viver segundo a carne ou viver segundo o Espírito? O que é que nós verdadeiramente vivemos? O que é que estamos dispostos a viver?
Neste tempo da Quaresma, nós estamos já no quinto domingo da Quaresma, entramos na última semana. E a última pode ser a primeira. Não é mal nenhum, a última pode ser a primeira, podemos começar agora, o importante é que experimentemos este viver segundo o Espírito que é viver na escuta, viver na atenção, viver na paz, viver na generosidade, viver na mansidão, viver na reconciliação, viver no amor – este deixar-nos habitar pelo Espírito. Nós precisamos espiritualizar muito a nossa vida porque a nossa vida vive muito escravizada por aquilo que temos a fazer, pela pressão do dia a dia, pela nossa agenda, pelos acontecimentos, que muitas vezes são uma necessidade e outras vezes são uma desculpa para não estarmos em nós mesmos, para não estarmos diante de Deus. É importante parar, é importante colocarmo-nos a verdade de certas perguntas como esta que a partir de S. Paulo nos é feita: como é que tens vivido? Mais na linha do Espírito ou mais na linha da carne, mais na linha do mundo, mais na linha da tua autossuficiência e do prazer do teu eu? Tens vivido esse desapego? Tens-te deixado conduzir pelo Espírito Santo nas grandes e nas pequenas decisões da tua vida? Deus é o construtor da cidade onde tu habitas? Ou não pensamos nisso? Ou isso não é uma coisa que entra nos nossos cálculos, nas nossas discussões interiores?
A palavra que hoje nos é dita, primeiro em forma de promessa e depois em forma de realidade, é que Deus está disposto a tudo para vir ao nosso encontro. E cada um de nós tem de sentir isso. Deus está disposto a tudo para me manifestar o Seu amor. E por isso nós ouvíamos a palavra do profeta Ezequiel: “Eu vos farei ressuscitar dos vossos túmulos.”
O túmulo parece o lugar do irreversível, onde já não há nada a fazer. Lázaro estava morto há quatro dias, já cheirava mal. Muitas vezes na nossa vida há coisas que já cheiram mal, coisas que parece que já não há nada a fazer, já é mesmo assim, só se pode suportar, só se pode aceitar. E contudo, o amor de Deus diz-nos: “Não aceites o irreversível, não aceites a fatalidade da morte, da pequena morte que se insinua dentro da nossa vida, não aceites, não aceites, acredita na força da promessa: “Eu vos retirarei dos vossos túmulos.”
No Evangelho de S. João temos esta cena da ressurreição de Lázaro, está muito bem contada. Aí nós vemos a amizade de Jesus, vemos como Ele Se emociona profundamente, como Ele chora. Vemos profundamente a humanidade de Jesus em cena. Mas, quando Jesus ressuscita aquele homem, aquele amigo chamado Lázaro, o que é que Jesus diz? O que é que Ele nos ensina a ver? O que é que Ele nos leva, nos conduz a acreditar? Ele diz-nos: a morte não é a última palavra sobre o destino humano. Nós temos de atirar o nosso coração para mais longe, temos de atirar o nosso olhar para o infinito. A morte não é a irreversibilidade. Jesus desfaz o irreversível, Jesus desfataliza a nossa história, reabre o nosso assunto. Jesus diz: “Não, isto não é um assunto arrumado.” Vamos reabrir – reabre o processo da nossa vida no sentido da esperança, não para nos julgar mas para nos reanimar, para nos revitalizar, para nos dar uma outra vida no Espírito.
Queridos irmãs e irmãos, confrontemo-nos, cada um de nós, com estes textos – o profeta Ezequiel: “Eu vos farei ressuscitar dos vossos túmulos.”, S. Paulo: “Vivei, não segundo a lei da carne mas segundo a vida do Espírito.” E o que é isso viver segundo o Espírito? Jesus que disse a Lázaro e diz a cada um de nós, manietados tantas vezes pelas nossas mortes, numa vida que tantas vezes já cheira mal disto ou daquele assunto: “Sai para fora, sai para fora.” E tira as ligaduras que nos prendem e devolve-nos à vida. Isto é aquilo que Jesus está disposto a fazer na vida de cada um de nós. Deixemo-nos trabalhar pelo Espírito Santo na vida.
Um cristão é uma criação de Deus, é uma criação do Espírito. É verdade que há muito esforço nosso, há muito compromisso, há muita vontade, há sacrifício da nossa parte, há dádiva, há sonho, há utopia, há desejo profundo de ser. Mas, ao mesmo tempo, sentirmos que esta vida nova em nós é um dom, é um dom que Ele nos dá à partida, que não tem a ver com merecer isto ou merecer aquilo. Ele dá-te o dom. Nós somos filhas e filhos deste dom, somos recriados, transformados por este dom, reinventados pelo Espírito. Desobedeçamos, rebelemo-nos de uma vida que seja apenas um conformismo, uma fatalidade, um “não vejo como possa ser de outra forma”. E sintamos que há uma possibilidade, que há este desejo de Deus, esta fantasia de Deus que é capaz de recriar a mulher e o homem que eu sou, que é capaz de me tornar, eu que sou homem velho, numa nova criatura. Sintamos por isso as mãos de Deus, que moldam silenciosamente a nossa vida e abandonemo-nos com confiança a esse trabalho. Que esta última semana da Quaresma seja para nós um reacordar, seja para nós um entregarmo-nos, seja para nós um exercitar da própria confiança deste Deus que nos conduz pelo caminho do Espírito e nos reveste do Seu Espírito Santo.
José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org
O túmulo é um berço
Raymond Gravel
Terceiro escrutínio: a ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-45)
Hoje termina a série de três evangelhos de São João que tratam do batismo cristão: após a água viva da samaritana e a luz do cego de nascença, vem agora o renascimento, a ressurreição de Lázaro, que significa em hebraico Deus ajuda. Nesse relato, Lázaro morre, ou melhor, adormece na morte para acordar, ressuscitar. O batismo faz passar: Páscoa = Passagem da morte para uma vida nova no Cristo ressuscitado. Nesse relato que se encontra apenas em João, há belas mensagens para os cristãos de todos os tempos.
1. A morte = um drama
A morte sempre foi e sempre será um momento difícil de passar. Quando se perde um ente querido, nos sentimos impotentes, feridos, chocados e muitas vezes privados. No relato que São João nos conta, todos os personagens provam esses sentimentos: Jesus, Marta, Maria e os judeus.
Jesus. “Quando Jesus ouviu que Lázaro estava doente, ficou ainda dois no lugar onde estava” (Jo 11,6). Por quê? Simplesmente porque Jesus não pode fazer nada contra a sequência natural da vida humana que termina necessariamente com a morte. Foi agradável provar o amor para com seu amigo Lázaro: “Senhor, aquele a quem amas está doente” (Jo 11,3). A doença, o sofrimento e a morte fazem parte da nossa realidade humana que devemos assumir. Por outro lado, João já deixa entrever que a doença e a morte não têm a última palavra sobre a vida: Jesus ficou dois dias no lugar, isto é, o tempo para ressuscitar, segundo o profeta Oseias. Também o Jesus de João é muito humano diante da morte; ele prova os mesmos sentimentos que nós: “Jesus viu que Maria e os judeus que iam com ela choravam. Então ele se comoveu interiormente e ficou conturbado” (Jo 11,33). “Jesus começou a chorar” (Jo 11,35).
Marta. “Então Marta disse a Jesus: ‘Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido’” (Jo 11,21). Esta é a reprovação que ousamos fazer quando a morte sobrevém: por que isso acontece? É injusto partir tão jovem! Se Deus existisse verdadeiramente não deixaria morrer uma criança! Aqui, Marta nos apresenta todos esses momentos de dúvida, de inquietude e de desespero diante da morte.
Maria. “Indo para o lugar onde estava Jesus, quando o viu, caiu de joelhos diante dele e disse-lhe: ‘Senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido’” (Jo 11,32). Ela também está chocada com a situação, mas ela expressa sua impotência e sua decepção pelos que estão chorando (Jo 11,33).
Os judeus. João nos diz que os judeus também choravam (Jo 11,33), por solidariedade para com Maria, a irmã de Lázaro. Mas, em seguida, alguns expressam reprovações: “Alguns deles, porém, diziam: ‘Este, que abriu os olhos ao cego, não podia também ter feito com que Lázaro não morresse?’” (Jo 11,37)
2. A morte = uma esperança
Para João que escreve seu evangelho aos cristãos muitos anos após a Páscoa, a morte não pode passar de um momento difícil, uma passagem, um sono: “‘O nosso amigo Lázaro dorme. Mas eu vou acordá-lo’” (Jo 11,11). Além disso, a morte não pode ter a última palavra sobre a vida: “Jesus disse a Marta: ‘Teu irmão ressuscitará’” (Jo 11,23. E mais ainda: “Então Jesus disse: ‘Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá’” (Jo 11,25). Para João, o que aconteceu com Jesus, acontece também conosco. Por causa dele, a ressurreição nos é prometida; ela torna-se a nossa realidade cristã.
3. A morte = um renascimento
O francês Henri Meunier disse que quando perdemos um ente querido, acontece com todos nós de perguntar: de que serve vir ao mundo se é para morrer? E, em sua reflexão, ele responde: se nascemos para morrer é porque morremos para renascer. Não é este o sentido da ressurreição no evangelho de João? “Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas se morre, produz muitos frutos” (Jo 12,24). Ressuscitar ou renascer não é voltar a ser o que se era antes; é tornar-se como depois… é tornar-se de outra maneira. Isso explica a recusa de Jesus de ficar na cabeceira do seu amigo Lázaro que está doente, como se preferisse vê-lo morto em vez de curá-lo. A este respeito, o exegeta francês Jean Debruynne escreve: “Se refletimos sobre isso, ser curado é ser novamente o que éramos antes da doença. Ora, a morte e a ressurreição de Jesus não querem nos fazer como antes, mas ao contrário, como depois”. E acrescenta: “Jesus não é um restaurador de quadros ou um consertador de porcelana e ele não recolhe os pedaços; ele faz nascer, ele cria um novo dia, ele inventa uma nova vida”.
4. A ressurreição – uma vida nova livre e responsável
Ressuscitar ou renascer não é somente sair da morte; é sair livre: “O morto saiu, atado de mãos e pés com os lençóis mortuários e o rosto coberto com um pano. Então Jesus lhes disse: ‘Desatai-o’” (Jo 11,44a), e capaz de caminhar, portanto, responsável: “‘deixai-o caminhar’” (Jo 11,44b). Jean Debruynne escreve: “Não se trata somente de ressuscitar as aparências: a ressurreição inventa realmente uma vida nova que é livre e responsável quando é capaz de caminhar sozinho”. E é para esta vida nova livre e responsável que Cristo nos convida, através de Marta, a expressar a nossa fé: “‘E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais. Crês isto?’” (Jo 11,26). Qual será a nossa resposta? “Marta respondeu: “‘Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Messias, o Filho de Deus, que devia vir ao mundo’” (Jo 11,27). E podemos continuar a frase do evangelho, dizendo: aquele que vem ao mundo para nos dar a vida. O que supõe, segundo Jean Debruynne: “É hora de ressuscitar nossos irmãos. É urgente chamá-los para se levantarem, saírem dos seus túmulos, da prisão da sua existência e da morte em vida. Mas isso não bastará! Será preciso ainda abrir para a liberdade e para o gosto de caminhar. A ressurreição de Jesus não é uma esmola, nem uma piedade; é uma nova manhã, é ter uma vida pela frente”.
Para terminar, o evangelho desse terceiro escrutínio nos mostra um Jesus que é, ao mesmo tempo, humano e divino: humano em seu encontro com Maria, e divino no seu encontro com Marta. Os dois são inseparáveis; os dois nos dizem o que nos tornamos desde a primeira manhã da Páscoa: “Ela, porém, deu o poder de se tornarem filhos de Deus a todos aqueles que a receberem, isto é, àqueles que acreditam no seu nome” (Jo 1,12). E mais ainda: “Estes não nasceram do sangue, nem do impulso da carne, nem do desejo do homem, mas nasceram de Deus” (Jo 1,13). Que grandeza e que dignidade possuímos no Cristo ressuscitado!