
P. Manuel João, comboniano
Reflexão do Domingo
da boca da mia baleia, a ELA
A nossa cruz é o pulpito da Palavra
SAL que enlouqueceu ou LUZ debaixo do alqueire?
Quinto Domingo do Tempo Comum (A)
Mateus 5,13-16:
Vós sois o sal da terra. Vós sois a luz do mundo!
De surpresa em surpresa!
No domingo passado, o Senhor surpreendeu-nos a todos com o preâmbulo das Bem-aventuranças, virando do avesso os nossos parâmetros de felicidade. As surpresas, no entanto, não terminam aí. Hoje o Senhor volta-se directamente para nós, seus discípulos, e surpreende-nos de novo. Jesus revela-nos a nossa identidade mais profunda, a nossa verdade mais autêntica: “Vós sois o sal da terra. Vós sois a luz do mundo”! Dirige-se ao pequeno grupo dos seus discípulos: “Vós!” e usa o verbo no presente “Vós sois”” não no futuro. Eles já o são, o sal e a luz! Não é tanto uma exortação ou um imperativo para se tornarem algo que ainda não são, mas uma verdadeira investidura. Jesus afirma ainda que eles são “o” sal, “a” luz. Não há outro sal, não há outra luz!
Para compreender a carga provocadora de uma tal afirmação, basta pensar que os rabinos costumavam dizer: “A Torá – a Lei dada por Deus ao seu povo – é como sal e o mundo não pode viver sem sal”! E diziam também: “Como o azeite traz luz ao mundo, assim Israel é a luz do mundo” e “Jerusalém é luz para as nações da terra”.
O que Jesus está a dizer é algo paradoxal: o pequeno grupo insignificante dos seus discípulos, que não contam para nada social e religiosamente, são comparáveis às instituições sagradas de Israel ou mesmo as substituem!
Vós sois o sal da terra!
Todos nós podemos compreender a força desta comparação. O sal dá sabor aos alimentos, torna-os saborosos! Sem sal não há sabor, não há prazer em comer. Portanto, o discípulo de Jesus traz sabor à terra, gosto ao convívio humano, sentido para a vida.
O sal está também ligado à inteligência. O discípulo de Jesus é portador de um novo saber, uma nova sabedoria (ver Paulo na segunda leitura, 1 Coríntios 2,1-5)!
O sal era também utilizado para evitar a decomposição dos alimentos. O discípulo de Jesus é então um antídoto para a corrupção da sociedade. Deste atributo do sal resultou também o costume de salpicar sal nos documentos como sinal da sua perpetuidade. Um “pacto de sal” era definitivo, não podia ser quebrado. A aliança de Deus foi também chamada aliança “de sal” ou “salgada”, para dizer que era perpétua.
Em que sentido está Jesus a pensar quando nos diz: “vós sois o sal da terra”? O mais provável é que se refira a todo este simbolismo.
O sal enlouqueceu!
“Vós sois o sal da terra. Mas se ele perder a força, com que há-de salgar-se? Não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens.”
Parece-nos um pouco estranho que o sal possa perder as suas propriedades. Na verdade, a tradução literal desta expressão é “se o sal ficar louco”. O discípulo que “enlouquece”, que perde a sua identidade, e já não dá sabor e sabedoria à terra, não tem qualquer utilidade e merece o desprezo do povo.
Vós sois a luz do mundo!
Na Bíblia, a luz é uma das realidades mais carregadas de simbolismo. Aparece no início, como a primeira obra criada por Deus (Génesis 1: 3), e encontra-se no fim: “Já não haverá noite, nem se precisará da luz de lâmpada ou do sol, porque o Senhor Deus a iluminará” (Apocalipse 22,5). No Evangelho de João, Jesus diz “Eu sou a luz do mundo” (João 8,12), e na sua primeira carta, João declara: “Deus é luz, e nele não há trevas” (1 João 1,5). E São Paulo chama aos cristãos “filhos da luz”.
Ser para os outros
O sal e a luz têm um elemento em comum. Ambos estão em função de “outros”, fundem-se com a realidade, o sal dissolve-se nos alimentos, torna-se invisível, e a luz dispersa-se nos objectos que ilumina. Assim, o cristão não vive para si próprio, mas para dar sabor aos outros, para tornar a sociedade em que vive saborosa e, como a luz, para iluminar a realidade que o rodeia. Uma presença discreta, que não chama a atenção para si própria, mas promove o bem dos outros. O cristão não é um espectador ou uma pessoa à parte, mas está totalmente imerso na realidade do mundo e da história. Tantos cristãos não podem fazer ouvir a sua voz ou expressar a sua identidade cristã, mas onde há um discípulo de Cristo o Amor está a fermentar a massa do mundo! Grande é a responsabilidade do cristão, não há ‘produto’ que o possa substituir!
Sal ou luz?
O sal e a luz, no entanto, têm modos de presença distintos. Enquanto o sal desaparece, a luz torna-se visível. É o discernimento que nos dirá, cada vez e de acordo com as circunstâncias, se devemos agir como sal ou como luz.
Alegria e entusiasmo? Crise e confusão? Escândalo e vergonha?
Qual é a nossa reação perante esta surpreendente revelação de Jesus, da nossa profunda identidade de ser o sal da terra e a luz do mundo? O mais imediato e espontâneo deveria ser a alegria e o entusiasmo de nos vermos tão associados à vida e à missão de Jesus!
No entanto, o peso e a responsabilidade de uma vocação tão elevada podem intimidar-nos, com razão. Quem pode sentir-se à altura de uma tal tarefa? No entanto, Jesus acredita em nós, confia em nós, apesar das nossas limitações e fraquezas. E Ele não nos deixa sós!
Mas o que sentiríamos, se Jesus nos declarasse o sal da terra e a luz do mundo perante os não-crentes de hoje, na nossa sociedade ocidental? Quase de certeza, muita vergonha! Podemos muito bem dizer com o salmista: “a vergonha cobre-me o rosto” (Salmo 44). Como poderia tal comparação ser feita diante de uma igreja humilhada por escândalos, refreada por um clericalismo que transformou o serviço em poder, dividida pelos extremismos? Uma igreja que se tornou, de certa forma, um campo de batalha, dilacerada por lutas internas? Uma igreja que perdeu vitalidade e relevância, que avança por inércia, que corre o risco de implosão?
Como pode ser credível uma igreja que perdeu o sal da profecia e do testemunho evangélico? Como pode sobreviver uma igreja que escondeu a luz debaixo do alqueire do oportunismo e da autorreferencialidade, em vez de a colocar no candelabro da Cruz? Uma igreja onde alguns saem do barco para repetir a aventura de Pedro, para enfrentarem sozinhos as ondas da tempestade?
Terá esta nossa igreja a oportunidade de renascer e, pequena que seja, de se tornar o sal desta terra e a luz do nosso mundo? Sim, a história bimilenária da igreja diz-nos isso! Sim, a esperança assegura-nos! Um pequeno rebento é suficiente para fazer renascer o tronco de Jessé (Isaías 11,1). Os apóstolos diante de Jesus no Monte das Beatitudes eram apenas… quatro: Pedro e André, Tiago e João! Deus não está à procura de multidões, mas de um homem, de uma mulher. Irá Ele encontrá-los? (Ezequiel 22,30). Ele procura-te, Ele procura-me! Seremos nós suficientemente corajosos para dar um passo em frente e dizer: Aqui estou eu, conta comigo?
P. Manuel João, mccj – Castel d’Azzano (Verona), 03 de Fevereiro de 2023
Para a reflexão completa, ver: http://www.comboni2000.org
Obrigado ao P. Manuel Augusto pela tradução