4° Domingo da Quaresma (ciclo A)
João 9,1-41

Referências bíblicas:

  • 1ª leitura: 1 Samuel 16,1.6-7.10-13
  • 2ª leitura: Efésios 5,8-14
  • Evangelho: João 9,1-41 ou 9,1.6-9.13-17.34-38

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O que é receber a luz, o que é passar a ver?
É ganhar uma nova visão das coisas

Estes domingos, estes três domingos do meio da Quaresma, nós lemos o Evangelho de São João. Evangelhos desde a antiguidade cristã, destinados a explicar aos catecúmenos e a lembrar aos batizados, o significado do seu batismo.

Domingo passado tivemos a explicação do símbolo da água, com o Evangelho da Samaritana.

Este domingo, temos a explicação do símbolo da luz, com a cura do cego de nascença. No próximo domingo, teremos a explicação do símbolo da vida com a ressurreição de Lázaro.

São assim, três grandes símbolos: a água, a luz, a vida que explicam aquilo que é o impacto do dom de Jesus na vida de cada um de nós. Nós precisamos da Luz. Nós precisamos da Luz.

É interessante a situação que o Evangelho de São João nos relata, com a cura deste cego de nascença: há a cura do cego e há depois uma querela jurídica para saber se Jesus tinha ou não legitimidade, para fazer aquele sinal. E depois há o reencontro, o segundo encontro de Jesus com o cego.

O que é que nós vemos nas duas primeira partes, na cura do cego e na querela jurídica que se lhe segue? O cego tem consciência que é cego. Isto é, tem consciência da sua carência, da sua necessidade, da sua real situação.

Aqueles que promovem a querela em torno à cura e à legitimidade de Jesus curar ou não em dia de sábado, veem e não veem ao mesmo tempo, mas não têm consciência da sua cegueira.

E, no fundo, este é o ponto primeiro que o relato evangélico nos coloca:

Será que nós temos consciência da necessidade de Jesus? Será que nós estamos conscientes de quanto precisamos Dele?

Porque às vezes o nosso problema, e foi esse o problema dos fariseus, é perdermo-nos numa autojustificação. Isto é, nós temos explicação para tudo, sabemos tudo, percebemos tudo, vemos tudo, e nesta soberba, Deus não entra no nosso coração porque o nosso coração é pedra, o nosso coração é porta blindada, o nosso coração é um fecho de correr.

Só quando estamos conscientes da nossa fragilidade, e da nossa fraqueza, só quando percebemos até ao fim e até ao fundo, quanto carentes estamos do perdão, da misericórdia e da ternura de Deus é que, de facto, essa misericórdia é derramada nos nossos corações.

Ganhar consciência de que precisamos de ser tocados por Jesus, ser lavados no seu sangue, na água batismal, ser iluminados pela sua luz.

O que é receber a luz, o que é passar a ver? É ganhar uma nova visão das coisas.

Os Evangelhos têm muitas curas a cegos. E essas curas têm um papel simbólico muito importante. Porque a cegueira tem a ver com a nossa maneira de viver. Às vezes nós estamos cegos mas não temos consciência disso. Achamos que continuamos a ver. É uma imagem que já Platão utiliza na Alegoria da Caverna, i.e., nós pensamos que vemos, mas afinal estamos reféns das imagens e dos fantasmas.

Precisamos de ganhar uma nova visão. E essa nova visão, esse novo entendimento, essa nova maneira de compreender as coisas, é a luz que Cristo nos dá.

O Evangelho de São João tem uma particularidade em relação aos outros 3 Evangelhos.

É que, enquanto os outros três foram escritos para pessoas que ouviam pela primeira vez falar de Jesus, digamos, são os Evangelhos do primeiro anúncio, pensa-se que o Evangelho de São João foi escrito para pessoas que já eram cristãs e por isso não se tratava de aprender o b-a-ba sobre Jesus, o início, mas trata-se sim de um segundo encontro, de um aprofundamento da própria fé.

E, por isso, é muito interessante que no Evangelho de São João, as personagens não aparecem uma só vez, aparecem várias vezes, duas ou três vezes. Por exemplo, o Evangelho da Samaritana, ela aparece-nos a falar com Jesus mas depois aparece-nos a falar com as pessoas da sua terra. No Evangelho de Nicodemos, ele aparece-nos à noite a falar com Jesus mas depois aparece-nos com José de Arimateia a perfumar o corpo de Jesus e a sepultar Jesus.

As personagens não aparecem uma vez só, aparecem uma segunda e uma terceira vez.

Também assim com o cego. Ele era mendigo, era cego, foi curado.

Foi curado, mas acreditava que tinha sido um profeta. Não que era o Messias de Deus que o tinha curado. E então, depois daquela querela toda, Jesus encontra-o pela segunda vez.

E diz-lhe: “Acreditas no Filho do Homem?”

E ele pergunta: “Quem é Senhor, ainda não o vi”. Quer dizer, a cura não é apenas a cura da cegueira, é a cura é de uma cegueira espiritual.

E Jesus diz uma coisa absolutamente comovente, conjugada no verbo presente: “É este que fala agora contigo”. E o homem cai de joelhos, e diz: “ Senhor, eu creio”.

Queridos irmãos,

Nós estamos a viver o Tempo da Quaresma, nós já somos cristãos há um ano, há cinquenta anos, há mais ou menos tempo. Hoje temos aqui três irmãos nossos catecúmenos que se estão a preparar para receber o batismo no tempo pascal.

O que é verdadeiramente para nós o segundo encontro com Jesus?

O segundo encontro com Jesus é recebermos a luz de uma maneira nova.

A Quaresma tem que ser um sobressalto. Tem de nos tornar mais cristãos, melhores cristãos. Tem de nos dar uma compreensão mais lata do mistério de Cristo e do mistério do próprio homem e do mistério da vida. Com Cristo aprendemos uma nova gramática, um novo dicionário, um novo léxico da própria realidade.

Se antes da Quaresma pensávamos uma coisa, ao chegar à Pascoa o nosso olhar tem que estar lavado. Em Itália, há uma tradição muito bonita, no Véneto, que é na manhã de Páscoa as pessoas vão ao rio lavar os olhos. E nós estamos aqui a lavar os nossos olhos, com esta palavra. Isto é, a lavar o nosso entendimento. A receber esta luz que é o próprio Cristo.

E receber a luz, implica muitas vezes, ver as coisas de uma forma completamente diferente.

Por exemplo, a 1ª leitura, a escolha de David como rei. Este homem, Jessé, tinha doze filhos e naturalmente o que podia ser rei era o mais velho, e no impedimento do mais velho, o filho segundo. Mas Deus vai escolher aquele que nem está em casa. Vai escolher o mais novo, aquele que, do ponto de vista jurídico, não tem direito algum. E Deus vai escolher o mais improvável, que é aquele rapaz chamado David. Deus escolhe o mais improvável, o mais pequenino, aquele que não se espera, o que não está legislado, o que nos surpreende, que não tem a ver com o nosso ponto de vista. Deus escolhe. Deus escolhe fora do nosso baralho e para lá das nossas contas.

E receber a luz de Cristo é nos abrirmos a um novo entendimento. No fundo, nos abrimos às surpresas de Deus. Ao desconcerto do modo como ele atua. À liberdade de Deus ser Deus em nós. À sua vontade que é sempre nova. Nos abrirmos. Nos abrirmos.

Que hoje nos sintamos como o homem cego. Este homem o qual Jesus tem misericórdia e cura, a quem lava os olhos, e a quem diz uma palavra. A quem encontra uma vez e uma outra vez. Uma segunda oportunidade, para lhe dizer: “Acreditas no Filho de Deus?”. Ele é aquele que está a falar connosco neste momento. O que Jesus diz ao cego, diz a cada um de nós : “Sou eu que estou a falar contigo, agora, agora”.

Homilia do Pe. Tolentino Mendonça, na Capela do Rato, a 30 de março de 2014

José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org


EU SOU A LUZ
Marcel Domergue

O cego de nascença

“Outrora éreis trevas”, diz Paulo no início da segunda leitura. Fala de si mesmo também, uma vez que descobriu a sua própria cegueira no caminho de Damasco. O curioso é que esta perda da visão foi também a sua cura. Paulo, antes disso, acreditava de fato ver tudo muito claro. Achava possuir a verdade sobre o Cristo e os seus discípulos. Mas agora vê que, antes, não enxergava nada. É o que diz Jesus aos fariseus, na conclusão do evangelho: “Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis ‘nós vemos’, o vosso pecado permanece”. Todos nós somos cegos de nascença, sem que esta cegueira possa ser atribuída a qualquer pecado que ou nós ou nossos pais tenhamos cometido (versículo 2). Isto nos obriga a nuançar o que habitualmente chamamos de «pecado original». Só podemos alcançar a verdade de nós mesmos, do mundo e, ainda mais além, a verdade de Deus, através da abertura para este Outro que está aqui, ao alcance de nossas mãos de cegos, presente em todos os outros. Temos de aprender que não nos bastamos a nós mesmos, que só por uma relação verdadeira é que existimos, recebendo-nos de algum outro. É assim que nos fazemos imagens (e ‘imagem’ quer dizer visibilidade) de Deus que, como diz santo Tomás de Aquino, é “relações subsistentes”. É outro modo de dizer que, se recusamos enxergar os outros, não vemos nada.

Abrir os olhos

Seria tarefa tremenda, se tivéssemos de chegar à visão através de nossas próprias forças. E tarefa destinada ao fracasso, uma vez que o esforço para ver com clareza não nos deixaria sair do nosso isolamento. Na realidade, a luz nos vem de fora, deste outro que encontramos em nosso caminho. Tomemos consciência disto: não compliquemos demais a vida, já que basta abrirmo-nos a nós mesmos para que possamos receber: a nossa criação só vai achar espaço quando viermos a ocupar apenas uma ausência, um vazio a ser preenchido. Não podemos ser nada além do que não seja aquiescência à obra de Deus que vem nos fazer surgir do nada. Esta tomada de consciência já é uma saída da cegueira. Nascer e abrir os olhos são fatos que andam juntos. No evangelho, os fariseus se tornam cegos por não reconhecerem a visita do Filho de Deus em sua humanidade. Assim, em razão de uma escolha mais ou menos deliberada da nossa parte, a irrupção do Cristo em nossas vidas pode nos afundar nas trevas: «Era a luz verdadeira que ilumina todo homem; veio ao mundo (…), mas o mundo não o reconheceu. Veio para os seus e os seus não o receberam » (João 1,9-11). Esta recusa encontrará sua expressão última na hora em que «houve treva em toda a terra» (Mateus 27,45). Mas, aí também, as trevas só se apoderam do mundo para apagar as falsas luzes que nos seduzem. Cria-se, assim, um lugar perfeito para uma nova luz, a luz da Ressurreição.

Rumo à plena visão

Olhando mais de perto, o relato da cura do cego de nascença nos faz descobrir um dos aspectos da criação e do que chamamos de redenção, em outras palavras, a totalidade da obra de Deus em nosso favor. Notemos que o cego ainda não tinha visto Jesus, até mesmo pouco após a sua cura (ver o versículo 12). Por isso, foi preciso esperar um segundo encontro. O cego não havia pedido nada a Jesus e o milagre não foi atribuído à fé deste homem, ao contrário de tantos outros casos nos evangelhos. Ficou, assim, posta em evidência a gratuidade da ação de Deus: não tivemos de fazer nada, para virmos à existência; nada podemos fazer para virmos à luz e existirmos, na verdade. Só o que podemos fazer é receber. No entanto, se esta verdade está na relação, no intercâmbio, no diálogo, um encontro entre quem dá e quem recebe se faz necessário. Daí a visita de Jesus a este homem que, dali em diante, será um solitário, pois acaba de ser banido da comunidade. «Acreditas no Filho do homem?», pergunta-lhe Jesus. O filho é quem é gerado por uma mulher e um homem; já com maiúscula, é o resultado perfeito da humanidade, ali onde o Filho do homem encontra o Filho de Deus. Crer nele é sair da finitude e da cegueira. «Quem é ele?», pergunta o cego já curado. «Tu o estás vendo», responde Jesus, pois agora o homem vê. «É aquele que está falando contigo». Ver, ouvir e, a partir daí, crer. É neste rumo que caminhamos, ainda que, por enquanto, só possamos ver de modo confuso, como num espelho defeituoso (1 Coríntios 13,12).

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