3° Domingo da Quaresma (ciclo A)
João  4,5-42

Referências bíblicas

1ª leitura: “Ferirás a pedra e dela sairá água para o povo beber” (Êxodo 17,3-7)

Salmo: Sl. 94(95) – R/ Hoje, não fecheis o vosso coração, mas ouvi a voz do Senhor!

2ª leitura: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,1-2.5-8)

Evangelho: “Uma fonte de água que jorra para a vida eterna” (João 4,5-42 ou 5-15.19-26.39-42)


João 4

O conhecimento de Jesus

Queridos irmãs e irmãos,
É muito interessante a forma como o Evangelho de S. João está construído porque é o evangelho dos diálogos. Como em nenhum outro evangelho Jesus dispõe-se a conversar. A conversar com aqueles que o procuram e com outras personagens que o próprio Jesus toma a iniciativa de encontrar, como é o caso desta mulher samaritana.

Isto compreende-se porque as mulheres não podiam procurar os mestres, só os homens tinham uma educação religiosa. Por isso, enquanto nós vemos, por exemplo, Nicodemos a procurar Jesus, é Jesus que tem de procurar a mulher samaritana, a iniciativa é Dele. Porque Jesus está disposto a franquear as fronteiras, a franquear os muros, a ir à procura da ovelha perdida, daquela que está mais distante.

Jesus conversa no Evangelho de S. João. Isto é uma imagem que, se calhar, nós não temos habitualmente de Jesus, mas é uma imagem existencial, mas é uma imagem que nós próprios vamos tateando dentro de nós. Porque, no fundo, o que é que é a nossa fé? A nossa fé é uma conversa longa que estamos a ter há vários anos, há muitos ou há poucos, mas que estamos a ter com Jesus. Um diálogo. Um diálogo saboroso como é este, um diálogo também de mal entendidos, como é este, um diálogo em que não se percebe logo à partida tudo, um diálogo que é progressivo e um diálogo que nos dá a conhecer Jesus. E, conhecendo Jesus, com esse conhecimento nós somos capazes de olhar para a vida de outra forma.

Por isso, é muito importante sentirmos que nos diálogos da nossa vida, tal como nos diálogos do Evangelho, o ponto principal é o conhecimento de Jesus. Que conhecimento é que nós temos de Jesus? Porque, porventura, precisamos de descobri-Lo de outra forma. Precisamos que o nosso conhecimento se torne um conhecimento efetivo e afetivo para que depois a nossa vida possa ser vista com outros olhos, com outra disponibilidade e com outra esperança.

É interessante que neste diálogo de mal entendidos vão atirando assim umas coisas como quem não quer. No fundo, às vezes parece que a conversa da samaritana é mais um desconversar. “Mas como é que Tu, sendo judeu, vens falar comigo? Tu dizes que tens aí a água e ofereces a água mas eu não te vejo com balde nem com corda. Como é que vais buscar essa água se o poço é fundo?” É assim um desconversar. Mas, quando Jesus Se vai manifestando, quando Jesus lhe diz “Se tu conhecesses o dom de Deus eras tu que pedirias de beber”, aos poucos, no coração daquela mulher há uma viragem que vai acontecer. Quando ela diz “Eu sei que há de vir um Messias” e Jesus diz “Sou Eu”, não “Sou Eu” em abstrato, “Sou Eu que estou a falar contigo.” Então, “Eu sou o Messias nesta relação, não sou o Messias dogmaticamente, Eu sou o Messias no encontro pessoal que tenho contigo. Eu sou o Salvador, sou Aquele que resgata a tua vida.” Quando a mulher descobre isto no fundo do seu coração, a sua vida transforma-se. Aquilo que eram obstáculos, impossibilidades, tornam-se coisas que são uma oportunidade para o grande encontro, são uma oportunidade para ela ser salva por Jesus, pelo conhecimento de Jesus.

S. Paulo, na Carta aos Romanos, diz-nos isso: “Vede o amor com que Deus nos amou dando-nos o Seu Filho, e um Filho que dá a vida por nós.” Não porque nós somos santos, não porque nós somos os melhores, somos os qualificados eticamente, somos aqueles que vão à frente do pelotão. Deus sabe, Deus sabe como nos arrastamos, Deus sabe a nossa dificuldade, Deus sabe os nossos obstáculos, Deus sabe aquilo que nos forma por dentro. Mas, S. Paulo lembra, por um santo, por um homem justo é normal que se dê a vida, mas por um pecador, por alguém que não merece… Ora, nisto vemos o amor com que Deus nos amou. Jesus ofereceu por nós Sua vida quando éramos pecadores. É esta palavra a que nos temos de agarrar. Que amor é este que se oferece inteiramente a nós quando somos pecadores? Não para premiar o nosso mérito, mas para estimular a nossa fraca esperança; não para nos arrancar do caminho percorrido mas para nos arrancar do caminho que não começa, que resiste a começar dentro de nós; não para dizer “Tu, de facto, cumpriste”, mas para dizer “Tu não cumpriste, tu não fizeste, tu ainda não deste o primeiro passo mas eu amo-te, eu amo-te, eu dou inteiramente a minha vida por ti.”

É este conhecimento de Deus, é este conhecimento de Jesus que mobiliza a nossa vida, que transforma a nossa vida. Por isso, o tempo da Quaresma é um tempo de reencontro com Jesus, é um tempo para aprofundarmos o nosso conhecimento, a nossa relação, não é apenas nós próprios estarmos com os nossos pontos de esforço, estarmos a modificar, a converter a nossa vida por nós próprios, não é disso que se trata. Trata-se de ampliar o conhecimento que temos de Jesus. Quem é este Jesus? No encontro com Ele como é que eu O escuto, como é que eu O descubro? Como é que eu recebo Dele a água viva? A água que desperta todo o meu ser, a água que me liberta da escravidão do meu ser, a água que me liberta da escravidão dos poços, a água que me dá a fecundidade interior, que me dá a liberdade, que me dá a esperança. Como é que eu me construo no diálogo com o próprio Jesus? Porque, o conhecimento de Jesus, o conhecimento do Seu amor é a pedra fundamental.

Por isso, queridos irmãs e irmãos, sintamos o grande desafio de na oração, na leitura da Palavra de Deus, na meditação, nos tempos de silêncio, de recolhimento da nossa vida, na Eucaristia ao longo desta Quaresma nós nos centrarmos na figura de Jesus. Porque, é quando nós descobrimos quem é Jesus que a nossa vida muda e muda para sempre. Não muda porque lhe damos uns retoques e fazemos umas práticas ascéticas que nos tornam um bocadinho mais aceitáveis, não é disso que se trata. Mas trata-se de receber o Espírito dentro de si, de receber o Espírito do Ressuscitado que nos transforma. “Eu Sou o Messias, Aquele que está a falar contigo.” Ele está a falar connosco, está a falar com cada um de nós, sintamos isso. E sintamos aquilo que os samaritanos dizem à mulher samaritana: “Antes nós acreditámos porque tu nos contaste do episódio da tua vida, agora nós acreditamos porque nós próprios vimos e sabemos que Ele é o Salvador do mundo.” Nós precisamos de ver e saber e reconhecer que Jesus é o Salvador, mas isso tem de passar por uma experiência interior, por uma experiência de relação, por uma experiência de fé que é sem dúvida o ponto mais essencial.

Hoje, o livro do Êxodo dá-nos uma imagem e, de facto, as imagens valem por mil palavras. É uma imagem de esperança, é uma imagem de confiança para nós que somos o Povo que caminha, para nós que vivemos tão tentados, tão ameaçados, tão expostos ao vento, tão expostos à sede, à tentação. Aquela imagem é uma imagem de força, porque, quando o Povo reclama e diz “Trouxeste-nos aqui para nos fazer morrer à míngua” Deus dá aquela vara a Moisés e Moisés toca na rocha e a rocha torna-se uma nascente. Isto é, a pedra que é o lugar mais seco, que é o lugar sem nada. Moisés toca com a vara de Deus na rocha e a rocha torna-se nascente. Esta é uma imagem de esperança para nós. Porque, se calhar o que trazemos dentro do peito é uma pedra, se calhar o que sentimos que é a nossa vida neste momento é uma rocha, se calhar aquilo que sentimos é uma sede. E é interessante que todos os personagens têm sede, o povo no deserto tem sede, Jesus tem sede, a samaritana tem sede, todos têm sede. Quer dizer, é a história da nossa vida, todos somos sedentos, todos temos sede, necessidades, estamos a caminho, estamos na luta pela sobrevivência.

Deus transforma a rocha, o obstáculo. Deus transforma o lugar onde é fácil cair, onde é fácil a esperança soçobrar numa nascente. O que é que salta desta imagem? Salta água fresca, mas salta sobretudo a confiança – nós podemos confiar, nós podemos confiar. E esta credibilidade de Deus que Jesus revela é que é a âncora das nossas vidas.

Queridos irmãs e irmãos, nós estamos num tempo de retiro, num tempo de manobras, num tempo para sacudir tapetes, para limpar as coisas dentro de nós, para vencer o inverno dentro de nós, para fazer irromper o verde da primavera dentro de nós. É um tempo de trabalhos interiores, é um tempo para dar-se luta, para apertar-nos, para dizer: vai, acredita, recomeça. Não te instales, não digas: ”Não consegui viver estas três semanas, acabou. A Quaresma já acabou, foi um fiasco”. Não, começa, é hoje o primeiro dia, é hoje o teu primeiro dia. Mas, que no centro desta experiência quaresmal, desta experiência penitencial esteja de facto o diálogo com Jesus, o encontro, a escuta de Jesus. Ele que vem ter connosco, Ele que se mete com a nossa vida, Ele que diz: “Tenho sede”.

Jesus tem sede de quê? Tem sede da nossa vida, tem sede da nossa esperança, tem sede dos nossos sonhos realizados, tem sede da nossa autenticidade, tem sede da nossa verdade, tem sede da nossa dádiva, tem sede do nosso dom, da nossa entrega, tem sede da superação de nós mesmos, do nosso egoísmo, tem sede da capacidade de servir, da amplitude de ser que está dentro de nós. Ele tem sede disso e Ele não desiste de nós. Nós estamos aqui, cada um de nós está aqui, pode pensar que é por uma outra razão qualquer, mas cada um de nós está aqui porque Deus não desiste de nós.

José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org

Sede de água viva
Marcel Domergue

Um encontro inesperado

Depois da morte de Salomão, dez das doze tribos de Israel tinham-se dividido, instalando-se na Samaria, ao norte de Jerusalém. Daí em diante, a palavra «Judeu» iria designar somente a tribo de Judá e parte da tribo sacerdotal de Levi, instaladas na Judeia, ou seja, no entorno de Jerusalém.

A Galileia, situada bem mais ao norte e para além da Samaria, dependia de Jerusalém. Havia separação e hostilidade entre Judeus e Samaritanos. E eis que Jesus dá início a uma reconciliação (no final do evangelho), mas deixando de fora o tema da importância de Jerusalém e a «deste monte» (o Monte Garizim, onde os Samaritanos haviam construído um templo rival ao de Jerusalém).

Daí em diante, o lugar não conta mais. Deus está em toda parte, porque é a fonte e o destino final de tudo o que existe. São, enfim, homens e mulheres a residência divina, na medida em que aceitam religar-se com os outros. Este é o contexto do encontro de Jesus com a Samaritana, esta mulher que representa de certo modo todo o seu povo.

Quando veio ao poço buscar água, não sabia o que a esperava. Veio, no entanto, ao encontro do sétimo homem da sua vida. Sete, o número perfeito, do homem do fim, do «último Adão», como dirá Paulo em 1 Coríntios 15,45. Mas a mulher não irá guardar este homem só para si, ele que foi o único a vir ao seu encontro.

Vai imediatamente falar dele junto aos seus compatriotas. É que, agora, a Samaritana passa a ter outro tipo de relação com o homem: trata-se de dar, como sempre, mas, agora, dum outro modo. Notemos que veio até ao poço, animada unicamente pelo desejo de tirar água. É o que muitas vezes acontece em nossos encontros com o Cristo: Ele vem nos encontrar de imprevisto. Daí a necessidade de permanecermos sempre abertos.

Noutro lugar e de outra maneira

Ante tudo o que faz a vida da Samaritana, tudo o que acontece em inúmeras leituras bíblicas, gostaríamos muito de «erguer tendas», instalando-nos bem no cume, onde brilha a luz. Mas não: será preciso descer. E, então, veremos «somente Jesus», o Jesus de todos os dias. No horizonte, está Jerusalém.

Assim como no Batismo, que já é figura da Paixão (Lucas 12,50), uma voz vinda do alto vem certificar que Jesus, não obstante tudo o que lhe possa acontecer, é o Filho amado e que é preciso segui-lo aonde quer que vá. Os três discípulos, testemunhas da Transfiguração, também estarão presentes no Getsêmani. Mas aí não haverá nem Moisés nem profeta nem a voz vinda do Céu.

Somente a solidão! A solidão de quem tem presentes em si mesmo a todos nós e que está prestes a recuperar a sua condição divina. Nele, tudo o que havia na primeira Aliança se mantém, junto com tudo o que a Nova irá abrigar. Também a nossa vida é aqui levada em conta, para, depois, ser superada e ultrapassada.

A Samaritana veio buscar água; Jesus também. Mas eis que a água que estanca a nossa sede vai-se transpor para uma nova água. Para que sede, esta nova água? Para que sede, tantas vezes ignorada? A relação desta mulher com o homem, com os homens de modo geral, assume com este Homem uma forma inesperada, e nova também ela.

No universo religioso dos Judeus e dos Samaritanos, havia lugares privilegiados para o encontro com Deus: o templo de Jerusalém e o do monte Garizim. Pois, é chegada a hora em que o lugar do encontro com Deus será o espírito mesmo do homem. A figura do Cristo, na época, era objeto de uma espera incessantemente reconduzida a um futuro mítico.

E, no entanto, eis que Ele está aqui e que fala com esta mulher estrangeira! E o alimento, que ocupa um lugar tão importante na Bíblia, desde o Gênesis até ao Apocalipse com o banquete das núpcias do Cordeiro? Pois, eis que Jesus anuncia justamente um novo tipo de alimento. Um alimento estranho, o qual não se trata mais de absorver, mas, ao contrário, de dar: «O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou».

Uma água nova, que não vem do exterior e que não precisa ser tirada do poço, mas que jorra de cada um para a vida eterna; um homem definitivo, que não será mais substituído; os lugares de culto que desaparecem do mapa; um alimento que não mais entra em nós, mas que sai de nós. Assim, passamos a um mundo novo, a uma vida nova. A vontade do Pai, que o Cristo irá cumprir, será o dom da sua vida na Cruz: «Tomai e comei, isto é o meu corpo entregue por vós. Tomai e bebei». Devemos fazer o mesmo, em sua memória.

http://www.ihu.unisinos.br

“Senhor, dá-me sempre dessa água!”
Enzo Bianchi

Êxodo 17, 3-7

Nos dois primeiros domingos da Quaresma, com a memória de Adão e Eva, isto é, da humanidade nos seus inícios, e a memória de Abraão, o primeiro crente no Deus vivo, consideramos o início da história da salvação. Neste domingo e nos próximos, as três leituras tornam-se novamente paralelas e convergentes sobre temas batismais e pascais: a água, a luz, a vida.

Neste trecho do Êxodo, revivemos o dom da água dado por Deus ao seu povo no deserto, quando estava ameaçado pela sede. A sede é metáfora da nossa busca, assim como no Evangelho que nos apresenta a mulher samaritana, que vai buscar água no poço e, no encontro com Jesus, encontra a água da vida.

Carta aos Romanos 5, 1-2.5-8

O Apóstolo ilustra aos cristãos de Roma a salvação imerecida: através da fé, eles são justificados, tornados justos, portanto habitados pelo amor de Deus derramado nos seus corações por meio do Espírito Santo. E isso acontece graças ao evento pascal: Cristo deu a sua vida pelos homens, todos pecadores. Justamente enquanto os seres humanos eram pecadores e inimigos de Deus, Deus os amou até dar-lhes o seu Filho Jesus Cristo. Eis a epifania do amor gratuito de Deus, amor sem reciprocidade, amor que reconcilia o pecador com Deus.

João 4, 5-42

Depois de nos ter apresentado as tentações de Jesus e a sua transfiguração, no Ano Litúrgico “A”, a Igreja propõe, através de trechos do quarto Evangelho, um percurso que nos ajuda a aprofundar os valores do batismo. Hoje, meditamos sobre o encontro entre Jesus e a mulher samaritana, no qual se revelou o dom da água da vida.

De Jerusalém, Jesus deve voltar para a Galileia e poderia fazer isso subindo novamente o vale do Jordão. A estrada era mais plana, mais segura e permitia não ter que atravessar a Samaria, terra cujos habitantes há séculos eram tão inimigos dos judeus – que os consideravam impuros e hereges – a ponto de atormentá-los quando estes a atravessavam (cf. Lc 9, 52-53).

Em vez disso – diz o texto – Jesus “tinha” (édei) que passar pela Samaria, um “dever” que expressa uma necessidade divina: em obediência a Deus, precisamente porque ele foi enviado não só para os judeus, Jesus atravessa essa terra para cumprir a sua missão. Por isso, receberá o insulto daqueles que não o entendem: “Tu és um samaritano e um endemoninhado!” (Jo 8, 48). No entanto, Jesus aceita se encontrar com estes que são considerados inimigos e ímpios; ou, melhor, vai buscar esse povo desprezado e se faz samaritano entre os samaritanos, parando junto a um poço, como o samaritano da parábola parou junto daquele que tinha sido espancado pelos ladrões (cf. Lc 10, 33-35).

Na hora mais quente do dia, ele chega à Samaria, “cansado da viagem”, e vai se sentar perto do poço de Sicar, o poço de Jacó (cf. Gn 33, 18-20). Ele está cansado e com sede, mas não tem nenhum meio para tirar água. Chega, então, também uma mulher, que, talvez por causa do seu comportamento imoral publicamente reconhecido, é forçada a sair pela estrada naquela hora, para não esbarrar com aqueles que a desprezam. Jesus lhe pede: “Dá-me de beber”. Ao ouvir aquelas palavras na língua dos judeus, ela se admira: alguém que está na sua mesma condição de sedenta lhe pede de beber, pede-lhe hospitalidade, mas é um inimigo, alguém que deveria se sentir superior a ela. Uma mulher samaritana só podia esperar desprezo de um homem judeu; ele, ao contrário, faz-se mendicante junto dela. Eis a verdadeira autoridade vivida por Jesus: a sua capacidade – como indica o latim auctoritas, de augere – de aumentar o outro, de fazê-lo crescer.

Atônita, a mulher pergunta a Jesus: “Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?”. Que rebaixamento! É isso que a surpreende e acende uma dinâmica relacional, em um face a face cordial, sem mais barreiras. Entre Jesus e a mulher, de fato, caiu um muro de separação (cf. Ef 2, 14) ou, melhor, dois: um muro devido à inimizade entre samaritanos e judeus, e um muro cultural e religioso de injusta disparidade, que impedia que um homem, particularmente um rabi, conversasse com uma mulher. Mas, se uma pessoa não pode ir a Deus, é Deus que vai buscá-la, porque ninguém pode ser excluído do seu amor: Jesus narra isso com o seu comportamento.

Ele, intuindo que o diálogo promete ser um diálogo de qualidade, começa a intrigar a mulher: “Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede: ‘Dá-me de beber’, tu mesma lhe pedirias a ele, e ele te daria água viva”. A mulher tem sede, Jesus tem sede, mas, na realidade, quem dá de beber ao outro? Há uma sede de água de Jesus e da mulher, tornada mais urgente pelo calor, mas há também outra sede que emerge lentamente…

Jesus sabe que há uma sede mais profunda e sabe que o poço simboliza a Torá, aquela parte das Escrituras que justamente os samaritanos consideravam como a única que continha a palavra de Deus e à qual deviam recorrer para viver como crentes. Jesus sabe também que essa mulher, figura da Samaria adúltera (cf. Os 2, 7), tentou aplacar a sua sede por caminhos equivocados: teve vários homens, bebeu todo o tipo de água, vítima e artífice de amores equivocados…

E, assim, ele lhe revela a sua condição, mas sem condená-la, mas convidando-a a aderir à realidade e, consequentemente, a retornar ao Deus vivo. A samaritana, curiosa, quer saber mais: “Quem és tu que doas essa água viva? Por acaso, és maior do que o nosso pai Jacó? Realmente tens uma água que sacia para sempre? De onde tiras essa água viva?”. O patriarca Jacó não só tinha cavado aquele poço profundo, mas, de acordo com a tradição judaica, também tinha a força de fazer a água subir do poço apenas com a sua presença. Por acaso, Jesus é maior do que Jacó? Por acaso, poderá dar a água que sobe do poço, água viva?

A mulher aceita entrar no jogo e recebe em troca uma promessa extraordinária: “A água deste poço não sacia para sempre, a Lei de Moisés não sacia definitivamente, mas eu dou uma água que se torna fonte de água que jorra, uma fonte inesgotável que dá água para a vida eterna”. Jesus lhe anuncia o inédito, o humanamente impossível: há uma água dada por ele que, em vez de ser retirada do poço, torna-se fonte que jorra, água que sobe das profundezas. Beber a água dada por ele significa encontrar em si uma fonte interior: esta água é o Espírito derramado por Jesus nos nossos corações (cf. Jo 7, 37-39; 19, 30.34), Espírito que jorra para a vida eterna, que, no coração do crente, torna-se “mestre interior”.

A samaritana começa a intuir alguma coisa e, então, pergunta: “Senhor (Kýrios), dá-me dessa água!”. Aqui, Jesus dá uma virada repentina no diálogo: “Vai chamar teu marido e volta aqui”. O que o marido tem a ver? Na realidade, Jesus conhece bem a situação da samaritana, porque “conhecia aquilo que há em cada homem” (Jo 2, 25). Ele lê na história de amor infeliz dessa mulher a história idólatra dos samaritanos com os ídolos estrangeiros. Lê nela, simbolicamente, a história do Reino do Norte, Israel, chamado pelos profetas de “mulher adúltera e prostituta” pela infidelidade ao Esposo único, o Senhor Deus, e o adultério com os ídolos falsos (cf. Os 2, 4-3, 6).

A mulher, respondendo que agora não tem marido, que está à procura de pessoas que a amem, confessa não ter encontrado o esposo único, sempre fiel no amor, mesmo em caso de traição (cf. Os 14, 5). Jesus está diante do povo dos samaritanos para lhes dizer que o Senhor nunca os abandonou, que quer atraí-los para si (cf. Os 2, 16) e celebrar com eles bodas de aliança eterna. É por isso que a samaritana, para além da água, deve encontrar quem é a fonte, por trás do dom deve descobrir o doador. Na resposta dada a Jesus, reconhece implicitamente as suas inúmeras falhas, a sua sede frustrada de comunhão e de amor; é uma mulher na miséria, que conhece patrões, mas não um esposo, uma mulher explorada e abandonada. Mas descobrindo a si mesma, descobre que Jesus é profeta e logo lhe pergunta onde é possível adorar, onde é possível encontrar Deus e iniciar uma vida de comunhão com ele: em Jerusalém, como dizem os judeus, ou no monte Garizim, como defendem os samaritanos?

Em resposta, Jesus lhe anuncia a hora: “Acredita-me, mulher, está chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em Espírito e Verdade”, isto é, no Espírito Santo e em Jesus Cristo mesmo, que é a Verdade (cf. Jo 14, 6), a última e definitiva narrativa de Deus (cf. Jo 1, 18).

Sim, o lugar da autêntica liturgia cristã não é mais um lugar-santuário, monte, templo ou catedral, mas é a morada do Pai, do Filho e do Espírito Santo, isto é, a nossa pessoa por inteiro, corpo de Cristo (cf. 2Co 13, 5) e “templo do Espírito” (1Co 6, 19).

Diante dessas palavras, a samaritana ousa confessar a própria expectativa: ela e a sua gente esperam o Messias profético, o novo Moisés (cf. Dt 18, 15-18), esperam aquele que revelará tudo. E é neste momento que Jesus lhe diz: “Eu sou – o Nome de Deus (cf Ex 3, 14) – que estou falando contigo”. A mulher se revelou na sua miséria, Jesus e revela na sua verdade de Messias, de Cristo, enviado por Deus.

Mas agora o encontro humaníssimo com Jesus transformou essa mulher em uma criatura nova, tornando-a testemunha e evangelizadora. É por isso que, “tendo deixado o seu cântaro” – gesto que diz mais do que muitas palavras! – ela corre até a cidade para testemunhar o que aconteceu com ela. Para a samaritana, testemunhar é, acima de tudo, recordar os eventos, contar a própria experiência: algo decisivo aconteceu na sua vida, e isso provocou nela uma mudança, uma conversão. E, assim, depois de recordar os fatos, sugere uma interpretação: “Será ele o Messias?”. Ela não impõe àqueles que a escutam um dogma, nem uma verdade expressada em termos rígidos, mas propõe uma leitura que lhes permitirá fazer uma escolha na liberdade, movidos pelo amor. Ela sugere mais do que conclui, e assim acende o desejo do encontro.

“A fé nasce da escuta” (Rm 10, 17), diz o Apóstolo: da escuta de Jesus, nasceu a fé da samaritana, da escuta da samaritana nasceu a fé da sua gente. E, da fé, procede o conhecimento; do conhecimento, o amor: esse é o evento cristão, admiravelmente resumido no encontro de duas pessoas sedentas!

http://www.ihu.unisinos.br