Meditações do Papa Francisco
por ocasião do
DIA MUNDIAL DA VIDA CONSAGRADA


DMVC

Tres perguntas: 
O que é que nos faz mover
O que veem os nossos olhos?
Que estreitamos nos braços?

Dois anciãos, Simeão e Ana, aguardam no templo o cumprimento da promessa que Deus fez ao seu povo: a vinda do Messias. Mas a sua espera não é passiva; está cheia de movimento. Sigamos, pois, os movimentos de Simeão: em primeiro lugar, é movido pelo Espírito, depois  no Menino a salvação e, finalmente, acolhe-O nos braços (cf. Lc 2, 26-28). Partindo simplesmente destas três ações, deixemo-nos interpelar por algumas perguntas importantes para nós, em particular para a vida consagrada.

A primeira é esta: O que é que nos faz mover? Simeão vai ao templo «movido pelo Espírito» (2, 27). O Espírito Santo é o ator principal da cena: faz arder no coração de Simeão o desejo de Deus, reaviva no seu íntimo a expetativa, impele os seus passos para o templo e torna os seus olhos capazes de reconhecer o Messias no pobre bebé que ali aparece. Isto é o que faz o Espírito Santo: torna-nos capazes de vislumbrar a presença de Deus e a sua obra, não nas grandes coisas, nas exterioridades vistosas, nas exibições de força, mas na pequenez e na fragilidade. Pensemos na cruz: também lá nos aparece a pequenez, a fragilidade, até mesmo um drama. Mas lá está a força de Deus. A expressão «movido pelo Espírito» faz pensar naquilo que a espiritualidade designa por «moções espirituais»: motos da alma, que sentimos dentro de nós e que somos chamados a auscultar para discernir se provêm do Espírito Santo ou doutra realidade. É preciso estarmos atentos às moções interiores do Espírito.

Nesta linha, perguntemo-nos: Deixamo-nos mover principalmente pelo Espírito Santo ou pelo espírito do mundo? É uma interrogação com que devemos confrontar-nos todos nós, especialmente os consagrados. Enquanto o Espírito leva a reconhecer Deus na pequenez e fragilidade duma criança, nós às vezes corremos o risco de pensar na nossa consagração em termos de resultados, metas, sucesso: movemo-nos à procura de espaços, de visibilidade, de números: é uma tentação. Ao passo que o Espírito não pede isto; deseja que cultivemos a fidelidade diária, dóceis às pequenas coisas que nos foram confiadas. Como é bela a fidelidade de Simeão e Ana! Todos os dias vão ao templo, todos os dias esperam e rezam, não obstante vá passando o tempo e nada pareça acontecer. Esperam a vida inteira, sem desanimar nem se lamentar, mantendo-se fiéis dia a dia e alimentando a chama da esperança que o Espírito acendeu no seu coração.

Podemos perguntar-nos, irmãos e irmãs: O que é que move os nossos dias? Que amor nos impele a seguir em frente: o Espírito Santo ou a paixão do momento, isto é, uma coisa qualquer? Como nos movemos na Igreja e na sociedade? Às vezes, mesmo por trás da aparência de boas obras, podem ocultar-se a traça do narcisismo ou o frenesi do protagonismo. Noutros casos, embora realizando muitas coisas, as nossas comunidades religiosas parecem ser movidas mais pela repetição mecânica – fazer as coisas por hábito, apenas para fazê-las – do que pelo entusiasmo de aderir ao Espírito Santo. Far-nos-á bem, a todos nós, verificar hoje as nossas motivações interiores, discirnamos as moções espirituais, porque a renovação da vida consagrada passa primariamente por aqui.

Uma segunda pergunta: O que veem os nossos olhos? Simeão, movido pelo Espírito, vê e reconhece Cristo. E reza dizendo: «Meus olhos viram a Salvação» (2, 30). Eis o grande milagre da fé: abre os olhos, transforma o olhar, muda a perspetiva. Como sabemos através de muitos encontros de Jesus nos Evangelhos, a fé nasce do olhar compassivo com que Deus nos vê, dissolvendo as durezas do nosso coração, curando as suas feridas, dando-nos olhos novos para nos vermos a nós mesmos e ao mundo: olhos novos sobre nós mesmos, sobre os outros, sobre todas as situações que vivemos, mesmo as mais dolorosas. Não se trata dum olhar ingénuo, mas é sapiencial; o olhar ingénuo foge da realidade ou finge não ver os problemas; ao contrário, trata-se de olhos que sabem «ver dentro» e «ver mais além»; que não se detêm nas aparências, mas sabem entrar também nas brechas da fragilidade e dos fracassos para vislumbrar a presença de Deus.

Os olhos envelhecidos de Simeão, embora cansados pelos anos, veem o Senhor, veem a salvação. E nós? Cada qual pode interrogar-se: que veem os nossos olhos? Que visão temos da vida consagrada? Muitas vezes o mundo vê-a como um «desperdício»: «Mas vê tu! Aquele rapaz tão promissor tornar-se frade», ou «uma jovem tão promissora fazer-se freira… É um desperdício. Se ao menos valessem pouco… Não, são promissores, é um desperdício». Assim pensam; o mundo talvez veja a vida consagrada como uma realidade do passado, qualquer coisa de inútil. Mas nós, comunidade cristã, religiosas e religiosos, que vemos? Temos os nossos olhos voltados para trás, saudosos daquilo que já não existe ou somos capazes dum olhar de fé clarividente, projetado para o íntimo e mais além? Devemos ter esta sabedoria de olhar (é o Espírito que a dá): olhar bem, medir bem as distâncias, compreender as realidades. Faz-me muito bem ver consagrados e consagradas idosos, que continuam a sorrir com olhos luminosos, dando esperança aos jovens. Pensemos nas vezes em que nos cruzamos com tais olhares e bendigamos a Deus por isso. São olhares de esperança, abertos para o futuro. E talvez nos faça bem, nestes dias, ir encontrar, fazer uma visita aos nossos irmãos e irmãs religiosos idosos, para os ver, conversar, perguntar, ouvir o que pensam. Creio que será um bom remédio.

Irmãos e irmãs, o Senhor não cessa de dar sinais para nos convidar a cultivar uma visão renovada da vida consagrada. Isso faz falta, mas sob a luz, sob a moção do Espírito Santo. Não podemos fingir que não vemos esses sinais e continuar como se não importassem, repetindo as coisas de sempre, arrastando-nos por inércia nas formas do passado, paralisados pelo medo de mudar. Já o disse muitas vezes: hoje há a tentação de voltar para trás, por segurança, por medo, para manter a fé, para manter o carisma fundador… É uma tentação. A tentação de voltar para trás e manter as «tradições» com rigidez. Fixemos isto na cabeça: a rigidez é uma perversão e, sob cada rigidez, há graves problemas. Nem Simeão nem Ana eram rígidos, não! Eram livres e tinham a alegria de festejar: ele, louvando o Senhor e profetizando com coragem acerca da Mãe; e ela, como uma boa velhinha, a mover-se dum lado para o outro dizendo: «Vede estes aqui, vede isto!» Fizeram o anúncio com alegria, com os olhos cheios de esperança. Sem inércias do passado, nem rigidez. Abramos os olhos: através das crises – é verdade; existem as crises – através dos números que faltam – «Padre, não há vocações! Agora iremos até ao fim do mundo para ver se encontramos alguma» –, através das forças que esmorecem, o Espírito convida-nos a renovar a nossa vida e as nossas comunidades. Mas como fazer? Será Ele a indicar-nos o caminho. Nós abrimos o coração, com coragem, sem medo. Abrimos o coração. Olhemos para Simeão e Ana! Embora de idade avançada, não passam os dias a chorar por um passado que não volta mais, mas abrem os braços para o futuro que vem ao seu encontro. Irmãos e irmãs, não desperdicemos o hoje a olhar para o ontem ou sonhando com um amanhã que jamais virá, mas coloquemo-nos diante do Senhor, em adoração, e peçamos olhos que saibam ver o bem e vislumbrar os caminhos de Deus. O Senhor no-lo concederá, se Lho pedirmos com alegria, com fortaleza, sem medo.

Por fim, uma terceira pergunta: Que estreitamos nos braços? Simeão acolhe Jesus nos braços (cf. 2, 28). É uma cena terna e rica de significado, única nos Evangelhos. Deus colocou o seu Filho nos nossos braços, porque o essencial, o centro da fé é acolher Jesus. Às vezes corremos o risco de nos perder e dispersar em mil coisas, fixar-nos em aspetos secundários ou mergulhar-nos nas coisas que temos de fazer, mas o centro de tudo é Cristo, que devemos acolher como o Senhor da nossa vida.

Quando Simeão toma Jesus nos braços, os seus lábios pronunciam palavras de bênção, louvor, maravilha. E nós, depois de tantos anos de vida consagrada, perdemos a capacidade de nos maravilhar? Ou temos ainda essa capacidade? Examinemo-nos sobre isto e, se alguém não a tiver, peça a graça da estupefação, a estupefação diante das maravilhas que Deus está a realizar em nós, escondidas como a do templo, quando Simeão e Ana encontraram Jesus. Se aos consagrados faltam palavras que bendizem Deus e os outros, se falta a alegria, se esmorece o entusiamo, se a vida fraterna é apenas fadiga, se falta a estupefação, isso não acontece por que somos vítimas de alguém ou dalguma coisa, o verdadeiro motivo é que os nossos braços já não estreitam Jesus. E quando os braços dum consagrado, duma consagrada não estreitam Jesus, estreitam o vazio, que procuram preencher com outras coisas, mas permanece o vazio. Estreitar Jesus com os braços: este é o sinal, este é o caminho, esta é a «receita» para a renovação. Então, quando não abraçamos Jesus, o coração fecha-se na amargura. É triste ver consagrados amargos, consagradas amargas: fecham-se na lamentação pelas coisas que não funcionam a tempo e horas, num rigor que nos torna inflexíveis, em atitudes de pretensa superioridade.

Sempre se lamentam de alguma coisa: do superior, da superiora, dos irmãos, da comunidade, da cozinha… Se não têm de que lamentar-se, não vivem. Mas nós devemos abraçar Jesus em adoração e pedir olhos que saibam ver o bem e ver os caminhos de Deus. Se acolhermos Cristo de braços abertos, acolheremos também os outros com confiança e humildade. Então não se exacerbam os conflitos, as distâncias não se alongam e extingue-se a tentação de abusar e ferir a dignidade de alguma irmã ou irmão. Abramos os braços, a Cristo e aos irmãos! Lá está Jesus.

Caríssimos, caríssimas, renovemos hoje com entusiasmo a nossa consagração! Perguntemo-nos quais são as motivações que movem o nosso coração e o nosso agir, qual é a visão renovada que somos chamados a cultivar e, sobretudo, tomemos Jesus nos braços. Mesmo que experimentemos fadiga e cansaço – isto acontece! Até desilusões acontecem – façamos como Simeão e Ana que esperam com paciência na fidelidade do Senhor e não se deixam roubar a alegria do encontro. Encaminhemo-nos para a alegria do encontro. Isto é bom! Coloquemo-Lo no centro e continuemos para diante com alegria. Assim seja!

2 Fevereiro 2022

FESTA DO ENCONTRO:
Recordar o nosso encontro fundante com o Senhor
para reavivar o primeiro amor

Hoje a Liturgia mostra Jesus que vai ao encontro do seu povo. É a festa do encontro: a novidade do Menino encontra a tradição do templo; a promessa encontra cumprimento; Maria e José, jovens, encontram Simeão e Ana, idosos. Enfim, tudo se encontra, quando chega Jesus.

Que significa isto para nós? Antes de mais nada, que também nós somos chamados a acolher Jesus, que vem ao nosso encontro. Encontrá-Lo: o Deus da vida deve ser encontrado todos os dias da vida; não ocasionalmente, mas todos os dias. Seguir Jesus não é uma decisão tomada uma vez por todas; é uma opção diária. E o Senhor não Se encontra virtualmente, mas diretamente, encontrando-O na vida, na vida concreta. Caso contrário, Jesus torna-Se apenas uma bela recordação do passado. Mas, quando O acolhemos como Senhor da vida, centro de tudo, coração pulsante de todas as coisas, então Ele vive e revive em nós. E acontece, também a nós, o que sucedeu no templo: ao redor d’Ele tudo se encontra, a vida torna-se harmoniosa. Com Jesus, reencontra-se a coragem de avançar e a força de permanecer firme. O encontro com o Senhor é a fonte. Então é importante voltar às fontes: percorrer com a memória os encontros decisivos que tivemos com Ele, reavivar o primeiro amor, talvez escrever a nossa história de amor com o Senhor. Fará bem à nossa vida consagrada, para que não se torne tempo que passa, mas seja tempo de encontro.

Se recordarmos o nosso encontro fundante com o Senhor, dar-nos-emos conta de que não surgiu como uma questão privada entre nós e Deus. Não! Desabrochou no povo crente, ao lado de tantos irmãos e irmãs, em tempos e lugares concretos. Assim no-lo diz o Evangelho, mostrando como o encontro tem lugar no povo de Deus, na sua história concreta, nas suas tradições vivas: no templo, segundo a Lei, no clima da profecia, com os jovens e os idosos juntos (cf. Lc 2, 25-28.34). O mesmo se passa com a vida consagrada: desabrocha e floresce na Igreja; se se isolar, murcha. Aquela amadurece quando os jovens e os idosos caminham juntos, quando os jovens reencontram as raízes e os idosos acolhem os frutos. Mas estagna quando se caminha sozinho, quando se permanece fixado no passado ou se salta para a frente para tentar sobreviver. Hoje, festa do encontro, peçamos a graça de redescobrir o Senhor vivo, no povo crente, e de fazer encontrar o carisma recebido com a graça do dia de hoje.

O Evangelho diz-nos também que o encontro de Deus com o seu povo tem um ponto de partida e uma meta. Começa-se da chamada ao templo, e chega-se à visão no templo. A chamada é dupla. Há uma primeira chamada «segundo a Lei» (2, 22). É a de José e Maria, que vão ao templo para cumprir o que prescreve a Lei. Quase como um refrão, aparece assinalado quatro vezes no texto (cf. 2, 22.23.24.27). Não se trata de constrangimento: os pais de Jesus não vão forçados, nem para satisfazer um cumprimento meramente externo; vão para responder à chamada de Deus. Há depois uma segunda chamada, segundo o Espírito. É a de Simeão e Ana. Também esta é evidenciada com insistência: relativamente a Simeão, fala-se três vezes do Espírito Santo (cf. 2, 25.26.27) e termina com a profetisa Ana que, inspirada, louva a Deus (cf. 2, 38). Dois jovens acorrem ao templo chamados pela Lei; dois idosos, movidos pelo Espírito. Que diz à nossa vida espiritual e à nossa vida consagrada esta dupla chamada: da Lei e do Espírito? Que todos somos chamados a uma dupla obediência: à lei – no sentido daquilo que confere boa ordem à vida – e ao Espírito, que faz coisas novas na vida. Assim, nasce o encontro com o Senhor: o Espírito revela o Senhor, mas, para O acolher, é necessária a constância fiel de cada dia. Os próprios carismas mais elevados, sem uma vida ordenada, não dão fruto. Por outro lado, as melhores regras não são suficientes sem a novidade do Espírito: lei e Espírito andam juntos.

Para compreender melhor esta chamada, que vemos hoje nos primeiros dias de vida de Jesus no templo, podemos ir aos primeiros dias do seu ministério público em Caná, onde transforma a água em vinho. Lá também há uma chamada à obediência, quando Maria diz: «Qualquer coisa que [Jesus] vos diga, fazei-a» (cf. Jo 2, 5). Qualquer coisa. E Jesus pede uma coisa singular… Não faz imediatamente uma coisa nova, não tira do nada o vinho que falta – poderia fazê-lo –, mas pede uma coisa concreta e exigente: pede para encher seis grandes ânforas de pedra para a purificação ritual (que nos recordam a Lei). Significava acarretar cerca de seiscentos litros de água do poço: tempo e fadiga que pareciam inúteis, porque o que faltava não era água, mas o vinho! Contudo é precisamente daquelas ânforas cheias «até acima» (2, 7) que Jesus tira o vinho novo. O mesmo se passa connosco: Deus chama-nos a encontrá-Lo através da fidelidade a coisas concretas – é sempre no concreto que se encontra Deus –, ou seja, a oração diária, a Missa, a Confissão, uma caridade verdadeira, a Palavra de Deus em cada dia, a proximidade sobretudo aos mais necessitados espiritual e corporalmente. São coisas concretas, como na vida consagrada a obediência ao Superior e às Regras. Se se praticar esta lei com amor – com amor! –, sobrevem o Espírito e traz a surpresa de Deus, como no templo e em Caná. Então a água da quotidianidade transforma-se no vinho da novidade; e a vida, que parece mais presa, na realidade torna-se mais livre. (…)

O encontro, que nasce da chamada, culmina na visão. Simeão diz: «Os meus olhos viram a Salvação» (Lc 2, 30). No Menino que vê, contempla a salvação. Não vê o Messias que realiza prodígios, mas um menino pequenito. Não vê nada de extraordinário, mas Jesus com os pais, que trazem ao templo duas rolas ou duas pombas, ou seja, a oferta mais humilde (cf. 2, 24). Simeão vê a simplicidade de Deus, e acolhe a sua presença. Não procura algo de diferente; nada mais pede nem pretende. Basta-lhe ver o Menino e tomá-Lo nos braços: «Nunc dimittis… agora podes deixar-me ir» (cf. 2, 29). Basta-lhe Deus como é. N’Ele, encontra o sentido último da vida. É a visão da vida consagrada, uma visão simples e, na sua simplicidade, profética, onde se tem o Senhor diante dos olhos e Se estreita nas mãos e não precisa de mais nada. A vida é Ele, a esperança é Ele, o futuro é Ele. A vida consagrada é esta visão profética na Igreja: é olhar que vê Deus presente no mundo, embora a muitos passe despercebido; é voz que diz: «Deus basta, o resto passa»; é louvor que brota apesar de tudo, como manifesta a profetisa Ana: era uma mulher já muito idosa, que vivera tantos anos viúva, mas não era sorumbática, nostálgica nem fechada em si mesma; pelo contrário, chega, louva a Deus e só fala d’Ele (cf. 2, 38). Apraz-me pensar que esta mulher «tagarelava bem», e seria uma boa padroeira para nos converter do mal das bisbilhotices; com efeito, Ana ia dum lado para outro limitando-se a dizer: «[O Messias] é aquele! É aquele menino! Ide vê-lo». Apraz-me imaginá-la como a vizinha informada do lugar.

Eis a vida consagrada: louvor que dá alegria ao povo de Deus, visão profética que revela aquilo que conta. Quando assim é, floresce e torna-se para todos um apelo contra a mediocridade: contra as quedas de altitude na vida espiritual, contra a tentação de jogar por baixo com Deus, contra a adaptação a uma vida cómoda e mundana, contra a reclamação, insatisfação e lamento da própria sorte – as queixinhas! -, contra o habituar-se a «fazer aquilo que se pode» e ao «sempre se fez assim». Estas não são frases segundo Deus. A vida consagrada não é sobrevivência, não é preparar-se para «ars bene moriendi»: esta é a tentação de hoje face ao declínio das vocações. Não! Não é sobrevivência, é vida nova. «Mas… somos poucas!» É vida nova. É encontro vivo com o Senhor no seu povo. É chamada à obediência fiel de cada dia e às surpresas inéditas do Espírito. É visão daquilo que importa abraçar para ter a alegria: Jesus.

2 de fevereiro de 2019

FESTA DO ENCONTRO
Encontro de gerações:

jamais profecia sem memória,
jamais memória sem profecia

Quarenta dias depois do Natal, celebramos o Senhor que, entrando no templo, vem ao encontro do seu povo. No Oriente cristão, esta festa é chamada precisamente «Festa do Encontro»: é o encontro entre o Deus Menino, que traz vida nova, e a humanidade à sua espera, representada pelos anciãos no templo.

No templo, verifica-se ainda outro encontro: o encontro entre dois pares humanos, ou seja, os jovens Maria e José, por um lado, e os anciãos Simeão e Ana, por outro. Os anciãos recebem dos jovens, os jovens aprendem dos anciãos. Com efeito, no templo, Maria e José encontram as raízes do povo, o que é importante pois a promessa de Deus não se realiza individualmente e duma vez só, mas conjuntamente e ao longo da história. E encontram também as raízes da fé, porque a fé não é uma noção que se deve aprender num livro, mas a arte de viver com Deus, que se recebe da experiência de quem nos precedeu no caminho. Assim, encontrando os anciãos, os dois jovens encontram-se a si mesmos. E os dois anciãos, caminhando já para o fim dos seus dias, recebem Jesus, sentido da sua vida. Assim, este episódio cumpre a profecia de Joel: «Os vossos anciãos terão sonhos, e os vossos jovens terão visões» (3, 1). Naquele encontro, os jovens veem a sua missão e os anciãos realizam os seus sonhos; e tudo isto porque, no centro do encontro, está Jesus.

Olhemos o nosso caso, amados irmãos e irmãs consagrados! Tudo começou pelo encontro com o Senhor. Dum encontro e duma chamada, nasceu o caminho de consagração. É preciso recordá-lo. E, se nos recordarmos bem, veremos que, naquele encontro, não estávamos sozinhos com Jesus: estava também o povo de Deus, a Igreja, jovens e anciãos, como no Evangelho. Neste, há um detalhe interessante: enquanto os jovens Maria e José observam fielmente as prescrições da Lei – o Evangelho repete-o quatro vezes – e nunca falam, os anciãos Simeão e Ana acorrem e profetizam. Parece que devia ser o contrário! Geralmente são os jovens que falam com entusiasmo do futuro, enquanto os anciãos guardam o passado. No Evangelho, sucede o contrário, porque, quando nos encontramos no Senhor, chegam pontualmente as surpresas de Deus. Para permitir que as mesmas aconteçam na vida consagrada, convém lembrar-nos que não se pode renovar o encontro com o Senhor sem o outro: nunca o deixes para trás, nunca faças descartes geracionais, mas diariamente caminhai lado a lado, com o Senhor no centro. Porque, se os jovens são chamados a abrir novas portas, os anciãos têm as chaves. E a juventude dum instituto [de vida consagrada] encontra-se indo às raízes, ouvindo as pessoas anciãs. Não há futuro sem este encontro entre anciãos e jovens; não há crescimento sem raízes, e não há florescimento sem novos rebentos. Jamais profecia sem memória, jamais memória sem profecia; mas que sempre se encontrem!

A vida agitada de hoje induz-nos a fechar muitas portas ao encontro e, com frequência, por medo do outro. As portas dos centros comerciais e as conexões de rede estão sempre abertas. Mas, na vida consagrada, não deve ser assim: o irmão e a irmã que Deus me dá são parte da minha história, são presentes que devo guardar. Que não nos aconteça olhar mais para o ecrã do telemóvel do que para os olhos do irmão, ou fixarmo-nos mais nos nossos programas do que no Senhor. Com efeito, quando se colocam no centro os projetos, as técnicas e as estruturas, a vida consagrada deixa de atrair e comunicar-se a outros; não floresce, porque esquece «aquilo que tem debaixo da terra», isto é, as raízes.

A vida consagrada nasce e renasce do encontro com Jesus assim como é: pobre, casto e obediente. A linha sobre a qual caminha é dupla: por um lado, a amorosa iniciativa de Deus, da qual tudo começa e à qual sempre devemos retornar, e, por outro, a nossa resposta, que é de amor verdadeiro quando não há «se» nem «mas», quando imita Jesus pobre, casto e obediente. Deste modo, enquanto a vida do mundo procura acumular, a vida consagrada deixa as riquezas que passam, para abraçar Aquele que permanece. A vida do mundo corre atrás dos prazeres e ambições pessoais, a vida consagrada deixa o afeto livre de qualquer propriedade para amar plenamente a Deus e aos outros. A vida do mundo aposta em poder fazer o que se quer, a vida consagrada escolhe a obediência humilde como liberdade maior. E, enquanto a vida do mundo depressa deixa vazias as mãos e o coração, a vida segundo Jesus enche de paz até ao fim, como no Evangelho, onde os anciãos chegam felizes ao ocaso da vida, com o Senhor nos seus braços e a alegria no coração.

Como nos faz bem ter o Senhor «nos braços» (Lc 2, 28), à semelhança de Simeão! Não só na mente e no coração, mas também nas mãos, ou seja, em tudo o que fazemos: na oração, no trabalho, à mesa, ao telefone, na escola, com os pobres, por todo o lado. Ter o Senhor nas mãos é o antídoto contra o misticismo isolado e o ativismo desenfreado, porque o encontro real com Jesus endireita tanto os sentimentalistas devotos como os ativistas frenéticos. Viver o encontro com Jesus é o remédio também contra a paralisia da normalidade, abrindo-se ao rebuliço diário da graça. Deixar-se encontrar por Jesus, fazer encontrar Jesus: é o segredo para manter viva a chama da vida espiritual. É o modo para não ser absorvido numa vida asfixiadora, onde prevalecem as queixas, a amargura e as inevitáveis deceções. Encontrar-se em Jesus como irmãos e irmãs, jovens e anciãos, para superar a retórica estéril dos «bons velhos tempos» – aquela nostalgia que mata a alma –, para silenciar o «aqui nada funciona». O coração, se encontrar cada dia Jesus e os seus irmãos, não se polariza para o passado nem para o futuro, mas vive o «hoje» de Deus em paz com todos.

No final dos Evangelhos, há outro encontro com Jesus que pode inspirar a vida consagrada: o das mulheres no sepulcro. Foram para encontrar um morto, o seu caminho parecia inútil. Também vós caminhais, no mundo, contra corrente: a vida do mundo facilmente rejeita a pobreza, a castidade e a obediência. Mas, como aquelas mulheres, continuai para diante, não obstante as preocupações com as pedras pesadas a remover (cf. Mc 16, 3). E, como aquelas mulheres, primeiro encontrai o Senhor ressuscitado e vivo, estreitai-O ao coração (cf. Mt 28, 9) e, logo a seguir, anunciai-O aos irmãos, com olhos que brilham de grande alegria (cf. Mt 28, 8). Sois, assim, a alvorada perene da Igreja: vós, consagrados e consagradas, sois a alvorada perene da Igreja! Desejo que hoje mesmo possais reavivar o encontro com Jesus, caminhando juntos para Ele: isto dará luz aos vossos olhos e vigor aos vossos passos.

2 de fevereiro de 2018

FESTA DO ENCONTRO:
Com Jesus no meio do seu povo,
herdeiros dos sonhos dos nossos pais e fundadores

Quando os pais de Jesus levaram o Menino ao Templo para cumprir as prescrições da lei, Simeão, «impelido pelo Espírito» (Lc 2, 27), toma nos seus braços o Menino e começa a louvar a Deus. Um cântico de bênção e de louvor: «Porque meus olhos viram a Salvação que ofereceste a todos os povos, Luz para se revelar às nações e glória de Israel, teu povo» (Lc 2, 30-32). Simeão não só pôde ver, mas teve também o privilégio de abraçar a esperança por que aspirava, e isto fá-lo exultar de alegria. O seu coração rejubila porque Deus habita no meio do seu povo; sente-O carne da sua carne.

A liturgia de hoje diz-nos que, com aquele rito (quarenta dias depois do nascimento), o Senhor «exteriormente cumpria as prescrições da lei, mas na realidade vinha ao encontro do seu povo fiel» (Missal Romano, 2 de fevereiro, Monição à procissão de entrada). O encontro de Deus com o seu povo desperta a alegria e renova a esperança.

O cântico de Simeão é o cântico do homem crente que, na reta final dos seus dias, pode afirmar: É verdade! A esperança em Deus nunca dececiona (cf. Rm 5, 5); Ele não engana. Na sua velhice, Simeão e Ana são capazes duma nova fecundidade e dão testemunho disso mesmo cantando: a vida merece ser vivida com esperança, porque o Senhor mantém a sua promessa; e será o próprio Jesus que explicará, mais tarde, esta promessa na sinagoga de Nazaré: os doentes, os presos, os abandonados, os pobres, os anciãos, os pecadores… também eles são convidados a entoar o mesmo cântico de esperança, ou seja, que Jesus está com eles, está connosco (cf. Lc 4, 18-19).

Este cântico de esperança recebemo-lo em herança dos nossos pais. Eles introduziram-nos nesta «dinâmica». Nos seus rostos, nas suas vidas, na sua dedicação diária e constante, pudemos ver como este louvor se fez carne. Somos herdeiros dos sonhos dos nossos pais, herdeiros da esperança que não dececionou as nossas mães e os nossos pais fundadores, os nossos irmãos mais velhos. Somos herdeiros dos nossos anciãos que tiveram a coragem de sonhar; e, como eles, também nós hoje queremos cantar: Deus não engana, a esperança n’Ele não dececiona. Deus vem ao encontro do seu povo. E queremos cantar embrenhando-nos na profecia de Joel: «Derramarei o meu Espírito sobre toda a humanidade. Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos anciãos terão sonhos e os vossos jovens terão visões» (3, 1).

Faz-nos bem acolher o sonho dos nossos pais, para podermos profetizar hoje e encontrar novamente aquilo que um dia inflamou o nosso coração. Sonho e profecia juntos. Memória de como sonharam os nossos anciãos, os nossos pais e mães, e coragem para levar por diante, profeticamente, este sonho.

A nós consagrados, esta atitude tornar-nos-á fecundos, mas sobretudo preservar-nos-á duma tentação que pode tornar estéril a nossa vida consagrada: a tentação da sobrevivência. Um mal que pode instalar-se pouco a pouco dentro de nós, no seio das nossas comunidades. A atitude de sobrevivência faz-nos tornar reacionários, temerosos, faz-nos fechar lenta e silenciosamente nas nossas casas e nos nossos esquemas. Faz-nos olhar para trás, para os feitos gloriosos mas passados, o que, em vez de despertar a criatividade profética nascida dos sonhos dos nossos fundadores, procura atalhos para escapar aos desafios que hoje batem às nossas portas. A psicologia da sobrevivência tira força aos nossos carismas, porque leva-nos a «domesticá-los», a pô-los «ao nosso alcance» mas privando-os da força criativa que eles inauguraram; faz com que queiramos mais proteger espaços, edifícios ou estruturas do que tornar possíveis novos processos. A tentação da sobrevivência faz-nos esquecer a graça, transforma-nos em profissionais do sagrado, mas não pais, mães ou irmãos da esperança, que fomos chamados a profetizar. Este clima de sobrevivência torna árido o coração dos nossos anciãos privando-os da capacidade de sonhar e, assim, torna estéril a profecia que os mais jovens são chamados a anunciar e realizar. Em resumo, a tentação da sobrevivência transforma em perigo, em ameaça, em tragédia aquilo que o Senhor nos dá como uma oportunidade para a missão. Esta atitude não é própria apenas da vida consagrada, mas nós em particular somos convidados a precaver-nos de cair nela.

Voltemos ao Evangelho e contemplemos de novo a cena. O que suscitou o cântico de louvor em Simeão e Ana não foi, por certo, o olhar para si mesmos, o analisar e rever a própria situação pessoal. Não foi o permanecer fechados com medo de algo ruim que lhes pudesse acontecer. O que suscitou o cântico foi a esperança, aquela esperança que os sustentava na velhice. Aquela esperança viu-se recompensada no encontro com Jesus. Quando Maria coloca nos braços de Simeão o Filho da Promessa, o ancião começa a cantar – faz uma “liturgia” própria – canta os seus sonhos. Quando coloca Jesus no meio do seu povo, este encontra a alegria. Sim, só isto nos poderá restituir a alegria e a esperança, só isto nos salvará de viver numa atitude de sobrevivência, só isto tornará fecunda a nossa vida, e manterá vivo o nosso coração: colocar Jesus precisamente onde Ele deve estar, ou seja, no meio do seu povo.

Todos estamos conscientes da transformação multicultural que atravessamos, ninguém o põe em dúvida. Daqui a importância de o consagrado e a consagrada estarem inseridos com Jesus na vida, no coração destas grandes transformações. A missão – em conformidade com cada carisma particular – é aquela que nos lembra que fomos convidados a ser fermento desta massa concreta. Poderão certamente haver «farinhas» melhores, mas o Senhor convidou-nos a levedar aqui e agora, com os desafios que nos aparecem. E não com atitude defensiva, nem movidos pelos nossos medos, mas com as mãos no arado procurando fazer crescer o trigo muitas vezes semeado no meio do joio. Colocar Jesus no meio do seu povo significa ter um coração contemplativo, capaz de discernir como é que Deus caminha pelas ruas das nossas cidades, das nossas terras, dos nossos bairros. Colocar Jesus no meio do seu povo significa ocupar-se e querer ajudar a levar a cruz dos nossos irmãos. É querer tocar as chagas de Jesus nas chagas do mundo, que está ferido e anela e pede para ressuscitar.

Colocarmo-nos com Jesus no meio do seu povo! Não como ativistas da fé, mas como homens e mulheres que são continuamente perdoados, homens e mulheres ungidos no Batismo para partilhar esta unção e a consolação de Deus com os outros.

Colocarmo-nos com Jesus no meio do seu povo, porque «sentimos o desafio de descobrir e transmitir a “mística” de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que [com o Senhor] pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada. (…) Como seria bom, salutar, libertador, esperançoso, se pudéssemos trilhar este caminho! Sair de si mesmo para se unir aos outros» (Exort. ap. Evangelium gaudium, 87) não só faz bem, mas transforma a nossa vida e a nossa esperança num cântico de louvor. Mas isto só o poderemos fazer, se assumirmos os sonhos dos nossos anciãos e os transformarmos em profecia.

Acompanhemos Jesus que vem encontrar-Se com o seu povo, estar no meio do seu povo, não no lamento ou na ansiedade de quem se esqueceu de profetizar, porque não se ocupa dos sonhos dos seus pais, mas no louvor e na serenidade; não na agitação, mas na paciência de quem confia no Espírito, Senhor dos sonhos e da profecia. E, assim, compartilhamos o que nos pertence: o cântico que nasce da esperança.

2 de fevereiro de 2017