Viver a velhice em uma geração pós-mortal
Memórias de um teólogo italiano no ocaso da vida
Enzo Bianchi
Os dias do ano, as recordações, a memória das coisas e dos sentimentos. No livro “Ogni cosa alla sua stagione” (Ed. Einaudi, 127 páginas), o monge e teólogo italiano Enzo Bianchi repassa traços sugestivos da sua vida, das atmosferas e das figuras que o acompanharam no caminho. Eis aqui o diálogo entre Bianchi e a escritora italiana e estudiosa do judaísmo Elena Loewenthal.
Elena Loewenthal – “Ogni cosa alla sua stagione” [Cada coisa à sua estação] é um título forte, cheio de significado. Não traz o verbo “ter”, que no hebraico da Bíblia não existe – “cada coisa tem a sua estação” – e se refere, ao contrário, àquela atitude “dativa”, que nessa língua substitui a posse. Assim, nos convida a um sentido da leitura diferente, mais participado. Parece que sentimos o perfume daquele caminho de tílias, por exemplo, do qual se fala no final, página após página…
Enzo Bianchi – Decidi plantar um caminho de tílias porque sou idoso. Na minha idade, acredito que é necessário fazer atos de confiança no futuro desta terra. Estão debaixo do meu ermo: não sei por quantos anos poderei sentir o perfume surpreendente que emanam em maio, principalmente de manhã cedo e nas longas noites cheias de luz. Esse perfume que sobe da terra da colina será principalmente para os outros que virão depois de mim. Quando somos pegos pela velhice, é importante pensar não apenas em nós, mas, ao contrário, reavivar a nossa relação com aquilo que nos circunda, expressar respeito pela vida que vivemos e gratidão por esta terra tão bela. Mesmo que teremos que deixá-la.
Elena Loewenthal – Há um ponto que mantém unidas essas reflexões, em parte revelando, em parte encerrando-as: é a questão do tempo, entendido como um valor, e não como uma posse. Os Padres antigos diziam que o tempo é de Deus, não nosso. Nós o habitamos, mas não dispomos dele, porque nos foge todas as vezes que tentamos aferrá-lo. A impressão é de que estamos perdendo esse sentido do tempo como território no qual viver e não como objeto a possuir. Não temos mais a noção da periodicidade feita de passagens e retornos: começando por quando fazemos as compras, e tudo parece sempre disponível, em todos os momentos do ano.
Enzo Bianchi – Vivemos um mundo em fuga. Deixamos que o tempo se tornasse uma dimensão estranha: somos a “geração pós-mortal”, porque não temos mais a percepção do nosso limite. Ouço frequentemente as pessoas usando o futuro do subjuntivo, “quando eu fizer…”: significa não viver nem o presente nem o futuro! A separação do tempo é, depois, de si mesmo, da relação com os outros. E pensar que tudo isso foi o fermento da nossa cultura. Nós, no Ocidente, temos as estações, que ritmaram a civilização e a cultura em uma contínua dinâmica entre a plenitude da vida no verão e o inverno, em que tudo dorme. E depois somos, por definição, pessoas das terras onde “o sol cai”, o Occasum. A perda dessas noções nos torna muito pobres, incapazes de habitar o tempo.
Elena Loewenthal – E também frágeis, principalmente em relação ao tempo da nossa vida. Esse livro não é um senectute, um viático para a velhice, mas certamente aqui se reflete sobre a última idade. Uma grande fragilidade do nosso tempo, acredito, é a rejeição da velhice e, no fundo, também daquela morte com a qual, antes ou depois, teremos que acertar as contas. É iluminador, depois, aquilo que nos revela. Já o sabíamos, sem saber que sabíamos: o velho tem experiência, porém também é verdade que a velhice é um unicum, quando você a vive é irremediavelmente uma primeira vez. E, por isso, é preciso se preparar.
Enzo Bianchi – A velhice é ainda um tempo a ser vivido, não a ser negado. E nem devemos ter medo dele. É preciso procurar atravessá-lo de modo consciente, segundo os cânones da verdadeira arte. A velhice se prolonga, mas não tem mais aquele carisma de experiência e sabedoria impresso nela tempos atrás. Trata-se de vivê-la em sintonia com as novas gerações, sem se “guetizar”. Aprender uma gramática do velho que não seja “até agora vivi para os outros, agora me dedico para mim”. Uma grande lição que a Bíblia me ensinou é que a vida não é um fetiche. A vida é tal até que haja relação. A morte é ausência de relação: os Salmos nos dizem que os mortos nem louvam a Deus. Se a vida é relação, a velhice também deve se adequar, mesmo com a sua lentidão e fadiga. O que dá mais medo aos velhos não é a dor ou a morte, mas a solidão. A exclusão do ciclo da vida. Para curá-la, é preciso empenho cultural e políticas clarividentes. É preciso principalmente se preparar para uma velhice em que a relação continue.
Elena Loewenthal – A vida como relação. Certamente. Mais uma vez, a Bíblia chama a vida com uma palavra no plural, hayyim. Se há um dom que a velhice tem é o de saber voltar ao passado com uma lucidez e um senso de presença. Paradoxalmente, aquilo que estava, para nós, distante no tempo, nos parece mais próximo enquanto envelhecemos. As recordações se tornam mais nítidas. É uma espécie de retorno, não é verdade?
Enzo Bianchi – É um retorno, sim, e muito importante. Não só vemos melhor contornos e figuras, mas até as fazemos ressuscitar. Recentemente, vi que era capaz novamente de pensar em uma pessoa que eu não me lembrava há pelo menos 30 anos. Adquire-se uma espécie de clarividência, enfim, que, além disso, é fruto da gratidão. Quando somos jovens, somos credores: a vida nos deve dar! Depois, vem a hora em que sentimos que temos dívidas a pagar: à terra, às pessoas. Nesse livro, quis saldar dívidas com amigos de infância que significaram muito, mesmo que nunca mais os tenha visto! Com as pessoas graças as quais eu sou aquilo que sou.
Elena Loewenthal – E para isso é preciso muita generosidade, para compartilhar com o leitor essas dívidas de reconhecimento. Que aqui afloram na forma de figuras humanas, fortes e doces ao mesmo tempo. Como Etta e Cocco, por exemplo.
Enzo Bianchi – A minha vida é marcada por essas duas mulheres, que depois da morte da minha mãe – eu tinha oito anos – me adotaram espiritualmente. Uma era carteira, a outra, professora do meu vilarejo. Uma professora extraordinária, que colocava os menos inteligentes nos primeiros bancos para lhes dar uma oportunidade. Elas duas me deram a liberdade, uma biblioteca, me incentivaram a girar o mundo. Ensinaram-me o respeito pelos outros. O meu também também me construiu: dele, aprendi aquele senso de justiça que deve reinar no mundo. E que se manifestava cotidianamente, quando errantes e mendicantes entravam a comiam à nossa mesa. Parecia estranho, mas era assim lá em casa. É a coisa mais bela que eu trago comigo.
O artigo foi publicado no jornal italiano La Stampa.
A ARTE DE MORRER
Jean-Yves Leloup
O mundo que nos rodeia não nos ensina a morrer. Tudo é feito para esconder a morte, para incitar-nos a viver sem pensar nela, em termos de um projeto, como se estivéssemos voltados para objetivos a serem alcançados e apoiados em valores de efetividade. Tampouco nos ensina a viver. No máximo a ter êxito na vida, o que não é a mesma coisa. Trata-se de “fazer”, de “ter” cada vez mais, em uma corrida desenfreada em busca de uma felicidade material a respeito da qual acabamos por perceber, mais cedo ou mais tarde,, não ser suficiente para conferir um sentido às nossas existências. Assim, às vezes ouvimos da boca de agonizantes revoltados, amargurados, o derradeiro lamento por terem passado ao largo do essencial. Não é necessário ser particularmente religioso para sentir que não estamos nesta terra para passar nossa vida a produzir e consumir.
Em uma das suas conferencias sobre a experiência da morte, o padre Maurice Zundel formulava a questão nestes termos: O que fazemos da nossa vida? Estamos à procura de nós mesmos, fugimos de nós, reencontramo-nos de forma intermitente e nunca chegamos a fechar o círculo, a definir-nos a nós próprios, a saber quem somos… Não temos tempo, a vida passa tão depressa, estamos absorvidos pela preocupações materiais ou por diversões… e, finalmente, a morte chega e é em sua presença que tomamos consciência de que a vida poderia ter sido algo de imenso, de prodigioso, de criador. Mas já é tarde demais… e a vida só adquire todo o seu relevo no imenso desgosto de uma coisa inacabada. É, então, que a morte, justamente porque a vida ficou inacabada, aparece como um sorvedouro.
Onde é que, atualmente, a questão do sentido poderá expressar-se? Onde poderá encontrar a resposta?
Todo homem confrontado com a iminência da morte pode ser levado a formular-se questões de ordem espiritual (qual é o sentido da minha vida? Haverá uma transcendência? O que acontecerá ao meu ser?). Como é grande a solidão quando não conseguimos expressar tais questões, compartilha-las com os outros! Estaremos prontos para escutá-las? O que dizer, como proceder perante o absurdo do luto, o desgosto, o desespero? O que responder àqueles que perguntam por que? Àquele que – entrevado, dependente, com o corpo deteriorado – pergunta a si mesmo que sentido poderá ter a prolongação da vida?