Formação Permanente
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1. O Getsêmani e o Sofrimento
O Getsêmani é o lugar onde aconteceu o grande encontro, onde a humanidade se encontrou com Deus.
Não foi por acaso que Jesus, naquela noite, encontrou um jardim onde pôde provar a angústia e o turbamento e no qual sua alma pôde ser afligida por aquela dor extraordinária até a morte. Não é por acaso que foi no jardim do paraíso que Adão foi desnudado pelo pecado para depois desaparecer da presença de Deus, de modo que em Adão a humanidade entrou num estado de separação de Deus e na morte?
Mesmo sendo verdade que a humanidade tinha experimentado um pleno encontro com Deus no nascimento de Jesus, isso tinha como fundamento unicamente a aceitação, por Jesus, de um pleno encontro conosco. Também no Getsêmani encontramo-nos com ele: e não há encontro mais significativo do que aquele que acontece na condivisão do sofrimento, com exceção daquele em que condividimos a própria morte, assim atingindo a imortalidade.
O sofrimento, tanto físico quanto espiritual, que nos oprime nesta vida, foi em profundidade sondado por Jesus: Minha alma está triste até a morte (Mt 26,38). Não há dor que possa levar a alma até a morte, a não ser a dor da infâmia e do pecado.
No Getsêmani, Jesus tomou a decisão irrevogável de aceitar a infâmia da humanidade, consentiu em ir ao encontro da provação iminente como blasfemador e malfeitor, acusado dos dois pecados que estão à base de qualquer pecado.
2. Antes do Getsêmani o sofrimento era um castigo
A dor e a tristeza que seguem os desastres e as injustiças, e o cansaço, a doença, a humilhação e o aviltamento que os acompanham, constituíam uma pergunta que não encontrava resposta a não ser nas palavras “pecado” e “castigo”.
Não havia para nós nenhuma esperança no sofrimento enquanto não houvesse remédio para o pecado; e a dor era amarga e desoladora enquanto não houvesse um resgate para o castigo.
Por outro lado, a injusta distribuição do sofrimento provocava angústia, ânsia e desânimo. Uma criança inocente pode ser vítima do mal, do sofrimento e da tortura tanto quando o mais perverso dos homens. Pode acontecer que homens bons e humildes sofram mais do que os outros, depravados obstinados: não existe meio para descobrir uma lei ou um princípio que regule a distribuição do sofrimento. Isso porque o pecado reinava no homem em lugar de Deus, e o pecado não conhece lei. A lei do pecado é a injustiça, sua regra é a iniqüidade e seu princípio é a tirania.
(…) Pensemos nisso: se um homem culpado de pecado sofre e é oprimido pela dor, isso acontece pela lei do pecado. E se um homem bom sofre mais do que um mau é porque a lei do pecado acorrenta a ambos sob o próprio poder: nas regras do pecado não existe justa distribuição. E se uma criança inocente sofre como um adulto, é porque é filho do pecado, nascido para a injustiça e para a opressão.
Mas, como é que Cristo pôde suportar esse horrendo sofrimento? Por que sua alma teve de ser afligida até a morte? Ele nasceu do Espírito Santo e de uma Virgem imaculada; viveu sem pecado e proclamou: Eu sou a verdade (Jo 14,6). Somente nos resta deduzir que Cristo aceitou deliberadamente o próprio injusto sofrimento e consentiu em receber a iníqua sentença com fortes gritos e lágrimas (Hb 5,7).
Pode acontecer que existam homens que sofreram injustamente e que foram punidos mais severamente do que merecesse seu pecado, mas então, o que diremos de Cristo? Em seu sofrimento suportou toda injustiça e com aflição mortal de sua alma descontou a pena de todos os pecados. Como foi dito pelo profeta Isaías:
Ele tomou sobre si as nossas enfermidades, revestiu-se de nossas dores e nós o julgávamos como um castigado ferido por Deus e humilhado. Ele foi traspassado pelos nossos delitos, e esmagado por nossas iniqüidades. O castigo que nos salva abateu-se sobre ele… Todos nós andávamos desgarrados como um rebanho, cada um de nós seguia seu caminho; o Senhor fez recair sobre ele a iniqüidade de todos nós. Maltratado, deixou-se humilhar e não abriu a sua boca apesar de não ter cometido violência nem existir engano em sua boca. Mas aprouve ao Senhor esmagá-lo com dores. Quando ofereceu-se a si mesmo em expiação… entregou sua alma à morte. (Is 53,4-12).
3. Em seguida a dor se transforma em dom
Neste modo Deus eliminou a opressão do sofrimento, sua injustiça e lei tirânica: não com um pregão ou uma lei, nem mesmo com uma visão ou um anjo, mas fazendo-se semelhante ao ser humano, suportando essa mesma opressão, submetendo-se à lei da injustiça, suportando a humilhação sem abrir a boca. Cristo, aceitando sofrer desse modo, deu um enorme valor à dor: após a merecida punição pelo pecado, a dor transforma-se num sacrifício de amor e numa obra de redenção. A partir desse momento, o sofrimento não está mais ligado ao pecado: terminou a sensação que torturava o coração e a consciência do homem convicto de estar sob o manto do castigo a ser pago e da culpa a ser resgatada. Sensações como essas minavam sua condição psicológica e o enchiam de preocupações, de ânsias e doenças mortais; agora, porém, se um está em Cristo, pode viver o sofrimento no mesmo nível do sofrimento de Cristo, não como uma conseqüência do pecado, mas como participação no sofrimento do amor, do sacrifício de si e da redenção. A dor, seja qual for a forma que assume, em Cristo se transformou em dom: Dai graças ao Senhor por seu amor… em favor dos homens! (Sl 107,8).
4. E uma participação no amor de Cristo
Quando Cristo submeteu-se ao doloroso sofrimento – apesar de não merecer o mínimo castigo – transformou o significado da injustiça do sofrimento. Antes, um homem que sofria podia elevar os olhos ao céu para acusar a Deus ou para pedir misericórdia, mas não receberia nem réplica, nem resposta, nem consolação: o pecado tinha rompido a relação entre o homem e seu Criador e cruelmente trancado o homem sofredor e o seu perseguidor na mesma prisão, conduzindo os dois para a destruição e a morte; esse é, na verdade, o caminho do pecado e seu ponto de chegada! Agora, porém, em Cristo, o homem que sofre está livre para sempre do pecado; ele não vê nenhuma injustiça em seu sofrimento, por maior que seja a sua dor ou total a sua inocência. Ele sabe e percebe que o seu sofrimento nada tem a ver com o pagamento de uma dívida ou com a expiação de um crime, até porque nem a dor mais atroz, nem mesmo todos os sofrimentos da humanidade reunidos podem expiar um só pecado, por menor que seja. O pecado é uma ruptura com Deus e um distanciar-se de sua presença. Se o sofrimento fosse um castigo, e nada mais do que isso, e nós pagássemos a culpa, quem então teria obtido a reconciliação? Mesmo se nós morrêssemos para pagar o preço do pecado, quem nos devolveria a vida e nos reconduziria à presença de Deus?
Mas Cristo aboliu o pecado, reconciliou-nos e devolveu-nos a vida. Ele partiu a terrível corrente que unia o sofrimento ao pecado: agora, o sofrimento não é mais participação no pecado de Adão, mas participação no amor de Cristo.
Se nós estamos em Cristo, por mais que soframos e por maior que seja a nossa dor, nosso sofrimento não tem nenhuma relação com o fato de que mereçamos mais ou menos essa dor. O sofrimento não é mais um castigo para algo, nem um meio para expiar alguma coisa e nem mesmo um castigo por qualquer coisa. Foi o pecado que tinha decretado que o sofrimento deveria ser uma forma de pena, de expiação ou de castigo; Cristo eliminou o pecado após ter descontado a pena, após tê-lo expiado e padecido o castigo.
Portanto, agora é como se o homem sofresse por nada, sem nenhuma razão ou pretexto: foi exatamente esse o tipo de sofrimento suportado por Cristo! Essa é a liturgia do sofrimento do amor, do sacrifício de si, da redenção. Esta é a participação na divindade: Se verdadeiramente sofremos com ele participaremos também de sua glória (Rm 8,17).
5. E, enfim, participação da glória e das alegrias da ressurreição
Agora estamos em condições de entender o significado destas palavras: Porque a vós foi dada a graça não só de crer em Cristo, mas também de sofrer por ele (Fl 1,29). Somos capazes de perceber que a dor, após ter sido um castigo, em Cristo transformou-se em dom? E que o dom do sofrimento não causado pelo pecado é inevitavelmente uma participação na glória?
Se prestarmos atenção às palavras do apóstolo Tiago: Considerai que é suma alegria, meus irmãos, quando passais por toda espécie de provas (Tg 1,2), descobriremos que qualquer sofrimento, de qualquer tipo, está inelutavelmente ligado a Cristo, e que devemos acolhê-lo com alegria e gratidão, sabendo que “como abundam os sofrimentos de Cristo em nós, assim, por meio de Cristo, abunda também a nossa consolação” (2Cor 1,5).
Deste modo nós não sofremos mais pelo pecado, mas por Cristo. Toda dor não vivida em Cristo é pecado e o salário do pecado é a morte.
Os sofrimentos de quem vive com Cristo não são considerados como resultado do pecado. São os sofrimentos da justiça; são alegria e paz: Por isso estou feliz com os sofrimentos que suporto (Cl 1,24); são participação no supremo sacrifício de amor que Cristo ofereceu através de seu sofrimento e tornou perfeito com sua morte: Para que eu possa conhecê-lo… e possa participar de seus sofrimentos, tornando-me semelhante a ele na morte (Fl 3,10).
Se estamos em Cristo, quanto mais aumentam nossos sofrimentos, tanto mais aumenta nossa participação neste sacrifício, tanto mais se solidifica a união com a ressurreição e a glória que dela deriva. O significado do sofrimento injusto foi completamente invertido: antes era opressão violenta sob a lei do pecado que exercia seu domínio no mundo, agora tornou-se a medida de um grande dom e o marco que contradistingüe quem foi julgado digno da glória e da alegria da ressurreição. Pois a lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus libertou-me do pecado e da morte (Rm 8,2). Também o apóstolo Pedro dá testemunho do que experimentou: É uma grande graça para quem conhece Deus passar por aflições, sofrendo injustamente (1Pd 2,19).
Graças sejam dadas a Deus Pai e ao Senhor Jesus. Dêem graças ao Senhor por seu amor… em favor dos homens! (Sl 107,8).
Consolai-vos, todos vós que sofreis, porque a vossa dor não é mais conseqüência do pecado, mas participação no amor e nos sofrimentos do Getsêmani! Alegrai-vos, vós todos que estais aflitos, porque a vossa angústia não leva à morte: está guardada na dor de Cristo para a ressurreição!
Matta el Meskin, “Comunhão no Amor”
Monge copto-ortodoxo – Mosteiro de S. Macário (Egipto)